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Qual a origem da desigualdade?



Quem se propõe a responder essa pergunta é Jean-Jacques Rousseau, intelectual suíço do século XVI, nasce em Genebra aos 28 dias do mês de junho de 1712. Após aprender latim e entrar em contato com a retórica, Rousseau, deslumbrado pela recém descoberta “arte de pregar”, resolve se tornar pastor (notadamente do protestantismo calvinista), mas a carência de recursos impediu que o sonho se tornasse possível.

Evidentemente a decepção tornou-se uma ferida na personalidade do (ainda) jovem filósofo: começa a ser semeado, então, um sentimento de inferioridade que, aparentemente, foi o responsável por trazer à tona a ideia-base para o Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens.

Livro que atingiu grande sucesso e foi, junto com O Contrato Social, responsável por trazer grande reconhecimento para o autor. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homenstraz uma pergunta simples de se fazer e pensar, mas muito complicada de se responder: onde, quando e/ou como surge a “desigualdade” entre os homens? Rousseau começa então a analisar toda a estrutura evolutiva do ser humano, desde o seu estado de natureza até os dias de “hoje” (melhor dizendo, até o século XVI). Nessa “Primeira Parte” ele admite que existia uma competição ferrenha entre os homens no estado de natureza e que não era natural que estes se unissem para alcançar um bem comum. Todavia, diferentemente do que diz Hobbes, Rousseau acredita que o homem chegava a ser “tímido” e estaria “sempre disposto a fugir” evitando ao máximo contatos frontais e conflitos diretos: estaria sempre assustado e impressionado com o novo e, mais ferozes do que maus, estariam tão preocupados com a sua conservação que não teriam tempo de iniciar contendas, e essas, se iniciadas, raramente seriam sangrentas.

Outra discussão que surge ao longo do livro é travada, mais uma vez, entre as concepções hobbesiana e rousseauniana do homem, principalmente no estado de natureza: Rousseau contradiz explicitamente Hobbes, e diz que o ser humano não é naturalmente mal simplesmente por que bem e mal não existiam até o surgimento das leis e normas sociais modernas. O argumento sustentado pelo autor é o de que, não havia necessidade do clima de guerra de todos contra todos pois “sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado de nossa conservação é menos prejudicial à dos outros, esse estado era, por conseguinte, o mais próprio à paz; […] é impossível imaginar porque, nesse estado primitivo um homem teria mais necessidade de outro homem do que um macaco ou um lobo do seu semelhante […]”. As maldades são fruto de um conjunto de paixões e vícios que surgem com a sociedade moderna, paixões essas que os selvagens não tinham conhecimento nem necessidade. Rousseau também não via, necessariamente, bondade no homem: ele buscou compreender a sua naturalidade e foi capaz de analisá-lo excluindo deste as “luzes” adquiridas ao longo dos séculos. Rousseau não pintou o homem natural como um grande mestre em retórica, mas como o animal selvagem que realmente era. Finalmente, o autor admite, ao fim da “Primeira Parte”, que a desigualdade no estado de natureza tem influência quase nula nas relações humanas.

A “Segunda Parte” do ensaio diz respeito à análise da sociedade da época: é a partir desta análise que Rousseau identifica o início da “real desigualdade entre os homens”. Essa surge com (ou de) a propriedade privada. “O primeiro que tendo cercado um terreno e se lembrou de dizer: isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.” Enquanto ser para si, o homem vivia feliz. Mas é quando se começam as comparações, ou seja, quando o homem se percebe em outros de sua espécie, quando estes começam a se unir, e pelos acasos da História formam as comunidades primitivas que deram origem ao que hoje chamamos de sociedade moderna, é justamente nesse ponto que surgem as diferenças, leia-se a desigualdade. Quando o homem selvagem abandona o seu caráter imediatista e se preocupa muito mais com as previsões e provisões, é quando se percebe “[…] que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário […]”. O próprio Estado surge, então, do interesse coletivo de se manter em segurança, já que o conflito põe em risco a propriedade.

Seguindo o raciocínio de Rousseau, essa série de citações parecem perfeitas para finalizar a análise do texto: “Se seguirmos o progresso da desigualdade […] veremos que o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi o seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. […] a condição de rico e pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e de fraco pela segunda, e pela terceira a de senhor e escravo […]. […] é aqui [,na sociedade moderna,] que tudo conduz exclusivamente à lei do mais forte, e, por conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele pelo qual começamos, sendo que um era o estado de natureza na sua pureza, e esse último é o fruto do excesso de corrupção. [Em uma palavra,] a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira sua força e o seu crescimento do seu desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis”.


Apesar de rápida demais em alguns pontos e demorada demais em outros (talvez pelas próprias necessidades para afirmação teórica na época) Origem e os Fundamentos da Desigualdade é, de maneira geral, bem organizado e simples de compreender. O interesse de Rousseau não era acessar somente grandes intelectuais: ele tinha consciência de que estes talvez não se interessassem pelo tema. Adicionando pensamentos próprios, me arrisco a dizer que talvez o que Rousseau estivesse procurando fosse apoio para reformar a sociedade de maneira lenta, fazendo o homem acreditar na possibilidade de mudança e no seu potencial como indivíduo. Infelizmente, muitas das mais brilhantes mentes assimilaram as teorias contrárias a essa visão de maneira tão permanente que, talvez, a própria “natureza humana” tenha sido modificada ao longo dos anos.

É possível afirmar que a natureza humana, segundo Rousseau, esteja um pouco “romantizada”. Da mesma maneira não se pode dizer que isso influenciou o resultado alcançado por Origem e os Fundamentos da Desigualdade: o cerne do que é proposto não é a natureza humana em si, como dizia Hobbes, mas a maneira como esta foi corrompida pela emergência dos valores modernos. E a afirmação faz muito sentido. Num ambiente em que tudo é de todos e não existem leis mas que, ao mesmo tempo, não existe obrigação de coexistência, não haveria necessidade de guerras e conflitos por qualquer coisa que seja. A propriedade privada e o Estado protetor da primeira formam uma combinação perigosa, capaz de internalizar nos indivíduos uma sensação de desigualdade permanente, natural e imutável. O homem que vivia só e com isso não afetava seus semelhantes (e por isso “coexistia” pacificamente) agora é obrigado a viver junto e a presenciar as mais inescrupulosas injustiças, muitas vezes praticadas contra o seu próprio ser.

É também evidente que o Estado, se organizador da sociedade civil, é um instrumento poderoso e capaz de canalizar as luzes adquiridas ao longo dos séculos na direção do bem comum. Mas será ele, possível? Ou ainda: seria ele a melhor opção? O mais fascinante sobre o Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens é sua incrível (e infeliz) capacidade de se manter atual e estar sempre trazendo para dentro das nossas mentes a discussão, já lendária entre Rousseau e Hobbes: seria o homem mau porque a sociedade assim o fez, ou seria a sociedade desigual justamente por ser formada por homens que são, por natureza, perversos e egoístas?


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