Acontecimentos internos recentes no cenário político brasileiro fizeram ressurgir o debate a respeito da laicidade do Estado. O que significa um Estado laico? O Brasil pode se encaixar nesse conceito? Veremos de que forma se dá a formação de um país laico e de que forma o Brasil vem se comportando nesse panorama.
Não é tarefa fácil definir um Estado laico. Assim como na democracia, é mais fácil dizer o que ela não é. Faz-se necessária, então, uma distinção entre a relação religião versus política. O erro mais comum cometido ao se falar de Estado laico é confundi-lo com um Estado ateu. O ateísmo enquanto direcionamento político de um país significa a adoção da não religião, da proibição de cultos religiosos e manifestações de fé. Um Estado ateu entende que a religião é causa de alienação e, busca incessantemente acabar com as mesmas dentro de seus limites territoriais. Era o posicionamento, por exemplo, da ex-URSS e de tantos outros países comunistas, como a China.
Um Estado laico também não é um Estado denominado Confessional. Ser confessional significa dizer que existe uma religião oficial no país, agindo contra algumas, tolerando outras e beneficiando financeiramente e politicamente aquela oficial. O Brasil, por exemplo, já foi um Estado Confessional em seus tempos de Império.
O que seria então um Estado Laico, agora que já se sabe o que ele não é? Laicidade significa, portanto, o distanciamento político das questões religiosas, abarcando, entretanto, o que é colocado na Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 18º:
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
Ou seja, o Estado tem o dever de garantir, através de políticas públicas, o direito à livre escolha e manifestação de sua religião por parte de sua população. Este direito, em um país multicultural como o Brasil se dá, portanto, às diversas religiões (catolicismo, protestantismo, religiões de matriz africana e tantas outras), sem privilégio a nenhuma delas especificamente.
O Brasil não é um Estado ateu e nem tampouco Confessional. Na Constituição Federal de 1988 não existe explicitamente o posicionamento laico do país, porém existe no Artigo 19º o seguinte parecer:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Existe aí, portanto, um princípio de laicidade, pois se refere à não aliança ou dependência com representantes de instituições religiosas, bem como o financiamento de templos. Segundo o princípio da laicidade, então, as religiões – sejam elas quais forem – não podem imiscuir-se em questões políticas, influenciando na tomada de decisões por parte dos poderes institucionalizados.
No dia 27/03 do ano corrente, no entanto, foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 99/11, apelidada de “PEC do fundamentalismo religioso”, e que ainda será votada em dois turnos pelo Plenário. É de sabedoria de grande parte da população brasileira que existe uma bancada religiosa muito forte na Câmara dos Deputados (apesar de ser a que menos comparece às sessões, curiosamente) e que vem exercendo uma crescente influência na tomada de decisões e na tentativa e criação de novas leis. Essa PEC, cujo projeto foi recentemente aprovado, acrescentaria ao artigo 103 da Constituição Federal, que confere poder de “propor ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de inconstitucionalidade”, as entidade religiosas de âmbito nacional.
Ou seja, a partir de agora as Instituições Religiosas mais representativas, que tem mais força política, poderiam, no caso de aprovação da PEC, intervir em assuntos extremamente relevantes para a sociedade, baseados apenas em suas crenças e seus interesses. Este é, sem sombra de dúvidas, um retrocesso no que se refere ao avanço direcionado à busca de um Estado verdadeiramente laico.
Muitos poderão afirmar que se trata de uma decisão democrática, afinal a maioria da população brasileira se declara católica, seguida de evangélicos, segundo dados do IBGE. Porém, a democracia não significa a ditadura dos interesses da maioria suprimindo as minorias. A maioria escolhe seus representantes, porém aquele que é eleito tem o dever de governar em nome de todos, e não apenas daqueles que o elegeram. E a bancada evangélica vem agindo exatamente de forma contrária: governando em nome dos evangélicos, o que faz sua atuação ser antidemocrática e contra a laicidade do Estado.
Existem ainda algumas ações do Estado que beneficiam instituições religiosas, como a isenção de quaisquer impostos referentes aos templos e à movimentação financeira. E, além disso, outras leis estão sendo propostas com mais frequência com o intuito de prevalecimento dos interesses de alguns grupos religiosos (com maior poder representativo político) sobre os demais. Alguns exemplos de Projetos de Leis que caminham nessa direção podem ser encontrados no texto “O que há de podre no Reino da Dinamarca” do blog Bule Voador.
Portanto, há de se buscar um bloqueio a essa tentativa de quebra do avanço da laicidade no Brasil, que, assim como a democracia, se constitui enquanto processo contínuo. O Brasil já foi ditatorial e nossa democracia caminha em avanços que demandam tempo, assim como a própria laicidade. Medidas como essas, supracitadas, fazem com que todos os avanços até então adquiridos em termo e distinção entre política e religião sofram um retrocesso. Caso este retrocesso não seja impedido, caminharemos em direção a uma teocracia, e a história retrata o resultado desta associação.