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Géssica Lima / OBSERVATÓRIO

A Mulher como Arma de Guerra: o Abuso do Corpo Feminino como Truque Contra o Inimigo

Atualizado: 27 de mai. de 2022

Durante muito tempo a violação do corpo feminino foi visto apenas como uma consequência das muitas guerras que o mundo já enfrentou, sendo essa violação por meio de abusos, exploração sexual, assédio sexual, estupros dentre outros. Motivado pela desigualdade de gênero, e intensificada durante os conflitos armados¹, onde mulheres sofreram e sofrem estupros de forma sistêmica, utilizando-as como armas contra o inimigo.


Tendo em vista que desde o princípio da humanidade a mulher foi objetificada pelo seu próprio corpo, seu modo de agir, sendo considerada como uma propriedade de seu pai e em seguida de seu marido. O estupro, nesse contexto, era visto como uma violação contra a honra e o patrimônio do homem, jamais contra a mulher. Assim, a relação de poder foi estruturada de forma desigual, sujeitando as mulheres a esse sistema na qual era submissa ao homem, ocupando uma posição inferior dentro da hierarquia e lógica das sociedades patriarcais, tendo o seu desenvolvimento pleno impedido por aspectos sociais, culturais e históricos. O controle sobre o corpo das mulheres continua assentado numa legislação masculina e misógina, que busca reduzi-las a instrumento passivo e subtrair-lhes a possibilidade de decisão própria, como se é possível identificar ao longo da história, através de falas, atitudes, escritos e no homem em si. Como na seguinte fala “a mulher tem uma missão a cumprir no mundo: a de completar o homem. Ele é o empreendedor, o forte, o imaginoso. Mas precisa de uma fonte de energia (…) a mulher o inspira, o anima, o conforta (…) a arte de ser mulher exige muita perspicácia, muita bondade. Um permanente sentido de alerta para satisfazer às necessidades dos entes queridos” ², encontrada em um periódico brasileiro.


As violações impostas sobre as mulheres seguiu por ser considerada uma consequência dos conflitos armados durante muitos anos, como por exemplo na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), Massacre de Nanquim (1937) e no genocídio de Ruanda (1994), deixando apenas de ser tratado como uma consequência durante a Guerra de Bósnia (1992-1995)³, quando o estupro passou a ser enxergados como estratégia, como um mecanismo de atingir o inimigo, tendo como principal objetivo a limpeza étnica, ou como fator motivacional a raça ou etnia. Para Kimberlé Crenshaw⁴, o corpo feminino foi e é - nas muitas guerras que acometem o século XX e XXI - tratado como objeto, um instrumento para se alcançar um “propósito maior” nas guerras. Mas definitivamente não se pode tratar essa prática sendo apenas mais um efeito da guerra⁵ e sim uma violência empregada sobre as mulheres que apenas é intensificada durante esses conflitos bélicos, a fim de concretizar uma violação explícita de gênero⁶. De acoro com Diken e Laustsen (2005) o estupro como arma de guerra é caracteristico de uma agressão sexual cometida por um oficial de um dos exercitos durante a guerra, pois o estupro manipulado como tática de guerra possui um objetivo claro e predeterminado que é sobretudo semear o trauma, enfraquecendo, ou até mesmo destruindo os laços familiares e difundir um ideal de “purificação” de etnias em larga escala.

Mesmo após 32 anos do Tribunal ad hoc para a Ex-Iugoslávia, onde se foi estipulado que os estupros durante os conflitos bélicos são um crime tríplice, pois são um crime de guerra, de genocídio e contra a humanidade, esses casos seguem crescendo cada vez mais. Analisando a atual situação de guerra em que se encontra Europa Centro-Oriental, mas precisamente o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, são cada vez maiores o número de relatos das sobreviventes do ataque que vem sofrendo de soldados russos. Diversas são as matérias trazendo relatos de mulheres ucranianas vítimas e sobreviventes das mais assustadoras e repugnantes situações. A BBC News⁷ transmitiu logo no início de abril um relato da Sra. Anna - nome fictício, afim de se preservar a sua segurança -, que além de ser estuprada por um soldado checheno aliado a Rússia teve que assistir seu marido morrer com um ferimento a bala no abdômen ao tentar salvá-la do seu agressor, o soldado checheno só interrompeu a sessão pungente após a chegada de uma tropa de soldados russos que o impediram de continuar. Entretanto continuaram na casa da família por dias, levando objetos pessoais do falecido. Além do abuso sexual, Anna que hoje já resgatada e longe de um lugar que um dia chamou de casa também sofreu abuso psicólogico e o medo constante de voltar a ser estuprada em todos os dias que os soldados continuaram em sua residência.


A defensora pública da Ucrânia, Lyudmila Denisova acusou soldados russos de violentarem cerca de 25 garotas e mulheres com idade entre os 14 e 24 anos, na cidade de Bucha. Dessas, nove ficaram grávidas. Em seu relato a BBC News ela disse: "Os militares russos disseram que as violentariam de uma forma que elas jamais iriam querer contato sexual com outro homem, a fim de preveni-las de terem crianças ucranianas." Trazendo à tona o ideal de limpeza étnica propagado em 1990 durante a guerra da Bósnia. Assim como o caso da jovem de 16 anos que foi violentada na rua, em frente a sua irmã de 25 anos, onde os soldados gritavam durante o ato “Isso acontecerá a toda prostituta nazista”. Casos e mais casos como esses são encontrados em matérias por toda a internet, nas mídias sociais e nos telejornais.


Sendo uma clara violação contra a mulher, como especificado na Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a mulher, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no ano de 1993, que a define como “qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada”⁸.


Crimes de guerra são definidos como violações das normas do direito internacional que apresentam especial gravidade, por envolverem ações desumanas e cruéis e serem de qualquer modo desproporcionais ao fim que o beligerante das práticas preestabeleceu⁹. Pelos Crimes de guerra são tidos como responsáveis não só os Estados em nome e no interesse dos quais eles são cometidos, mas também, pessoalmente, os indivíduos que os executam¹. Desse modo é incompreensível que investigações sigam sendo realizadas e nenhum resultado obtido. Os atos do Governo Russo contra a Ucrânia, contra os civis ucranianos são crimes de guerra e precisam ser julgados como tais.


A desigualdade de gênero, o patriacarlismo e a submissão empregada às mulheres estão presentes historicamente em nossa sociedade a séculos, sendo o estupro uma violência que acontece ao longo dos tempos. O estupro, o abuso psicólogico, a violência contra a mulher de forma geral não deve ser entendido somente como um dos danos colaterais mais crueis de uma guerra, pois é em muitos casos empregado como uma verdadeira arma, com potencial de destruição similar a bombas atômicas.


Desta forma, há a importância de considerar os direitos das mulheres como norma jus cogens¹¹, para poder garantir o direito ao desenvolvimento feminino. A apatia daqueles que ocupam cargos de poder e o agendamento de temas relevantes aos Estados - que ignoram as diversas manifestações da violência de gênero - pode e deve ser tido como um atenuante na corroboração da não coibição das diversas formas de violência. Isso porque parte-se para o entendimento de que os Estados e nações são como configurações e construções históricas que regulam as atividades sexuais na manutenção e garantia da reprodução biológica e social ¹².


Apontando mais uma vez Crenshaw, salienta-se de seus apontamentos a compreensão da violência sexual quando utilizada como arma de guerra e sua relação com os avanços dos estudos de gênero.


Essa violência pode ser concebida como uma subordinação interseccional intencional, já que o racismo e o sexismo manifestados em tais violências refletem um enquadramento racial ou étnico das mulheres, a fim de concretizar uma violência explícita de gênero. Tragédias recentes na Bósnia, em Ruanda, no Burundi e em Kosovo ilustram tristemente o fato de que as longas histórias de violência étnica contra as mulheres não estão relegadas a um passado distante. Enquanto esses são exemplos mais recentes e conhecidos de violência interseccional, essa vulnerabilidade específica não assumiu papel importante apenas no conflito armado, mas também outros contextos (CRENSHAW, 1979, p.168).

Desse modo, se vale ter em mente que é um problema para todos, mulheres e homens, adultos e crianças, ja que não só as mulheres são atingidas pelas consequências do estupro na guerra, suas famílias e seus filhos frutos do estupro também são. Assim, não só o presente é tocado pelo horror, como também o futuro e o passado.



 

¹ UN, 1994, p.3 - Declaração da Eliminação da Violência contra a Mulher.

² O Cruzeiro, 15 de março de 1953.

³ A guerra da Bósnia fez parte do processo de desintegração da antiga Iugoslávia, ocorrido durante a década de 1990, e foi marcada pelos genocídios contra a população muçulmana.

Defensora dos direitos civis norte-americana. É uma das principais estudiosas da teoria crítica da raça.

HAYDEN, 2000.

CREENSHAW, 2002, p. 178

LIMAYE, Yogita. Ukraine conflict: 'Russian soldiers raped me and killed my husband', BBC News Europe, Ukraine, 11, abril 2022. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-europe-61071243>.

UN, 1993, p.3, tradução livre.

Norma 156, Definição de crimes de guerra. Volume II, Capítulo 44, Seção A.

¹Bobbio, 1998.

¹¹ São as normas que impõem aos Estados obrigações objetivas, que prevalecem sobre quaisquer outras.

¹² Jesus, 2004.

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