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Stella Nunes/Observatório Político

O Histórico das Armas Químicas como Crimes de Guerra

- Stella Nunes


Iniciada no último dia 23 de fevereiro, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia se tornou o assunto central da mídia internacional. Um dos mais importantes debates acerca do atual cenário é a possibilidade de serem utilizadas armas nucleares, químicas ou biológicas em caso de agravamento do conflito. Preocupada com este cenário, a comunidade internacional pró-Ucrânia está atenta às ações ofensivas russas, considerando a capacidade bélica que o país possui. A gravidade do conflito põe em xeque a troca de acusações apresentadas tanto pelo presidente russo, Vladimir Putin, acerca da possibilidade de existirem laboratórios de armas químicas ou nucleares na Ucrânia, quanto pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de que seria a Rússia quem poderia utilizar tal arsenal.


As discussões sobre uso de armas químicas requerem uma volta ao passado para, através de uma perspectiva histórica, entendermos os seus efeitos e porque seu uso gera tanta preocupação ao ponto de serem proibidas e consideradas crime de guerra por ameaçarem a paz, a segurança e o bem-estar da humanidade. Segundo Kortunov (2018), as armas químicas precedem o surgimento de outras armas de destruição em massa, como as nucleares, biológicas e radiológicas. Armas químicas são substâncias tóxicas ou seus precursores destinados a causar lesões sobre os processos vitais aos seres humanos ou animais, incapacidade temporária ou permanente, e até provocar mortes (BRASIL, 1993). São classificadas em três categorias: sufocantes, quando atacam o sistema respiratório; neurotóxicas, que afetam o sistema nervoso; e vesicantes, que provocam queimaduras químicas (BBC, 2022).


Em 1675, França e Alemanha realizaram o que é considerado o primeiro acordo contra o uso de agentes químicos, proibindo a utilização de balas envenenadas. No século XIX, os experimentos passaram a ocorrer com mais frequência e em larga escala pelas grandes potências. Por isso, em 1874, a Conferência de Bruxelas “vetou o emprego de armamento envenenado ou de veneno, assim como o uso de projéteis ou materiais que causariam sofrimento excessivo dos combatentes” (POLITIZE, 2018). Desde esse período, os impactos do uso de armas químicas preocupavam a sociedade internacional, levando os países à Convenção de Haia (1899) decidirem mais uma vez pela proibição dos agentes químicos para fins de guerra.


Contudo, essas tentativas de coibir as armas químicas não foram suficientes e o arsenal químico voltou a ser usado durante vários confrontos no século XX. Durante a Primeira Guerra Mundial, a guerra de gases causou terror desde que o exército alemão lançou em Ypres, na Bélgica, uma nuvem de cloro, matando aproximadamente 15 mil soldados no ano de 1915. A partir disso, iniciou-se uma corrida armamentista entre França e Alemanha e o uso de gás tornou-se recorrente durante o conflito mesmo sendo considerado crime de guerra. Gases como cloro, fosgênio e o gás mostarda, sendo este último considerado o mais inquietante, “foram responsáveis por 90 mil mortes e mais de 1,2 milhão de feridos – de um total de 9,7 milhões de soldados mortos entre 1914 e 1918” (CARTA CAPITAL, 2018). Em mais uma tentativa de proibir os agentes químicos e biológicos em conflitos, o Protocolo de Genebra (1925) foi adotado pela comunidade internacional, no entanto, não definia verificações ou sanções aplicáveis em caso de descumprimento do protocolo.


Durante a Segunda Guerra Mundial (1933-1945), a Alemanha nazista liderada por Adolf Hitler utilizou de armas químicas como o zyklon b, o gás cianídrico e pesticidas como tabun e soman nos campos de extermínio. Cerca de 5,4 milhões de judeus, ciganos, homossexuais, deficientes e prisioneiros soviéticos foram mortos fuzilados ou em câmaras de gás no Holocausto (ALTARES, 2017). Neste mesmo período ocorria a segunda guerra Sino-Japonesa (1937-1945), na qual a China foi alvo dos agentes químicos dos invasores japoneses em pelo menos uma ocasião, em agosto de 1938 na cidade de Wuhan (WAKABAYASHI apud MAGNO, 2015). Estima-se que com o fim da guerra o exército imperial japonês deixou cerca de 2 milhões de toneladas de armas químicas distribuídas por 40 localidades do território chinês.


Duas décadas depois, na Guerra do Vietnã (1965-1973), os Estados Unidos utilizaram herbicida conhecido como agente laranja em quantidades 20 vezes acima das doses recomendadas com o objetivo de neutralizar a selva, utilizada como esconderijo, e das plantações de arroz que alimentavam os vietnamitas. As Academias Nacionais de Ciências dos EUA (NAS) e a Usaid calculam que foram utilizados mais de 80 bilhões de herbicidas com capacidade para destruir as plantações em apenas algumas horas. Mesmo após mais de 50 anos, as toxinas estão presentes no solo e em sedimentos que compõem a cadeia alimentar.


A guerra entre Irã e Iraque (1980-1988) ficou marcada pelo massacre de Halabja, em 16 de março de 1988. Os curdos haviam permitido que o exército iraniano tomasse a cidade do Curdistão iraquiano e, como retaliação, foram despejadas bombas químicas. Em minutos, as ruas de Halabja estavam repletas de 5 mil cadáveres. A gravidade do episódio fez com que os impactos do massacre fossem comparados com Pompéia após a erupção do Monte Vesúvio, entretanto, causado pela ação humana.


Após o Protocolo de Genebra ter sido novamente ignorado em tamanha proporção, a comunidade internacional se reuniu em Paris (1993) para novamente debater sobre a proibição desse tipo de armas. A Convenção de Paris foi ratificada por 65 países em 1997, mesmo ano em que foi criada a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), com o propósito de impulsionar as deliberações da Convenção a partir de pesquisas, monitoração, destruição de armas químicas e incentivos aos países não signatários a ratificarem. Atualmente a OPAQ possui 193 Estados membros e, apenas Angola, Egito, Sudão do Sul, Coreia do Norte, Israel e Myanmar não participam.


Contudo, a OPAQ não possui medidas coercitivas pré-estabelecidas e tampouco possui força policial e, apesar de fazer inspeções para o controle das reservas de armas tóxicas, é dependente das declarações dos Estados-membros da organização acerca da quantidade que possuem de substâncias que podem ser utilizados em armas químicas. Isso porque “o tratado permite que os países tenham um pequeno estoque, altamente controlado, para que possam desenvolver roupas de proteção, máscaras de gás, antídotos e métodos para identificar armas químicas” (BBC, 2022), no entanto, para compostos químicos como o cloro, não há a obrigatoriedade de que o Estado declare para a OPAQ. (ISTO É, 2018).


Mas os casos de disparo de armas químicas não pararam com a Convenção e a OPAQ. O uso de arsenal químico foi utilizado em larga escala pela primeira vez no século XXI durante a Guerra Civil na Síria (2011-presente). O governo de Bashar al-Assad é acusado de disparar gás contra civis em diversas ocasiões desde 2013, sendo os compostos utilizados o gás sarin e, justamente, o cloro. Embora o governo sírio negue o uso de armas químicas, houve uma missão conduzida pela OPAQ em busca de evidências epidemiológicas e ambientais, entrevistas com testemunhas e coleta de resíduos. A organização confirmou que pelo menos dois bombardeios que ocorreram no ano de 2017 foram realizados com armas químicas, e considera os bombardeios na Síria os mais significativos desde Halabja.


O uso de armas químicas se tornou cada vez mais repreensível e condenável pela sociedade internacional. Ao ratificarem a OPAQ, os países se comprometeram em desmanchar o arsenal químico que guardavam até 2007, mas, esse prazo vem sendo adiado ao longo dos anos. Em 2014, a diplomacia da China e do Japão decidiu por destruir o vasto estoque de armas abandonadas pelos japoneses no território chinês. Os Estados Unidos declaram que, por razões técnicas, irão se desfazer completamente do seu arsenal até o fim de 2023, no entanto, em 2017 afirmava que cerca de 90% já foram destruídos (EXAME, 2017).


É de conhecimento geral que a Rússia, protagonista do atual conflito, possui a maior quantidade de armas nucleares, contudo, no que diz respeito à armas químicas, diz oficialmente que não possui mais esse tipo de armamento desde 2017 e, portanto, não está em questão utilizar qualquer tipo de toxinas contra a Ucrânia. No entanto, a cautela da sociedade internacional se dá pelo histórico de ataques russos por envenenamentos à agentes e opositores russos, como ocorreu com Alexei Navalny, em 2020, um envenenamento por novichok, agente químico que ataca o sistema nervoso e foi desenvolvido pela União Soviética (CNN, 2022). Além dessa contrariedade, a atenção dada às ações russas em território ucraniano se expande para a possibilidade de ataques aos locais onde materiais químicos para fins civis são conservados, o que provocaria um uso indireto dessas substâncias para fins de guerra.


Diante do exposto, os elementos históricos aqui apresentados reforçam que, armamentos com tamanho potencial devastador deveriam ser extintos e a Convenção de Paris e a OPAQ sejam respeitadas. Permitir que estas armas perdurem e possam ser utilizadas em conflitos mesmo com uma convenção que as proíbe, além de crime de guerra como já ressaltado, são violações aos Direitos Humanos e ao Direito Internacional. O terror que a ameaça de armas químicas causa refletem nos impactos que traumatizaram não apenas aqueles que dessas armas foram vítimas, mas, de todos que ouvem falar sobre seus efeitos.


 

REFERÊNCIAS


AGÊNCIA BRASIL. Armas químicas abandonadas por japoneses na China na 2ª Guerra serão destruídas. Agência Brasil, 2014. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-11/armas-quimicas-do-japao-abandonadas-na-2a-guerra-mundial-na-china. Acesso em: 27/03/2022.

ALTARES, Guillermo. Por que falamos de seis milhões de mortos no Holocausto? El País, Madri, 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/13/internacional/1505304165_877872.html#:~:text=Em%201946%2C%20o%20Congresso%20Mundial,e%20guetos%20e%20escassez%2C%20800.000. Acesso em: 27/03/2022.

BBC. O que são armas químicas e biológicas que Rússia e Ucrânia se acusam mutuamente de possuir? BBC Brasil, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-60716628. Acesso em: 28/03/2022.

Brasil. Decreto nº 2.977, de 1º de março de 1999. Brasil, 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2977.htm. Acesso em: 29/03/2022.

CARTA CAPITAL. O uso das armas químicas na Primeira Guerra Mundial. Carta Capital, 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/o-uso-das-armas-quimicas-na-primeira-guerra-mundial/. Acesso em: 26/03/2022.

CRIADO, Miguel A. 50 anos depois, agente laranja continua contaminando o solo do Vietnã. El País, 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/16/ciencia/1552710887_506061.html. Acesso em: 26/03/2022.

EXAME. EUA prometem destruir armas químicas até 2023. Exame, 2017. Disponível em: https://exame.com/mundo/eua-prometem-destruir-armas-quimicas-ate-2023/. Acesso em: 29/03/2022.

GUIMARÃES, António. Arms químicas e nucleares. Quantas tem a Rússia e que danos podem causar? CNN Portugal, 2022. Disponível em: https://cnnportugal.iol.pt/guerra/ucrania/armas-quimicas-e-nucleares-quantas-tem-a-russia-e-que-danos-podem-causar/20220324/623b75760cf2c7ea0f212628. Acesso em: 29/03/2022.

ISTO É. Terminar com as armas químicas no mundo é o objetivo da OPAQ. Isto É, 2018. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/terminar-com-as-armas-quimicas-no-mundo-e-o-objetivo-da-opaq/. Acesso em: 27/03/2022.

KORTUNOV, Andrey. Why Chemical weapon is more dangerous than nuclear. Russian Council, 2018. Disponível em: https://russiancouncil.ru/en/analytics-and-comments/analytics/why-chemical-weapon-is-more-dangerous-than-nuclear/. Acesso em: 26/03/2022.

MAGNO, Bruno. Segunda Guerra Sino-Japonesa: Gênese de um modo asiático de fazer a guerra? UFRGS, Porto Alegre, 2015. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/140739/000989147.pdf?sequence=1. Acesso em: 27/03/2022.

OPCW. About Us. OPCW, 2022. Disponível em: https://www.opcw.org/about/history. Acesso: 28/03/2022.

POLITIZE. O que são armas químicas e por que elas devem ser proibidas? Politize, 2018. Disponível em: https://www.politize.com.br/armas-quimicas-por-que-sao-proibidas/. Acesso em: 26/03/2022.

RUIC, Gabriela. Agência confirma possível uso de armas químicas em ataques na Síria. Exame, 2018. Disponível em: https://exame.com/mundo/agencia-confirma-uso-de-armas-quimicas-em-ataques-na-siria-em-2017/. Acesso em: 28/03/2022.

VEJA. O massacre de Halbja: uma Pompeia destruída pela mão humana. Veja, 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/reveja/o-massacre-de-halabja-uma-pompeia-destruida-pela-mao-humana/. Acesso em: 27/03/2022.


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1 Comment


João Víctor
João Víctor
Apr 08, 2022

Muito bom saber, de uma forma mais aprofundada sobre as armas químicas e de uma maneira bem clara, Stella Nunes mandou muito bem nesse artigo 👏🏽👏🏽👏🏽

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