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Making Merry: O Natal que fazemos.


Por Bruna Santana.

Diz Aí, ASCOM!


Na alvorada das luzes sobre as casas e ruas da cidade, a sensação confortável de lar e encantos natalinos nos remete a um momento singular, ou atípico, de unidade. Isso, porque, ao observarmos a celebração com atenção analítica e até histórica, dos seus consensos criados – o nascimento de Jesus Cristo, a troca de presentes, a árvore de natal, o papai noel, dentre outros –, o elemento mais sólido da festividade é o seu caráter relacional. Resumidamente, a comunhão. Nas mais diversas manifestações do Natal, ou das comemorações correlatas de outras culturas, emerge como central, permitindo que, sob diferentes formas e narrativas, elas permaneçam marcadas pela partilha e convivência humana.


O caminho pelo qual o presente texto anseia direcionar os leitores oferece uma jornada histórica, internacional, que oportuniza uma reflexão ampla acerca do Natal. Tendo isso em vista, contaremos com a fluidez e subjetividade pós-positivista do Construtivismo das Relações Internacionais, vislumbrando, a partir da lógica de co-constituição entre agentes e estrutura (Messari; Nogueira, 2005, P. 166), de que maneira a festa de Natal nos une em torno de tradições tão diversas.


A comemoração do Natal, antes do significado cristão que o nomeia e marca sua identidade atualmente, está intimamente conectada ao solstício de inverno no hemisfério norte global, “[...] o retorno do sol, da luz e da própria vida.” (Nissenbaum, 1997, [n.p.], tradução livre), que representava a esperança do acalento dos dias mais longos e o calor benéfico para a provisão agrícola. Essa representação encontra-se em diferentes culturas e religiões, como o Yule nórdico, a Saturnália e o Sol Invictus romanos e a Yalda medo-persa. Apesar das interpretações diversificadas, essas celebrações tinham em comum os grandes banquetes, troca de presentes, as luzes, o verde e as reuniões sociais (Forbes, 2007, p. 13, tradução livre). No contexto do Império Romano nos primeiros séculos depois de Cristo, Dreher (2013, p. 18-19) explica que o culto de Mitra (ou Mithras) – um deus solar –, originado na Ásia Menor, teve grande relevância no império e se tornou o grande concorrente da fé cristã a época. O nascimento de Mitra, centralidade da Yalda e do Sol Invictus, era celebrado em 25 de dezembro como símbolo do renascimento da luz, decorrente do solstício.


Nesse período histórico, apesar da perseguição e tentativa de supressão da parte de Roma e lideranças religiosas que temiam a subversão do domínio vigente, a igreja cristã primitiva expandiu-se de forma exponencial, disseminada pelos apóstolos e seguidores de Cristo e sedimentada na prática da unidade e comunhão, que não era reservada a um dia específico de celebração, mas cumprimento dos ensinos de Jesus. Segundo o relato no livro de Atos (Bíblia, 2001), no capítulo 2, dos versículos 42 ao 47, viviam em igualdade, compartilhavam bens com desprendimento, perseveravam na oração, louvor e convivência fraterna, atraindo constantemente novos salvos à comunidade através do Evangelho de Cristo. Até que no século IV, com o imperador Constantino, houve a permissão ao culto e incentivo a fé cristã e posterior institucionalização como religião oficial do Império Romano. Então, o significado da data foi reinterpretado pela igreja romana e o nascimento de Jesus Cristo tornou-se o evento central da festa de Natal (Hollard, 1966, p. 75).


Essa transição, no entanto, não foi isenta de controvérsias. A data de 25 de dezembro não possui fundamento bíblico como o nascimento de Jesus, e justamente por essa razão, “[...] os primeiros cristãos não tiveram sequer em mente celebrar o aniversário do nascimento de Jesus. Para eles, importava mais o aniversário de sua morte, assim como o de sua ressurreição, isto é, o de sua vitória sobre a morte.” (Hollard, 1966, p. 69), sendo escolhida mais como uma estratégia de incorporação cultural do que de precisão histórica. A resistência inicial dos cristãos foi significativa. Como exemplo, os cristãos do oriente tinham a Epifania – aparição ou manifestação divina – com raízes gregas, comemorada em 6 de janeiro, como o momento mais aceito para celebrar a revelação de Cristo (Hollard, 1966, p. 70-71). Posteriormente, entre os séculos XVI e XVIII, os puritanos da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, rejeitaram a celebração do Natal devido as práticas desgovernadas e excessivas, que desafiavam as normas sociais, herdadas das festividades pagãs, tornando-o até mesmo ilegal por um período (Nissenbaum, 1997, [n.p.], tradução livre).


Na obra The Battle For Christmas de Stephen Nissenbaum (1997, [n.p.], tradução livre), o autor explica que a recente Europa moderna era marcada pela escassez, sendo o mês de dezembro, o único no qual era possível ter carne fresca – por causa do frio invernal – e a produção anual de bebidas fermentadas, como o vinho e a cerveja, estavam prontas para consumo. Ainda segundo o autor, a temporada de Natal servia como um tempo para aliviar as tensões, extravasar e se empanturrar. To make merry, que pode ser entendido como fazer festa, tornar alegre e divertido. Ainda que, naquele contexto, a diversão podia, facilmente, se tornar em confusão, alimentada pelo álcool, making merry virava making trouble (“criando problema”).


A transformação do Natal no século XIX foi marcada por mudanças em seu caráter festivo. Na Inglaterra, a celebração natalina foi revitalizada em grande parte pela influência da rainha Vitória e do príncipe Albert, que popularizaram a imagem da família reunida em torno da árvore de Natal, importando a tradição alemã e associando o período a valores familiares. Além disso, Charles Dickens teve um papel fundamental nesse processo, com sua obra A Christmas Carol (1843), que enfatizou temas como solidariedade, generosidade e redenção, moldando uma nova visão do Natal como uma festa centrada na família e na compaixão. Esse período consolidou o Natal como um evento mais doméstico, abandonando gradativamente o comportamento festivo excessivo das celebrações anteriores (Forbes, 2007, p. 60-65, tradução livre).


Nesse mesmo contexto, a figura do Papai Noel, que possui origens complexas, remontando a tradições culturais e religiosas antigas, evoluiu ao longo dos séculos para se tornar um símbolo do Natal, principalmente no ocidente. Inspirado em São Nicolau, bispo do século IV conhecido por sua generosidade e atos de caridade, ele começou a ganhar destaque como representação do espírito natalino, tornando-se Santa Claus, um bom velhinho que entrega presentes, reforçando as noções de generosidade e fortalecimento dos laços sociais no período festivo (Forbes, 2007, p. 94, tradução livre).


Na contemporaneidade, o Natal passou por uma transformação estrutural, consolidando-se como uma expressão do capitalismo e da globalização. Tornou-se um evento cada vez mais centrado no consumo, com o fortalecimento de práticas comerciais como a Black Friday, que marca o início das compras natalinas, e a mudança da data do Thanksgiving nos Estados Unidos, promovida pelo presidente Franklin Roosevelt para impulsionar a economia e estender a temporada de compras (Forbes, 2007, p. 111-112, tradução livre). A figura do Papai Noel foi amplamente popularizada pela Coca-Cola na década de 1930, por meio de suas campanhas publicitárias. Antes disso, ele era retratado com trajes em várias cores. A imagem moderna, com traje vermelho e detalhes em pele branca, foi consolidada pelo ilustrador Haddon Sundblom, criando o personagem rechonchudo e amigável que conhecemos hoje (Halczuk, 2023). Assim, o Natal passou a ser moldado por agentes econômicos e culturais, mantendo sua essência relacional, mas sob novas roupagens que refletem as demandas e dinâmicas da sociedade contemporânea.


Sob a perspectiva construtivista, o Natal é um exemplo nítido da co-constituição entre agentes e estrutura. Segundo o arcabouço teórico de Nicholas Onuf, podemos entender que a realidade em que vivemos não é objetiva, mas uma construção social, “a permanente construção e reconstrução da vida social em geral [...] abre a porta, de maneira indeterminada, para a transformação, a mudança ou a continuidade. O mundo é verdadeiramente um "mundo que nós fazemos" [...]" (Messari; Nogueira, 2005, p. 174). Ao analisarmos o Natal sob essa ótica, percebemos que ao longo dos anos, o objetivo, os símbolos, as práticas foram combinadas ou alteradas à medida em que os indivíduos e grupos de diferentes contextos entraram em contato, conflituoso ou não. Por exemplo, a tradição da troca de presentes representa tanto o simbolismo cristão da oferta (os presentes dos Reis Magos) quanto a continuidade de práticas culturais pré-cristãs, como o Yule, que celebrava a generosidade no período de inverno.


Comemorações correlatas ao Natal, como o Genna na Etiópia e o Yalda no Irã, reforçam a ideia de que o Natal é uma construção social, conforme a teoria construtivista das Relações Internacionais, que considera que “as ideias e os valores que informam a relação do agente com o mundo material desempenham uma função central na formulação do conhecimento sobre este mesmo mundo” (Messari; Nogueira, 2005, p. 167). O Genna, celebrado em 6 ou 7 de janeiro, dependendo do calendário etíope, marca o nascimento de Cristo em um contexto comunitário com forte ênfase em valores de união, brincadeiras tradicionais e banquetes compartilhados. Sua data e práticas refletem as peculiaridades do calendário etíope, que adota o sistema juliano em combinação com o coptas, distinguindo-se das celebrações ocidentais de dezembro (Alonso, 2024, tradução livre). Já o Yalda, de origem persa, é celebrado no Irã no solstício de inverno como a noite mais longa do ano, simbolizando luz, renascimento e resistência contra a escuridão. Realizado em família, com destaque para a visita aos mais velhos, o evento inclui a leitura de poemas do filósofo Hafez e a partilha de alimentos simbólicos, como romãs e melancias, cujas cores vermelhas representam o amanhecer e a esperança de dias mais longos e prósperos (Shab e Yalda, 2020, tradução livre).


Finalmente, ao refletirmos sobre como o Natal nos une em torno de tradições tão diversas, podemos recorrer à perspectiva de Alexander Wendt, segundo a qual “[...] processos relacionais podem levar a mudanças nas identidades coletivas, que, por sua vez, podem modificar a lógica de funcionamento da anarquia [...]” (Messari; Nogueira, 2005, p. 176). Neste caso, em vez de pensarmos na anarquia, aplicamos essa lógica ao Natal, cuja significação é moldada socialmente pelas práticas e valores atribuídos a ele em diferentes contextos. Ao longo dos anos, o Natal passou por estruturas predominantes de sentido: inicialmente vinculado ao solstício de inverno, como celebração do ciclo natural e da luz; posteriormente ressignificado como marco do nascimento de Jesus; e, por fim, adaptado ao contexto do capitalismo e da globalização, adquirindo um caráter consumista. Apesar dessas transformações, o caráter relacional permanece o elemento amalgamador, conectando pessoas em torno de significados compartilhados que se adaptam às mudanças culturais e históricas.


O Natal, com suas múltiplas transformações ao longo dos séculos, mostra-se como um emaranhado complexo, permeado por significados que se adaptam às necessidades e contextos culturais de cada época, revelando um espaço em que pessoas experimentam e participam do que significa viver em comunidade. Portanto, como contribuição final, um convite a contemplarmos o desejo do “aniversariante”: 

“[...] Não oro somente por estes discípulos, mas igualmente por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da mensagem deles, para que todos sejam um, Pai, como Tu estás em mim e Eu em Ti. Que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste. Eu lhes tenho transferido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos: Eu neles e Tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que Tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim.” (Bíblia, 2001, livro de João 17:20-23).

Que este Natal seja um lembrete de que somos co-participantes em make merry e de que a verdadeira celebração acontece quando encontramos a plenitude na união em amor profundo.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALONSO, M. L. Genna, the Ethiopian Christmas. 2024. Disponível em: <https://www.reinodeaksum.com/?p=2127>. Acesso em: 13 dez. 2024.


BÍBLIA. Bíblia sagrada King James atualizada. [s.l.] Abba Press Editora, 2001.


DREHER, Martin N. História do povo de Jesus: uma leitura latino-americana. Sinodal, 2013.

FORBES, Bruce David. Christmas: A candid history. Univ of California Press, 2007.


HALCZUK, D. The Coca-Cola Santa Story: A Lesson in Branding and Transformation. 2023. Disponível em: <https://estesmedia.com/the-coca-cola-santa-story-a-lesson-in-branding-and-transformation/>. Acesso em: 16 dez. 2024.


HOLLARD, Auguste. As origens das comemorações do Natal. Revista de História, São Paulo, v. 32, n. 65, p. 69–84, 1966. DOI: 10.11606/issn.2316-9141.rh.1966. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/124023.>. Acesso em: 12 dez. 2024.


MESSARI, Nizar; NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2005.


NISSENBAUM, Stephen. The battle for Christmas: A cultural history of America's most cherished holiday. Vintage, 1997.


Shab e Yalda - A Winter Solstice Persian Celebration. 2020. Disponível em: <https://www.ypl.org/posts/shab-e-yalda-winter-solstice-persian-celebration>. Acesso em: 12 dez. 2024.



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