A epidemia de AIDS como fator regulatório e de construção de políticas globais.
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Introdução
A emergência da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) nas décadas de 1980 e 1990 representou um ponto crucial na história da saúde pública, desencadeando uma série de desafios sociais, políticos e de saúde em escala global. Dessa forma, se faz necessário analisar esta epidemia sob a lente da Teoria Queer, e por uma perspectiva de construção heteronormativa de uma sociedade global (Butler, 2003). Representando um desafio significativo tanto para o Brasil quanto para a África Subsaariana, a aids se tornou uma doença que está presente até os dias atuais (UNAIDS,2023).
Nesse contexto, é essencial adotar diversas abordagens em seu enfrentamento, como exemplifica o papel fundamental desempenhado pelo Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, ao financiar programas e campanhas de prevenção e tratamento em diversos países. Contudo, o estigma e a culpa associados à doença persistem como desafios significativos, dificultando os esforços de combate à epidemia e impactando negativamente a saúde mental das pessoas afetadas (UNAIDS,2023).
Seção 1: Histórico da AIDS, Transmissão e Fatores de Risco sob a lente da Teoria Queer.
A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) foi identificada no início dos anos 80 (Ramos Neto,2004). Causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), que compromete o sistema imunológico, tornando o corpo vulnerável a infecções e cânceres. Os primeiros casos desta doença começaram a surgir nos Estados Unidos, tendo como alvo, em seu princípio, a comunidade LGBTQIA+ (Manual MSD,2013). Dessa forma, a sociedade passou a utilizar a epidemia de aids como agente regulatório para reprimir e segregar quaisquer segmentos que sobreponham o heterossexual.
Transmitida através de fluidos corporais como sangue, sêmen, fluidos vaginais e leite materno, a doença se alastrou por todo o Sistema Internacional (SI), sendo rotulada como uma "doença gay", agravando o estigma e a marginalização das comunidades LGBTQIA+ (Arca,2009). Ao analisarmos através da teoria queer, optamos por uma perspectiva que se concentra na construção social e cultural de identidade, de sexualidade e poder. Isso chama nossa atenção para a estrutura das hierarquias e normas sociais já estabelecidas em nossa sociedade, contribuindo assim para o segregamento das pessoas afetadas por essa doença. (Butler, 2003).
A epidemia influenciou e transformou as percepções sociais sobre corpos, sexualidade e saúde, ao ser direcionada para grupos marginalizados como homens gays, bissexuais, transgêneros e usarios de drogas injetáveis. Por possuir um estigma enraizado em ideias normativas de sexualidade e gênero, o acesso ao tratamento e políticas públicas de combate perpetuam a desigualdade no acesso ao cuidado e prevenção da aids, especialmente para aqueles que enfrentam múltiplas formas de marginalização, como a comunidade negra, pessoas de baixa renda e a população do Sul Global. (UNAIDS,2022).
Sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder (Foucault,1999, p. 100).
Analisar a saúde pública por meio da forma preconceituosa que adotou no início da epidemia de aids é imprescindível. Em síntese, as questões de poder da época influenciaram as respostas sociais e políticas a essa crise de saúde global. Ao adotar uma abordagem discriminatória e moralista desde os primeiros casos, a saúde pública contribuiu para a perpetuação de preconceitos que ainda hoje dificultam uma resposta eficaz e equitativa ao HIV/AIDS, refletindo uma interseção complexa entre políticas de saúde, justiça social e direitos humanos, impedindo a implementação de uma abordagem inclusiva e abrangente na educação e prevenção da aids que desafia as normas heteronormativas, reconhecendo e respeitando a diversidade de experiências sexuais e de gênero. (Dirceu B. Greco, 2008).
Seção 2: Impacto Global da Epidemia.
A aids teve um impacto substancial tanto no contexto brasileiro, quanto na região da África Subsaariana. No Brasil, a epidemia iniciou na década de 1980, emergindo como uma preocupação significativa em termos de saúde pública. No entanto, o Brasil implementou políticas de prevenção e tratamento que resultaram em uma redução marcante nas taxas de infecção pelo HIV e na mortalidade relacionada à aids. Por outro lado, a África subsaariana enfrentou e continua a enfrentar uma grande dificuldade na prevenção e no combate às consequências do vírus. A região se tornou uma das mais afetadas pela epidemia, com altas taxas de infecção e um número expressivo de órfãos em decorrência da doença. A escassez de acesso a tratamentos adequados, a pobreza e a desigualdade social são algumas das questões que contribuem para a propagação do vírus e dificultam o controle da epidemia, o que também repercute na redução da taxa de natalidade do país. (UNAIDS,2023).
As medidas de combate à aids implementadas pelo governo brasileiro inicialmente foram marcadas por estigma, discriminação e violência. Por enfrentar uma crescente epidemia de aids, tornando-se o segundo país com o maior número de casos registrados, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, a abordagem adotada frequentemente recorria a soluções moralistas e religiosas, refletindo a falta de compreensão e o estigma associado à doença. A epidemia de aids atingiu duramente pessoas como o sociólogo Eder Sader e o cartunista Henfil, ambos hemofílicos que necessitavam de transfusões sanguíneas frequentes. Para a população hemofílica do Brasil, a aids representou uma devastação sem precedentes, em decorrência de políticas de saúde pública que, em vez de focar na prevenção e no cuidado eficazes, muitas vezes contribuem para a estigmatização e marginalização das pessoas afetadas pela doença (Brasil, 2023).
O sangue não pode ser uma arma contra o ser humano, mas, sim, a favor dele. Não é possível que sobrepaire, como hoje existe no país, essa incerteza. Toda vez que se tem necessidade de fazer uma transfusão de sangue, fica-se em pânico (Brasil, 2023).
Por ser a região mais afetada do Sistema Internacional, a África Subsaariana tem adotado métodos extremos, como exemplificado pela Uganda, que implementou a lei Anti-Homossexualidade em 2023 por meio do seu parlamento. Pesquisas na África Subsaariana indicam que, em países que criminalizam a comunidade LGBTQIA+, a prevalência do HIV entre homens que fazem sexo com homens é cinco vezes maior do que em países sem leis discriminatórias. A institucionalização da discriminação e do estigma distanciara as comunidades vulneráveis dos serviços de resposta ao HIV. Este projeto de lei contrasta com uma onda de descriminalização que tem ocorrido no continente africano e em outras partes do mundo, onde legislações ultrapassadas, prejudiciais e punitivas têm sido gradualmente removidas. (UNAIDS,2023).
3.Respostas à Epidemia - O Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária
O combate à epidemia se deu de diferentes formas, variando de acordo com a realidade de cada região. O Brasil adotou diversas medidas de prevenção, como a distribuição gratuita de medicamentos, campanhas de conscientização, programas de educação sexual nas escolas e a promoção do uso de preservativos, visando contribuir para controlar a disseminação do vírus, e melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem com ele. Além disso, o país tem buscado, diariamente, promover a inclusão e o cuidado das pessoas que possuem a AIDS, combatendo o estigma e a discriminação.
O Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária desempenha um papel crucial, e de suma importância na mitigação da epidemia, atuando na linha de frente por meio de financiamentos de programas e iniciativas, tais como campanhas de conscientização e intervenções específicas, em uma variedade de nações fortemente impactadas pela doença. O fundo canaliza recursos e direciona para a prevenção, tratamento e cuidados relacionados a AIDS, contribuindo para a ampliação de acesso a medicamentos, testagem, programas de educação em saúde e apoio às comunidades afetadas, diminuindo as novas infecções por HIV de 38%, de 2,1 milhões para 1,3 milhões, de 2010 até 2022 (THE GLOBAL FUND, 2023). O Fundo Global também tem sido fundamental na fomentação de parcerias entre entidades governamentais da sociedade civil e o setor privado.
O estigma, a discriminação e a criminalização de populações-chave (travestis e pessoas trans, gays e homens que fazem sexo com outros homens, profissionais do sexo, pessoas em privação de liberdade e pessoas que fazem uso de drogas injetáveis) representam uma barreira para o seu acesso aos serviços de HIV, custando vidas e impedindo o mundo de atingir as metas acordadas para o fim da AIDS. ( UNAIDS, 2022)
O medo de sofrer discriminação e a culpa por estar vivendo com a aids são meios que dificultam o combate à doença, se tornando também um ponto a ser combatido. Estudos, pesquisas e entrevistas conduzidas pela instituição UNAIDS revelaram que uma a cada três pessoas declaram ter vergonha de ser soropositivo(a) e se sentem culpados por suas condições de saúde, o que afirma e corrobora a noção de que viver com a HIV/AIDS engendra percepções e emoções que impactam não somente o corpo, o bem-estar físico e as relações interpessoais, mas também a saúde mental e a relação consigo mesmo. (UNAIDS,2019)
Conclusão
Apesar dos desafios, esforços têm sido feitos para ampliar o acesso a medicamentos, promover a educação sexual e combater os estigmas associados ao HIV/AIDS. Em todos os cenários abordados, o impacto da aids ressalta a importância de uma abordagem abrangente que englobe tanto a prevenção quanto o tratamento, demandando a implementação de políticas públicas eficientes, acesso universal a tratamentos, suporte psicossocial e a necessidade de conscientização e educação contínua acerca da prevenção, cuidados e atenção às necessidades sociais das pessoas afetadas pela enfermidade. A superação dos estigmas associados à aids, requer um esforço coletivo para promover a compreensão, empatia e solidariedade para com os indivíduos afetados. É crucial reconhecer que a aids não está confinada a uma única comunidade ou grupo específico, mas sim afeta indivíduos de todas as origens. Nesse sentido, a atuação do Fundo Global de Combate à aids assume um papel significativo para avançar em direção a um futuro livre da aids, mediante investimentos em um compromisso com os direitos humanos e a dignidade das pessoas convivendo com a doença.
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Estudo revela como o estigma e a discriminação impactam pessoas vivendo com HIV e AIDS no Brasil(2019) Disponível em: https://unaids.org.br/2019/12/estudo-revela-como-o-estigma-e-a-discriminacao-impactam-pessoas-vivendo-com-hiv-e-aids-no-brasil/
Acesso em: 30 de maio 2024.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.
Greco, Dirceu B. (2008). A epidemia da Aids: impacto social, científico, econômico e perspectivas. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/wDqrgD5DQM4YZgbqjWbSyYh/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 30 maio 2024.
HIV/AIDS: relato sobre epidemia, terapias antirretrovirais. Brasil Escola: Monografias. Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/saude/hiv-aids-relato-sobre-epidemia-terapias-antiretrovirais-.htm. Acesso em: 30 maio 2024.
Infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). (s.d.). Manual MSD. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/infec%C3%A7%C3%B5es/infec%C3%A7%C3%A3o-pelo-v%C3%ADrus-da-imunodefici%C3%AAncia-humana-hiv/infec%C3%A7%C3%A3o-pelo-v%C3%ADrus-da-imunodefici%C3%AAncia-humana-hiv. Acesso em: 30 maio 2024.
O caminho que põe fim à AIDS: Relatório Global do UNAIDS 2023. Genebra: Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS; 2023. Licença: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Acesso em: 30 maio 2024.
Senado Federal. (2022). Aids chegou ao Brasil há 40 anos e trouxe terror, preconceito e desinformação. Senado Notícias, https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/aids-chegou-ao-brasil-ha-40-anos-e-trouxe-terror-preconceito-e-desinformacao. Acesso em 30 maio 2024.
THE GLOBAL FUND. Results report 2023. Genebra: The Global Fund to Fight AIDS, Tuberculosis and Malaria, 2023. Disponível em: https://archive.theglobalfund.org/media/13263/archive_2023-results-report_report_en.pdf. Acesso em: 30 maio de 2024.
UNAIDS Brasil. (2022). UNAIDS alerta que as desigualdades estão bloqueando o fim da pandemia de AIDS. Disponível em: https://unaids.org.br/2022/11/unaids-alerta-que-as-desigualdades-estao-bloqueando-o-fim-da-pandemia-de-aids/. Acesso em: 30 maio 2024.
UNAIDS Brasil. (2023). Uganda: UNAIDS demanda a não promulgação de lei que ameaça a saúde pública. Disponível em: https://unaids.org.br/2023/03/uganda-unaids-demanda-a-nao-promulgacao-de-lei-que-ameaca-a-saude-publica/. Acesso em: 30 maio 2024.
Vitiello, Gabriel Natal Botelho. (2009). A aids em cena: os primeiros protagonistas da maior epidemia no final do século xx. Arca Fiocruz, Número/Identificador do recurso. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/3999. Acesso em: 30 maio 2024.

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