Do Sul Estereotipado ao Norte Premiado: Gênero, Colonialidade e Espetáculo em Emilia Pérez
- Diz Aí, ASCOM | Bruna Santana
- 27 de jun.
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Diz Aí, ASCOM!
Por Bruna Santana
Com amplo reconhecimento e premiações internacionais, Emília Pérez (2024), produzida pelo francês Jacques Audiard, apresenta uma narrativa sobre crime, redenção e identidade de gênero. A história acompanha Manitas Del Monte, chefe do narcotráfico mexicano que, ao passar por uma transição de gênero, busca romper com seu passado violento e recomeçar a vida como Emília Pérez.
Apesar do sucesso no Norte Global, o filme levanta tensões ao abordar temas profundamente localizados com uma visão distanciada e estereotipada da realidade. A partir da teoria queer e do pensamento decolonial, esta análise questiona como o filme reduz experiências complexas a uma caricatura para consumo internacional.
Ao longo do filme, o México — e, por tabela, a América Latina — é mostrado como palco de barbárie constante: feminicídio, narcotráfico e miséria surgem sem contexto ou explicação, como se fossem elementos naturais da paisagem. O formato musical funciona como um filtro estético, transformando violência, corrupção e identidade de gênero em canções com apelo visual desconexo e emoções genéricas, o que contribui para o distanciamento dessas experiências — que são reais para muitas pessoas no Sul Global. Segundo Mignolo (2007), esse tipo de representação segue uma lógica colonial, onde o Norte Global (como EUA e Europa) mantém o controle sobre as formas de pensar e narrar o Sul Global (como América Latina e África). Para Gloria Anzaldúa (2021, p. 86), essa dinâmica representa “nossa morte lenta pela ignorância da cultura branca dominante”.
Essa estética distanciada também se manifesta na forma como o filme trata a identidade da personagem Emília. A narrativa sugere uma redenção por meio da mudança de gênero da protagonista, mas essa transformação é construída dentro de uma lógica estética — destacando a cirurgia de redesignação sexual — e simbólica que reforça noções idealizadas e universais sobre identidade (Klausen, 2023), sem considerar as complexidades socioculturais latino-americanas. Além disso, cria “um identitarismo pitoresco; que não estimula inequivocamente uma política queer.” (Klausen, 2023, p. 121).
A falta de vozes locais — especialmente de pessoas queer do Sul Global — faz com que o filme transforme essas vivências em uma espécie de espetáculo pensado para emocionar e entreter o público externo, esvaziando sua dimensão ética e política real. Em contraste, performances de gênero como as de Ney Matogrosso no Brasil dos anos 70 e 80, em plena ditadura militar, mostram a relevância de expressões artísticas que nascem em contextos específicos e carregam resistência simbólica.
Ao ignorar esse tipo de enraizamento, o filme se desconecta da realidade que alega representar — e esse afastamento não ocorre por acaso. É justamente esse mecanismo que Maria Lugones (2008) descreve ao analisar a colonialidade: uma forma de dominação que atua não só pela força, mas também pelo apagamento de modos próprios de existir — só reconhecendo essas existências quando adaptadas aos moldes do olhar ocidental.
Nesse sentido, o filme constrói uma imagem do México como o “outro” — um reflexo sombrio que o Norte Global tenta controlar, corrigir ou interpretar a partir dos seus próprios valores. É como se o país fosse visto como uma versão distorcida e problemática, que precisa ser consertada.
Essa ideia se aproxima do que a escritora Gloria Anzaldúa (2021) chama de “duplo sombrio”: aquilo que o Norte rejeita, mas que, na verdade, faz parte de si. É também assim que a América Latina costuma ser tratada — como alteridade, ou seja, um “outro” exótico e inferior, que reforça a imagem de superioridade do Norte. Quando o cinema repete esse olhar, ele esvazia a complexidade da nossa realidade e contribui para manter de pé antigas hierarquias coloniais sob o disfarce de empatia e inclusão.
Os bastidores, elenco e direção também não ficaram livres de controvérsias, reforçando a crítica construída até aqui. O diretor Jacques Audiard admitiu não ter feito uma pesquisa profunda sobre o México e, depois, afirmou que o espanhol seria “idioma de pobres e migrantes” (O Globo, 2025), declaração que reforça visões etnocêntricas. Essas falas contradizem seu discurso de encantamento com o país e indicam uma relação de apropriação seletiva e superficial da cultura mexicana.
A protagonista espanhola Karla Sofía Gascón também se envolveu em polêmicas por postagens com falas xenofóbicas e preconceituosas, o que levou à sua exclusão dos materiais promocionais do Oscar (CNN Brasil, 2025). Já a atriz Zoe Saldaña defendeu o filme afirmando que ele não era sobre o México, mas sobre mulheres universais (Terra, 2025), reforçando a desconexão com o contexto local e o apagamento cultural na narrativa.
Em resumo, Emília Pérez busca explorar temas como identidade e transformação, mas falha ao se apoiar em olhares externos distantes das realidades que pretende retratar, confirmando a tese da caricaturização das subjetividades, convertendo experiências complexas em simplificações para entretenimento internacional. A ausência de escuta e participação genuína de vozes do Sul Global revela a persistência de uma lógica colonial na produção cultural, onde o outro é representado, mas raramente reconhecido como sujeito com direito de contar sua própria história. Representar não é apenas falar sobre alguém, mas ouvir, compartilhar e construir junto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: la nueva mestiza. Madrid: Capitán Swing Libros, 2021.
CNN BRASIL. "O que Karla Sofía disse é indesculpável", diz diretor de "Emilia Pérez". 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/o-que-karla-sofia-disse-e-indesculpavel-diz-diretor-de-emilia-perez/. Acesso em: 6 jun. 2025.
KLAUSEN, J. C. Teoria queer nas Relações Internacionais. In: SOUZA, N. M. F. de; BARASUOL, F. B.; ZANELLA, C. K. (org.). Feminismo, Gênero & Relações Internacionais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2023. p. 102–132.
LUGONES, M. Colonialidade e gênero. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p. 51–81.
MIGNOLO, W. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial, 2007.
O GLOBO. Diretor de Emilia Pérez levanta polêmica ao dizer que espanhol é 'idioma de pobres e migrantes'. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ela/gente/coluna/2025/02/diretor-de-emilia-perez-levanta-polemica-ao-dizer-que-espanhol-e-idioma-de-pobres-e-migrantes.ghtml. Acesso em: 6 jun. 2025.
TERRA. 'Não fizemos um filme sobre o México', diz Zoe Saldaña sobre críticas a 'Emilia Pérez' após Oscar. 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/entre-telas/filmes/nao-fizemos-um-filme-sobre-o-mexico-diz-zoe-saldana-sobre-criticas-a-emilia-perez-apos-oscar,14abc5576bf80f5384633f56578d8f73xjf50plx.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
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