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OBSERVATÓRIO | Júlia Moura Abreu

A atuação do Hamas no Apartheid Israelo-Palestino

No final de semana do dia 7 de outubro, houve um ataque de retaliação, como um ato de descolonização do grupo palestino Hamas contra o Estado de Israel. Neste sábado, mais de 2,5 mil foguetes foram enviados à Faixa de Gaza, seguidos de contínuos ataques por ar, terra e mar — no que alguns batizaram de Operação “Dilúvio de al-Aqsa”. Os ataques do Hamas tiveram como alvo dezenas de cidades e localidades no sul e no centro de Israel, incluindo Tel Aviv e Jerusalém. Já foram contabilizados ao menos 1.200 mortos e 4 mil feridos no total, a maioria israelenses mortos durante o ataque terrorista nas primeiras horas do sábado. Porém, o que muitos não entendem é o motivo desse ataque a Israel, o motivo dessa incessante violência da região. Dessa forma, é o objetivo deste texto trazer uma breve introdução ao assunto, contextualizando a história da Palestina, do movimento Sionista e da formação do grupo Hamas, tal como um sumário do que vem ocorrendo na região nos últimos 80 anos.

Para muitos, genocídio e apartheid são duas das palavras usadas para descrever o que acontece na Palestina desde o final da década 1940. Com o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) veio a criação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, quando a ONU (Organização das Nações Unidas), decretou o fim do mandato inglês na região e impôs a divisão da Palestina em dois Estados: um árabe-palestino e outro judaico-sionista, com a internacionalização de Jerusalém. Para contexto, o termo sionismo foi criado em 1892, e faz referência a Sion, um sinônimo bíblico para Jerusalém, em contrapartida, o movimento sionista, foi fundado por Theodor Herzl, e tinha como principal ideologia a busca por "uma terra sem povo para um povo sem terra". Herzl propôs a existência de um estado judaico independente e soberano na terra de Sion em seu livro 'O Estado judeu' (1896). No decorrer do século XIX, um pequeno número da população judaica na Europa adotou o sionismo e alguns judeus sionistas migraram para a Palestina com o objetivo de estabelecer o Estado de Israel, um etnoestado judaico. Em 1897, na Suíça, ocorreu o Primeiro Congresso Sionista, que defendia a criação de um Estado judeu na Palestina.

Porém, já havia registros de ocupação e território árabe na Palestina há mais de 3000 anos, com inscrições egípcias como evidência. A região, entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão, foi habitada por diversas culturas e impérios, como os Assírios e os Persas. Em 1516, o Império Otomano passou a dominar a região, e após a Primeira Guerra Mundial e a queda deste império, a região do Oriente Médio foi dividida entre mandatos britânicos e franceses. A Palestina ficou sob domínio britânico, e além da "assistência administrativa e aconselhamento", o Mandato incorporou a Declaração de Balfour em 1917, que expressava apoio à criação de um território nacional para o povo judeu, apoiando a causa sionista.

 Antes de aprofundar a explicação, é importante salientar que ser anti-sionista não implica em ser antissemita, embora algumas pessoas usem o anti-sionismo como pretexto para manifestar antissemitismo e racismo. Ser anti-sionista significa, basicamente, ser contra o genocídio e a exclusão de uma população indígena com tradições e ocupação milenar em um território, tendo em vista que, o Estado de Israel promove justamente o extermínio e expulsão dos povos palestinos de suas terras. Portanto, é necessário esclarecer que propagar a Questão da Palestina como uma guerra entre islâmicos e judeus é nocivo e pode contribuir com islamofobia e antissemitismo, já que os acontecimentos são resultados do imperialismo, colonialismo e de uma ideologia racista.

Portanto, antes da oficial criação de Israel, ainda em 1947, já havia acontecido na região o Nakba (“a catástrofe” em árabe). A catástrofe em referência é a expulsão dos palestinos de suas casas, suas terras e seu sustento, marcando o início do processo de limpeza étnica na Palestina. Este conceito é aceito por todos os organismos internacionais e caracterizado como “um esforço para deixar homogêneo um país de etnias mistas, expulsando e transformando em refugiados um determinado grupo de pessoas” (Drazen Petrovic, 'Ethnic Cleansing - An Attempt at Methodology', European Journal of International Law, 5/3 (1994), pp.342-60.). Para melhor dissertar sobre esse tema usarei como referência a obra “A limpeza Étnica da Palestina” (Editora Sundermann), do historiador israelense Ilan Pappé.

A definição de “limpeza étnica”, pela enciclopédia Hutchinson (Millennium Edition- 2000), é compreendida como a expulsão forçada com fins de homogeneizar uma população etnicamente diversa. É uma política de um grupo particular de pessoas para eliminar sistematicamente outro grupo de um determinado território, com base na religião, etnia ou de origem nacional, geralmente é uma política violenta e é frequentemente ligada a operações militares. É para ser alcançado por todos os possíveis meios, desde a discriminação até o extermínio, e implica violações dos direitos humanos e do humanitarismo internacional, como definido por Drazen Petrovic, 'Ethnic Cleansing em  ‘An Attempt at Methodology'.

Alguns dos meios que o governo israelense utilizou para o genocidio e a ‘limpeza’ foi o Plano Dalet, manifestado em Deir Yassin quando em 9 de abril de 1948 quando forças israelenses invadiram a vila de Deir Yassin, em Jerusalém. Na invasão os soldados metralharam as casas matando muitos dos habitantes. Os demais aldeões foram então reunidos em um único lugar e assassinados a sangue frio, seus corpos abusados enquanto algumas mulheres eram estupradas e depois mortas. Além de Deir Yassin, mais quatro aldeias foram vítimas de ataques nesse período: Qalunya, Saris, Beit Surik e Biddu. Já na criação de Israel, foi determinado que 51% do território palestino lhes fosse cedido, e um ano depois de sua criação, em 1948 ocorreu a Primeira Guerra Árabe-israelense, na qual Israel obtém vitória e amplia o seu território para além do que havia lhe sido determinado pela ONU. 

Em 1967, acontece a Guerra dos seis dias, pois o exército israelense organizou um ataque fulminante em três frentes, e após apenas seis dias conseguiu ocupar a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, e ocupar desde a península do Sinai ao Egito e das Colinas de Golan à Síria. Essa guerra teve início com um ataque israelense ao Egito, que utilizou como justificativa “um ataque preventivo” que muitos veem como retaliação à invasão que causou a Crise do Canal de Suez, em 1956.  Abaixo, segue um mapa evidenciando a divisão territorial entre Israel e Palestina:



Fonte: Jornal do Campus- USP


Em 1973, deu-se a Guerra do Yom-Kippur, quando o Egito e a Síria atacaram Israel no dia do Yom-Kippur (Dia do Perdão para a religião judaica), clamando pela devolução dos seus territórios ocupados, porém, esse ataque ricocheteou, pois Estados hegemônicos, como os Estados Unidos, prestaram apoio a Israel, guerra essa, que foi a precursora da Crise do petróleo da década de 1970. Isso culminou para os Acordos de Camp David em 1978, que foi determinada a devolução da Península de Sinai para o Egito, que em troca, reconheceu Israel como estado legítimo, sendo o primeiro país árabe a fazê-lo, o que levou a sua própria expulsão da Liga Árabe em 1979.

Quatorze anos depois, tem o que o mundo conhece como a Primeira Intifada (1987-1991), caracterizada pelo momento que a população palestina se rebelou contra a ocupação israelense, por isso que essa Intifada também é chamada de “Revolução das pedras”. A Segunda Intifada ocorreu nos anos 2000. Até aqui, foram citadas apenas algumas das atrocidades cometidas por Israel. Há muitos registros e relatos de ataques surpresa, uso excessivo de força, intervenções armadas e verdadeiros massacres como a invasão ao Líbano, em 1982,  que deixaram cerca de 17.500 mortos, sendo que a maioria eram civis, mulheres e crianças. Também tiveram os massacres de Sabra e Chatila (1982, um dos mais violentos, deixando mais de 3500 mortos em menos de 48 horas) em Gaza, Qana (1996), Tantura (1948), Kafr Qasim (1956), entre outras dezenas de pequenas vilas e campos de refugiados. Desde 2008, são estimados cerca de 6.407 palestinos mortos e 308 israelenses, e cerca de 152.560 palestinos feridos, em contraste a 6.307 israelenses (OCHA, 2023)

E por que o que acontece na palestina é caracterizado como apatheid? A ONU define o crime de apartheid como ‘a dominação sistemica de um grupo etno-racial sobre outro, abrangindo praticas de segregação e discriminação’. Mais de 50 provisões de Israel discriminam por lei, direta ou indiretamente, não-judeus, como: desigualdade no acesso a água, comida, saúde, moradia e hospitais; sistemas de transportes separados e estradas exclusivas para judeus; apropriação de terras, destruição de plantações e demolição das suas casas. A Palestina atualmente é considerada uma nação de jure ou “de direito”, “por lei”, isso significa que mesmo que o seu estado seja legalmente reconhecido, o governo e o estado em si não exercem controle sobre ele. Pelas leis, a Palestina é um Estado independente, mas na prática sabemos que Israel detém o controle de mais de 70% do seu território. 

Em 1964, diante dos inúmeros atos de violência, a Liga Árabe funda a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), uma organização política e paramilitar com o intuito de libertar a Palestina da ocupação. Assim como a OLP, o Hamas ou Ḥamās, acronema para Ḥarakat al-Muqāwamah al-Islāmiyyah, em português, Movimento de Resistência Islâmica, foi criado durante a Primeira Intifada, no intuito de lutar pelo independente Estado islâmico na histórica Palestina. Nos anos 70, quando se teve grande organização de movimentos pró-liberdade Palestina, ativistas ligados à Irmandade Muçulmana Islâmica estabeleceram uma rede de instituições de caridade, clínicas e escolas e tornaram-se ativos nos territórios ocupados por Israel após a Guerra dos Seis Dias. 

As atividades da Irmandade Muçulmana nessas áreas eram, no plano geral, não violentas, mas alguns pequenos grupos nos territórios ocupados começaram a conclamar a jihad, ou guerra santa, contra Israel. Durante a Primeira Intifada, o Hamas (que também é uma palavra árabe que significa "zelo") foi criado por membros da Irmandade Muçulmana e de facções religiosas da OLP, e rapidamente conquistou um grande número de seguidores. Em seu estatuto de 1988, o Hamas sustentava que a Palestina é uma pátria islâmica que nunca pode ser entregue a não muçulmanos e que travar uma guerra santa para arrancar o controle da Palestina de Israel é um dever religioso dos muçulmanos palestinos. Essa posição o colocou em conflito com a OLP, que em 1988 reconheceu o direito de Israel de existir. 

Em 1993, na Conferência de Oslo, tinha o objetivo de solução de paz de dois Estados, assim previu a criação da Autoridade Palestina, que viria a substituir a OLP. O Hamas logo no início começou a agir paralelamente aos grupos pacíficos organizados da Palestina, gerando várias desavenças internas, e as revoltas cada vez mais violentas do Hamas contra civis e militares israelenses, levaram a IDF (Força de Defesa de Israel) a prender cada vez mais membros do Hamas. Para organizar e estruturar as atividades, foi criado na Jordânia, um escritório político responsável pelas relações internacionais e pela arrecadação de fundos da organização, elegendo Khaled Meshaal como seu chefe em 1996, e o braço armado do grupo foi reconstituído como as Forças ʿIzz al-Dīn al-Qassām. Dos anos 1990 até os dias atuais, a sede dessa organização já foi relocada diversas vezes, atualmente se localiza em Doha, Catar.

Desde a sua criação, o Hamas nunca aceitou negociações que cedesse qualquer pedaço de terra, e o fracasso dessas negociações de paz entre israelenses e palestinos em setembro de 2000 levou a um aumento da violência que ficou conhecido como a Segunda Intifada ou Intifada de Aqṣā. Esse conflito foi marcado por um grau de violência nunca visto na primeira intifada, e os ativistas do Hamas aumentaram ainda mais seus ataques contra israelenses e se envolveram em vários atentados suicidas em Israel.

Em 2007, o Hamas conseguiu obter controle sobre a Faixa de Gaza, e assim, Israel declarou que essa área, sob domínio do Hamas seria um ambiente hostil, e aprovou uma série de sanções que incluem: corte de energia, racionalização de comida, restrição das importações e fechamento de fronteiras. Ambos os lados não cessaram os ataques e após meses de negociações, em junho de 2008, Israel e o Hamas concordaram em implementar uma trégua programada para durar seis meses; entretanto, a trégua foi ameaçada logo em seguida, pois cada um acusou o outro de violações, que aumentaram nos últimos meses do acordo. Após o vencimento dessa trégua, e após mais de três semanas de hostilidades, nas quais talvez mais de 1.000 pessoas tenham sido mortas e dezenas de milhares tenham ficado desabrigadas, Israel e o Hamas declararam um cessar-fogo unilateral.

E assim tem sido os ultimos quinze anos: Gaza conseque reclamar território colonizado e palestino, exército israelense cria sanções que limitam recursos vitais aos terrirórios reclamados, ataques violentos e contra ataques ainda mais violentos acontecem e após milhares de mortos e feridos, entram em um acordo de cessar fogo e o ciclo se repete. Como foi o caso desta última semana: Hamas executou um ataque violento contra Israel, deixando mais de mil civis mortos, Israel respondeu ao ataque também violentamente, já implementou sanções de corte de combustível, alimentos e medicações, violando os direitos humanos dos palestinos como vêm fazendo desde sua existência. 

Dez dias após o ataque ao ataque do Hamas em Tel Aviv e Jerusalém, a IDF executou um verdadeiro massacre no Hospital Al-Ahli Arab na noite do dia 17 de outubro. O massacre ocorreu com uma série de ataques aéreos sobre o hospital, deixando entre 500-1500 mortos, sendo a maioria crianças. É estimado que desde o dia 7 de outubro, cerca de 100 crianças palestinas morreram por dia (Al- Jazeera) e mais de 3.400 palestinianos foram mortos no ataque israelense mais mortífero das últimas décadas. Ataques contra hospitais, escolas e à população civil, estao dentre os considerados crimes de guerra. O questionamento que fica para a sociedade internacional é: quando isso vai parar?


 

Referências


Introduction to Palestine :3: From Nakba to Naksa, Decolonize Palestine. Disponível em: <https://decolonizepalestine.com/intro/from-nakba-to-naksa/>.Acesso em: 10 out. 2023.


Entenda a guerra em Israel, que começou com o maior ataque do Hamas e tem contraofensiva intensa na Faixa de Gaza. Jornal O Globo Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/10/08/guerra-no-oriente-medio-entenda-o-maior-ataque-do-hamas-e-a-contraofensiva-israelense.ghtml>. Acesso em: 10 out. 2023.


Data on casualties, United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs (OCHA). Disponível em: <https://www.ochaopt.org/data/casualties>.Acesso em: 10 out. 2023.


Hamas | Definition, History, Ideology, & Facts, Britannica Encyclopedia. Disponível em: <https://www.britannica.com/topic/Hamas>.Acesso em: 10 out. 2023.


Conflito Israel-Hamas: Gaza “ficará sem combustível, remédios e alimentos em breve”, dizem autoridades palestinas. BBC News Brasil Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0x64edg6ndo>. Acesso em: 10 out. 2023.


PAPPÉ, ILAN. The Ethnic Cleansing of Palestine, Oxford: Oneworld Publications. 2006 - Acesso em: 10 out. 2023.


MAGGS, David. The History, Politics and Ideology of Hamas, 2011. Disponível em: https://www.e-ir.info/2011/06/17/the-history-politics-and-ideology-of-hamas/.  Acesso em: 10 out. 2023.


POLÍTICAS ISRAELENSES ABUSIVAS CONSTITUEM CRIMES DE APARTHEID E PERSEGUIÇÃO.  Human Rights Watch. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2021/04/27/378578. Acesso em 10 de out. 2023.


“A war against children”: How Israeli bombardments scar Gaza’s children. Al-Jazeera and news agencies. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2023/10/19/israels-war-against-gazas-children-explained>. Acesso em: 19 de out. 2023

What we know so far about the deadly strike on a Gaza hospital.  Al-Jazeera and news agencies. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2023/10/18/what-do-we-know-about-the-strike-on-the-hospital-in-gaza>. Acesso em: 18 out. 2023.

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