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América do Sul: a construção do discurso brasileiro (1993-2010) e a importância do reconhecimento ar


INTRODUÇÃO

O Brasil, durante longo período de sua história, desenvolveu sua política externa sem considerar seu entorno regional como prioridade, ao contrário, privilegiou as relações com as potências europeias e com os Estados Unidos. Fruto, dentre outros fatores, das conjunturas internacionais e das suas percepções das relações internacionais, o Brasil foi incorporando aos seus discursos de política externa ideias e valores, como o americanismo e o latinoamericanismo, até que se fortalecesse a ideia de unidade sul-americana, restringindo geograficamente e fortalecendo estrategicamente sua prioridade regional ao consolidar o discurso de América do Sul.

Partindo da hipótese de que o discurso brasileiro é uma construção social, e por isto está sujeito a mudanças, e que o fortalecimento deste discurso está relacionado à resposta que os outros atores lhe atribui, este artigo foi dividido em três seções. A primeira traz uma análise da construção do discurso brasileiro de América do Sul; a segunda, uma análise do papel da Argentina na consolidação deste discurso e por fim, a identificação dos desafios a serem superados para o fortalecimento mesmo.

A escolha da Argentina, nesta análise, parte da constatação da importância do país na região e da perspectiva que a relação bilateral Brasil-Argentina constitui-se um eixo dos processos de integração regional, principalmente no Mercosul, criado a partir do aprofundamento da integração bilateral e da incorporação dos outros atores ao processo.

Assim, este artigo analisa a construção do discurso brasileiro de América do Sul, sob premissa que a consolidação deste depende não apenas do interesse nacional brasileiro e de sua postura, na região, como também de como os demais atores regionais respondem a esse discurso – nesta análise especificamente a Argentina –, e constroem suas percepções sobre suas prioridades nacionais. Neste contexto, surgem desafios, em grande medida pelas assimetrias entre os Estados, que só podem ser superadas a partir da construção de uma percepção comum da região como um espaço estratégico, resultando em ações conjuntas.

A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO BRASILEIRO DE AMÉRICA DO SUL

Ao longo do processo histórico, os conceitos, as ideias e os valores são criados, adquirindo novos significados frutos da construção social e compartilhados entre os atores no contexto da intersubjetividade. Segundo Simões, “o que somos hoje é, em boa parte, produto de processos históricos, que deixaram marcas profundas e condicionaram longamente nossas potencialidades” (2012, p.14).

A utilização do termo América do Sul data de um período distante. Ainda no Império brasileiro, em 1844, o termo apareceu pela primeira vez em um dos Relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (RSNE), embora com significado bastante distinto do utilizado atualmente no discurso brasileiro integracionista (SANTOS, 2005). Segundo Simões, “A América do Sul ficou, por praticamente cinco séculos de história, com a configuração política de um arquipélago, fragmentada em ilhas isoladas.” (2012, p. 14). No que concerne à política externa brasileira, esta, por muitas vezes, seguiu uma linha de relacionamentos privilegiados com potências europeias ou com os Estados Unidos, sem considerar o valor estratégico do seu entorno.

Desde a redemocratização, o Brasil tem demonstrado com maior intensidade que percebera a relevância da integração regional “fazendo prova de uma vocação não só internacionalista, mas sobretudo sul-americanista” (SIMÕES, p. 21). Para Santos, “a despeito do enfoque bastante específico, a noção de América do Sul, depois de 2000, voltou a ser um dos conceitos-chave do discurso diplomático brasileiro” (2005, p.17). Anteriormente à consolidação do discurso sul-americano, iniciativa brasileira, o Brasil incorporou outros discursos e identidades ao longo da história, como o americanismo e o latino-americanismo, iniciativas de origem externa. O discurso americanista adquiriu maior consistência a partir da proclamação da República. Segundo Santos (2005, p. 4), o “empenho brasileiro no pan-americanismo respondia ao impulso organizador dessa doutrina nas relações interamericanas. A diplomacia brasileira, no entanto, mantinha prudente distância das intervenções estadunidenses em sua área de influência direta”. Nesse contexto, o Brasil declarou apoio aos Estados Unidos nas duas Guerras Mundiais, esperando beneficiar-se. Porém, tais benefícios nunca se concretizaram, com os Estados Unidos direcionando sua ajuda pós-guerra para a reconstrução da Europa. A frustração, principalmente no aspecto econômico, acabou aproximando o país do discurso latino-americano (SANTOS, 2005).

O conceito de América Latina fora uma “representação do ‘outro’ para a sociedade estadunidense, como um contraconceito assimétrico de suas auto-atribuídas virtudes” (SANTOS, 2005, p. 6). A adesão do México ao NAFTA contribuiu para a erosão desse conceito, pois, justamente, aproximava a região do ‘outro’ do que se propôs separar. Além disso, o Brasil por diversos aspectos, frequentemente, não era reconhecido, por seus vizinhos, como latino-americano. O americanismo e o latino-americanismo, em vez de integrar o país, evidenciavam as diferenças, fortaleciam o isolamento, diante da percepção do não pertencimento do país àqueles contextos.

Segundo Hopf (1998, p. 177), as “escolhas dos Estados são fortemente constrangidas pela rede de significado das práticas, identidades, e interesses de outros atores que prevalecem em um determinado contexto histórico”. Nesse aspecto, o Brasil reconheceu a necessidade de corroborar um discurso que permitisse a inclusão frente ao isolamento, a convergência frente às divergências históricas e a complementaridade frente às enraizadas assimetrias regionais. Ganha força, então, a noção de América do Sul. Muito mais que um fator geográfico, presente no discurso quando importante reafirmar a origem regional comum, América do Sul remete a valores, a política, a economia, a segurança e a solução conjunta de problemas comuns, que permita à região experimentar estabilidade e crescimento, em um cenário internacional notadamente restritivo e desigual. Segundo Simões,

O Brasil que contribui para a prosperidade sul-americana reforça suas credenciais como elemento de estabilidade e prosperidade no mundo. Não é viável estratégia de desenvolvimento nacional em que haja descolamento significativo do entorno regional, com hiatos de desenvolvimento entre os países da América do Sul. O Brasil deve seguir crescendo e apoiando a participação dos vizinhos no círculo virtuoso do crescimento (2012, p. 24). A prioridade direcionada a América do Sul no discurso brasileiro tem evoluído historicamente. Fortaleceu-se a partir da última década do século XX. Em 1993, o presidente Itamar Franco, “lança a ideia de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa) para compensar o Nafta, a zona norte-americana, e a Alca, zona hemisférica” (CERVO, 2008, p. 202-203). No governo de Fernando Henrique Cardoso, lançou-se a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana. “A ideia de fortalecer a infraestrutura física vem da primeira reunião de cúpula da América do Sul realizada em Brasília, em 2000 [...] Integração física, calculava-se deve preceder a econômica” (CERVO, 2008, p. 169).

Segundo Santos (2011), no governo de Fernando Henrique, uma inserção internacional mais competitiva passava pela ampliação da esfera de relações internacionais do país, visando-se a dois objetivos: i) consolidar a aposta regional com a percepção de que o desenvolvimento brasileiro somente tem sentido quando seus vizinhos compartilham visões convergentes, como estabilidade democrática e crescimento econômico; ii) redesenhar o mapa regional, sem o México, um potencial rival latino-americano, reconfigurando a região sob a liderança brasileira – não declarada, nem explícita.

Durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, a América do Sul passou a ostentar papel central no discurso da política externa brasileira. A região somente iria tornarse um polo de poder, no cenário internacional, se integrada. Nessa perspectiva, o reconhecimento das assimetrias entre os países da região é um fator essencial para o aprofundamento das negociações regionais. Segundo Santos (2005, p.18), “O governo Lula esteve, desde o início, comprometido com a ideia de mudanças na ordem internacional”, e neste contexto a América do Sul passou a ser o “ponto de partida para uma nova inserção do Brasil no cenário internacional – consolidada a partir da reconstrução do Mercosul, das negociações com a Comunidade Andina e da incorporação do Chile, da Guiana e do Suriname no esforço de integração” (SANTOS, 2005, p. 18).

Em 2004, surgiu a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), cuja concepção se projetou “para além de simples área de livre-comércio, porquanto absorve valores, soberania dos Estados, boa convivência, projetos produtivos e o sonho de Bolívar” (CERVO, 2008, p.173). Ainda no governo de Lula, a CASA transformou-se em UNASUL, um dos principais fóruns regionais de que o Brasil participa, juntamente com o Mercosul.

A UNASUL é um espaço privilegiado onde se discutem diversos temas de interesse regional, refletidos nos oito conselhos setoriais: energia; saúde; defesa; infraestrutura e planejamento; desenvolvimento social; drogas; educação, cultura, ciência, tecnologia e inovação; e economia e finanças. Segundo Santos (2005, p. 18), “mais do que a ‘circunstância do Brasil’, a América do Sul é a referência para a inserção brasileira no mundo do século que se abre”. Assim,

Durante o governo Lula, a América do Sul torna-se prioridade externa. Projetos de integração de infra-estrutura, de integração energética, ampliação do Mercosul mediante a adesão de novos membros, o acordo entre Mercosul e Comunidade Andina, o estímulo a investimentos diretos brasileiros, tudo converge para criar um pólo de poder mediante a conformação da unidade política econômica e de segurança da América do Sul (grifo nosso) (CERVO, 2008, p. 203).

Segundo Simões (2012, p. 22) “a rationale brasileira no tocante à América do Sul combina dois princípios centrais: pragmatismo e solidariedade”. O pragmatismo expressa-se na perspectiva que a região é um espaço privilegiado de ação. “Temos desafios comuns que nos fazem trabalhar pelos mesmos objetivos – corrigir nossa inserção historicamente periférica no sistema internacional, melhorar as condições de crescimento e reparar as profundas desigualdades” (SIMÕES, 2012, p. 22).

Com relação à solidariedade entre os países da região, ela expressa-se na ideia de crescimento conjunto e de apoio mútuo, reconhecendo-se um passado comum e a aspiração de um futuro comum (SIMÕES, 2012). A solidariedade, que compreende o aspecto da reciprocidade, e a generosidade são conceitos distintos. “A visão brasileira é que, na integração na América do Sul, prevalece a solidariedade, não a generosidade [...]. A solidariedade se expressa na articulação de soluções coletivas para problemas que são, por natureza, coletivos” (SIMÕES, 2012, p. 23).

A ideia de realizações conjuntas implica reconhecer que o discurso brasileiro não tem ressonância se for ouvido isoladamente, desacreditado pelos vizinhos. O discurso compreende uma região e, portanto, significa a necessidade de entendimentos conjuntos. Segundo Yee (1996 apud ADLER, 1999, p. 212), “os significados intersubjetivos afetam quase casualmente certas ações, não por as determinar direta ou inevitavelmente, mas por torná-las plausíveis ou implausíveis, aceitáveis ou inaceitáveis, concebíveis ou inconcebíveis, respeitáveis ou duvidosas”. Considerando esses aspectos, o próximo tópico analisa a importância da Argentina para a consolidação do discurso brasileiro, reconhecendo a relevância de iniciativas conjuntas dos dois agentes que contribuíram de forma significativa para a integração regional, como no âmbito do MERCOSUL.

O PAPEL DA ARGENTINA NA CONSOLIDAÇÃO DO DISCURSO BRASILEIRO DE AMÉRICA DO SUL

Como afirma Onuf (1998), a realização daquilo que o discurso propõe depende da forma como os outros agentes respondem ao que ouvem. Depende do comportamento dos agentes, que podem absorvê-lo ou rechaçá-lo. Por outro lado, apenas discursos, sem ações, comprometem os resultados de longo prazo. É por meio das práticas que “o significado se socializa e adquire sua essência: a intersubjetividade compartilhada coletivamente” (MARQUES, 2005, p. 26).

Dessa forma, o discurso brasileiro não pode sustentar-se no vazio, onde não haja convergência de interesses de seus vizinhos, a integrarem-se na região. Por isso, a reciprocidade, mencionada anteriormente, é fundamental para o sucesso da integração regional e fortalecimento do discurso brasileiro. Neste contexto, a Argentina passou a exercer papel fundamental desde quando a rivalidade cedeu lugar a uma maior cooperação e a uma maior integração, possibilitando a criação do Mercosul, o qual, segundo Cervo (2008, p. 164), “alavancou a ideia de unidade política, econômica e de segurança da América do Sul, cara ao governo brasileiro”.

O sentimento de desconfiança mútua e a lógica da rivalidade prevaleceram, por muito tempo, na relação que Cordeiro (2010, p. 11) define como “a mais intensa, a mais profunda e a mais antiga de nossa história diplomática”. Os fatores que contribuíram para o fortalecimento dessa rivalidade foram diversos, desde as disputas entre Portugal e Espanha – heranças coloniais, ao europeísmo presente na construção da identidade argentina, o Brasil monárquico, a Guerra da Cisplatina, a Guerra do Paraguai, a superação econômica brasileira – que após 1940 passa a ocupar o lugar de liderança regional, a industrialização brasileira frente a uma maior especialização em bens agrícolas pela Argentina, as questões de segurança e desconfianças mútuas quanto ao desenvolvimento da energia nuclear e a controvérsia de Itaipu-Corpus.

Ainda durante o período militar, algumas dessas questões foram solucionadas, permitindo o avanço da cooperação bilateral Brasil-Argentina. Dentre elas, a controvérsia de Itaipu-Corpus, por meio do acordo Tripartite, e o início dos entendimentos em área nuclear, sendo o primeiro acordo datado de 1980, seguido de diversas Declarações Conjuntas de Política Nuclear, já no governo de Sarney e Alfonsín, e da criação, em 1991, da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC).

Segundo Oliveira, o entendimento entre o Brasil e a Argentina em relação à Guerra das Malvinas marcou a aproximação bilateral, “levando-os à séria revisão nas “regras do jogo” de suas relações internacionais, mostrando à Argentina as limitações de sua capacidade estratégica e a importância da cooperação diplomática com o Brasil” (1998, p. 13).

Para Santos (2005), a superação da rivalidade entre os dois países possibilitou a formação do Mercosul, uma das grandes referências da identidade internacional brasileira. Para Candeas (2010, P. 12), “sem uma visão compartilhada entre o Brasil e Argentina, não seria possível avançar na integração regional”. O Mercosul é resultado da aproximação entre esses dois Estados, ele “nasce de um bilateralismo dinâmico e incorpora os dois outros parceiros com naturalidade” (AZAMBUJA, 2012, p. 83).

O Mercosul é um elemento fundamental no discurso brasileiro de América do Sul. O entendimento com a Argentina contribui para o fortalecimento do bloco e, consequentemente, com o processo de integração regional. Aprofundar as relações bilaterais, afastando antigas tensões, é uma estratégia importante para o fortalecimento do discurso de que uma América do Sul integrada torna-se mais competitiva no cenário internacional.

Segundo Cordeiro (2010, p.12), “num primeiro plano, a integração regional é o ponto de partida para o fortalecimento de nossa presença no mundo. [...] Num segundo plano (e talvez ainda mais importante do que no primeiro), todo país precisa cultivar relações harmônicas com seus vizinhos. Essa é a condição primeira da paz.”.

Segundo Bernal-Meza (2008, p. 168), “Sin embargo, para el proceso de integración el eje del MERCOSUR sigue siendo la relación Brasil Argentina, cuestión que el gobierno de Lula se ha esforzado en dejar en evidencia, tanto en sus viajes fuera de la región como a la Argentina”. Desde a redemocratização e com o aprofundamento da integração bilateral, tanto o Brasil quanto a Argentina já demonstravam, em seus discursos, a importância que um parceiro tinha para o outro, inclusive no alargamento da integração, inicialmente bilateral, que sempre trouxe no discurso o desejo de envolver outros atores, contribuindo para a integração em âmbito regional.

Assim, o entendimento com a Argentina é fundamental para a consolidação do discurso brasileiro, o que pode ser historicamente comprovado com a criação do Mercosul, fruto das percepções comuns a respeito da necessidade do aprofundamento da relação bilateral. A América do Sul, como um polo de poder que influencia as tomadas de decisões em nível internacional, constitui interesse comum do Brasil e da Argentina para uma inserção mais relevante no competitivo cenário internacional. Apesar dos avanços, a integração sulamericana ainda precisa vencer grandes desafios, porquanto a região é marcada por grandes assimetrias.

DESAFIOS À SUSTENTAÇÃO DO DISCURSO BRASILEIRO DE AMÉRICA DO SUL

Segundo Paulo Roberto de Almeida, “para o Brasil, consolidar uma identidade própria numa região da qual ele é naturalmente uma espécie de pivô geopolítico constitui um empreendimento de grande significado diplomático [...] dotado de relativo impacto internacional.” (ALMEIDA, 2006, p. 16). Não obstante, como afirma Cervo, “a construção da América do Sul, projeto estratégico brasileiro, revela-se uma tarefa difícil” (2008, p. 203).

De fato, a região sul-americana tem uma característica fundamental: a heterogeneidade, que advém de esferas diversas, como a econômica, a política e a cultural. Ainda que, politicamente, muitos governos, na região, sejam de esquerda, isso não implicou maior convergência nas medidas adotadas, as quais, ao contrário, a exemplo das nacionalizações na Bolívia e na Argentina geraram desconfianças e reações mais radicais que exigiam do Brasil atitude frente às quebras de contratos e medidas dos vizinhos.

Segundo Cervo (2008, p. 164), entre os aspectos que colocariam em risco o processo de integração estão as “Visões de mundo e políticas exteriores não convergentes”. Cada país tem sua agenda própria e interesses nacionais próprios que, por vezes, não convergem com os interesses dos outros Estados. Com relação aos governos de Lula e Kirchner, por exemplo, além do contencioso em torno da limitação de eletrônicos exportados do Brasil para a Argentina, as diferenças de interesse com relação ao Mercosul se faziam presentes.

Na visão argentina a superação das assimetrias do Mercosul é prioridade da decisão política; para o Brasil, a integração da América do Sul, é vista como um espaço privilegiado no qual os negócios brasileiros têm prioridade (CERVO, 2008). “Um deseja aprofundar o Mercosul e realizar em seu seio os objetivos da recuperação econômica, outro, utilizá-lo para promover interesses regionais e globais, tanto econômicos quanto políticos” (CERVO, 2008, p. 168). Segundo Wendt,

The freedom that agents do have depends on their ability to recognize the material and social limits that apply to them. They must also be able to evaluate the consequences of exceeding those limits […]. It hardly needs saying that not choosing is a choice, presumably taken, as all choices are, to advance agents' goals. Agents make choices in light of the skills that they possess and the resources that they have access to, for reasons that they are more or less able to articulate. In short, they make choices in pursuit of their interests (1999, p. 65).

Em relação ao Mercosul, Brasil e Argentina têm interesses próprios que frequentemente comprometem o aprofundamento da integração. Com relação à postura brasileira, esta pode ser colocada como um dos desafios para a consolidação do discurso sulamericano, pois, por vezes, suas ações não originam aprofundamento da integração no bloco. A não escolha também é uma escolha brasileira. Segundo Vigevani et al.,

Na perspectiva brasileira, visto retrospectivamente, o Mercosul surge de forma claramente ambígua, o que não é essencialmente diferente na parte argentina. Colocado no topo das prioridades internacionais, no caso brasileiro, onde a força do universalismo permanece, ele é apresentado como instrumento muito importante, mas sempre instrumento. Não haveria uma clara especificidade da integração, não seria um fim em si mesmo (grifo meu) (2008, p. 9).

Além destes aspectos, outro desafio a ser superado é a ideia de imperialismo brasileiro, frequentemente negada pelo Brasil, evitando apresentar-se como um líder regional hegemônico, fortalecendo seu argumento da importância da integração regional e da superação de assimetrias para que a América do Sul se torne um polo de poder no cenário internacional.

Para evitar essa visão imperialista, o Brasil também age sob o sigma da cordialidade oficial, “entendida como padrão de conduta aplicado ao trato conferido pelo governo a seus vizinhos” (CERVO, 2008, p. 204). Segundo Cervo, “a cordialidade oficial explica o baixo perfil da diplomacia brasileira com relação aos vizinhos, quase sempre se revelando menor do que é, disposta a suportar gestos grandiloquentes ou a empáfia permanente de um ou outro governo” (2008, p. 204).

Dessa forma, o Brasil busca minimizar as assimetrias e conflitos com os vizinhos, abdicando do uso da força e buscando negociar, mesmo quando os mais radicais pedem atitudes mais duras. Para Cervo (2008), a ruptura da cordialidade oficial não é aconselhável, e por esta razão, o governo Lula não iniciou, por exemplo, um conflito com Néstor Kirchner quando interesses dos investidores brasileiros foram afetados. Segundo o autor,

O Brasil não lidera a integração porque não avança projetos de alcance e interesse efetivo para os vizinhos. Hugo Chávez, fazendo-se valer dos recursos do petróleo, toma a dianteira, na percepção de alguns governos. Evo Morales nacionaliza o setor de hidrocarbonetos e surpreende a Petrobras e outras empresas brasileiras que lá investem. Nicanor Duarte aproveita para requisitar a revisão de preços de energia gerada em Itaipu. Tabaré Vásquez sonha com acordos de livre-comércio entre o Uruguai e os Estados Unidos. Néstor Kirchner, enfim, ironiza a liderança procurada, porém vazia do Brasil na região. Lula compensa essa insuficiência brasileira com o capital político que pessoalmente representa perante os vizinhos, entretanto apenas simpatia não se fazem consistentes e duradouras nas relações regionais (CERCO, 2008, p. 217).

O discurso de América do Sul encontra muitos desafios a serem superados. Mesmo com relação à Argentina, importante parceiro regional, existem grandes assimetrias e interesses distintos, o que ocasiona, mesmo em fóruns internacionais, divergência de posições desses Estados – a exemplo do interesse brasileiro em um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao qual é a Argentina contrária.

CONCLUSÃO

A América do Sul, no discurso brasileiro, é uma construção cujo significado vem sendo modificado e reafirmado em diferentes momentos da história nacional. A partir do governo de Itamar Franco, a América do Sul passou a adquirir maior consistência, no discurso brasileiro de política externa, consolidando-se como prioridade geoestratégica no governo Lula, sob a perspectiva de que a configuração da região, como um polo de poder, contribui para as almejadas mudanças na ordem internacional.

Não obstante, os atores não são livres para agir como gostariam. Encontram diversos limites: nas ações dos outros agentes e nas estruturas do sistema internacional. Destarte, a consolidação do discurso brasileiro depende, não somente das ações brasileiras, mas também de como a região responde a este discurso. Uma das grandes dificuldades é convergir interesses nacionais tão heterogêneos e assimétricos.

A relação bilateral com a Argentina é um dos fundamentos para o sucesso da integração regional. É apontada como eixo dos processos integracionistas da região. O exemplo mais importante, nesse sentido, foi a criação do Mercosul, que parte de um alargamento da cooperação bilateral, incorporando os outros dois atores, Paraguai e Uruguai.

O avanço da cooperação Brasil-Argentina trouxe maior estabilidade para a região ao por fim em contenciosos e diminuir a histórica rivalidade. Com o apoio argentino o discurso brasileiro se fortalece e produz resultados mais concretos. Por isso, o país reafirma constantemente a importância desse ator, utilizando-se de referências, tais como o caráter estratégico da parceria.

Para além dos avanços, em termos de integração regional, o discurso brasileiro encontra muitos desafios. Entre eles, as grandes assimetrias regionais, os diferentes interesses nacionais, as políticas externas não convergentes, as perspectivas distintas a respeito do Mercosul e as interpretações quanto a liderança brasileira que qual o Brasil prefere não assumir, evitando os custos desta liderança e reações hostis dos seus vizinhos.

A superação desses desafios exige uma ação conjunta, a construção de agendas mais convergentes na região. O entendimento comum da importância da integração regional possibilita o fortalecimento dos blocos existentes e cria um espaço privilegiado para ação. O Brasil, ainda que não se apresente como um líder, afastando de si qualquer ideia de hegemonia na região, atua na frente dos processos integracionistas. Ideias, discursos e ações produzirão efeitos mais concretos se convergirem. Uma ideia de América do Sul omitida dos discursos perde força. Um discurso sem ações acaba criando um vácuo, comprometendo os resultados.

O Brasil demonstra, há algum tempo, a importância do entorno na sua política externa, porém, o Mercosul ainda é mais um instrumento que um fim em si mesmo. Neste aspecto, cresce a diferença entre o que Saraiva classifica como Mercosul real e o Mercosul oficial, central nas políticas externas do Brasil e da Argentina. Os interesses nacionais estão constantemente na frente dos interesses comuns, as prioridades de uns são, por vezes, bastante diferentes das prioridades dos outros. Os métodos de ação são divergentes. A região, ainda que pacífica, é marcada por históricas desavenças com os vizinhos e, com relação a Brasil e a Argentina, a rivalidade, em algumas questões, insiste em prevalecer.

Por fim, um discurso perde legitimidade se não acompanhado pelos outros atores. O discurso brasileiro de América do Sul, como construção social, é acompanhado de mudanças, incorpora novos elementos e, consequentemente, novos desafios, avanços. Numa ordem internacional notadamente marcada pela desigualdade, a integração regional é um importante instrumento de mudanças. Na prática, pode constituir novos polos de poder e permitir uma inserção internacional mais competitiva.

Os desafios são muitos, porém os ganhos proporcionados pela integração, pelo contexto de interdependência e por problemas globais constituem incentivos a pensar-se novas alternativas para fazer política de forma conjunta.

 

REFERÊNCIAS

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ALMEIDA, Paulo Roberto de. Mercosul e América do Sul na visão estratégica brasileira. Disponível em: < http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1820AsteriskosMercosul.pdf >. Acesso em: 19 jun. 2013.

AZAMBUJA, Marcos Castrioto de. O reordenamento Sarney-Alfonsín. In: A América do Sul e a integração regional: 28 de setembro de 2011, Rio de Janeiro, Brasil. / Apresentação do Embaixador José Vicente de Sá Pimentel; discurso inaugural do Embaixador Antonio de Aguiar Patriota. Brasília: FUNAG, 2012.

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CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. CORDEIRO, Enio. Prefácio. In: A integração Brasil-Argentina: história de uma ideia na “visão do outro”. Brasília: FUNAG, 2010.

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Artigo publicado na World Citizen Magazine, da Universidade Católica de Brasília.


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