No que tange a proteção internacional para refugiados LGBTQIAPN+, podemos entender que foi um processo moldado por uma série de diretrizes e acontecimentos no cenário Internacional. Inicialmente, essa categoria não era visto como fundamento a perseguição, visto que a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, desenvolvido pela Organização das Nações Unidas(ONU) em 1951, entendia como refugiados,
Qualquer pessoa que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 01 de janeiro de 1951, e receando, com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade ou opinião política, se encontre fora do país de sua nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio ou por outras razões que não sejam de mera conveniência pessoal, não queira requerer a proteção daquele país; ou quem, não possuindo uma nacionalidade e estando fora do país de residência habitual, não possa ou, em virtude desse receio ou por outras razões que não sejam de mera conveniência pessoal, não queira retornar. (Artigo 1A(2) da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, 1951)
Como forma de retirar essa determinação cronológica imposta no documento, a organização lança em 1967 o Protocolo que reconhece como solicitantes de refúgio, aqueles que:
O presente Protocolo será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação geográfica; entretanto, as declarações já feitas em virtude da alínea “a” do §1 da seção B do artigo1 da Convenção aplicar-se-ão, também, no regime do presente Protocolo, a menos que as obrigações do Estado declarante tenham sido ampliadas de conformidade com o §2 da seção B do artigo 1 da Convenção.(Artigo 1 do Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto do Refugiado, 1967)
Para continuarmos a discussão, é importante salientar que apesar das atualizações desenvolvidas no protocolo, a proteção específica ainda não era garantida. No entanto, a partir dos anos 1990, com a crescente mobilização de organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch e o próprio Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), houve uma pressão significativa para que os Estados considerassem a perseguição baseada em orientação sexual e identidade de gênero como base para refúgio.
Seguindo essa mesma linhagem, entende-se que a ONU implementou uma diretriz sugerida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) em 2002, no documento ‘Guidelines on International Protection: ‘Membership of a particular social groups’ within the context of article 1A(2) of the 1951 Convention and/or its 1967 Protocol relating to the Status of Refugees’, a qual destacava a possibilidade de que minorias sexuais sejam reconhecidas como um "grupo social" conforme os critérios estabelecidos pela Convenção de 1951.
Ainda no cenário das políticas globais, os Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos foram elaborados com o intuito de fornecer uma estrutura para a proteção dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+. Com isso, o Princípio 23 especifica o direito de buscar e obter refúgio devido à perseguição relacionada à orientação sexual e/ou identidade de gênero. De acordo com este princípio:
Toda pessoa tem o direito de buscar e de desfrutar de asilo em outros países para escapar de perseguição, inclusive de perseguição relacionada à orientação sexual ou identidade de gênero. Um Estado não pode transferir, expulsar ou extraditar uma pessoa para outro Estado onde esta pessoa experimente temor fundamentado de enfrentar tortura, perseguição ou qualquer outra forma de tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante, em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero" (Princípios de Yogyakarta, pág. 30, 2007)
Como forma de reafirmar todas as diretrizes já existentes, a ACNUR lança, um ano depois da crianção dos princípios mencionados a cima, o documento intitulado como ‘(UNHCR Guidance note on refugee claims relating to sexual orientation and gender identity)’ onde deixa claro que orientação sexual e identidade de gênero podem ser fatores para a solicitação de refúgio, sendo que:
Solicitações de refúgio baseadas em orientações sexuais diferentes contêm um elemento de gênero. A sexualidade ou práticas sexuais de um solicitante podem ser relevantes para o pedido de refúgio quando ele ou ela tiver sido submetido a uma ação persecutória em razão da sua sexualidade ou práticas sexuais. Em vários desses casos, o solicitante se recusou a aderir aos papéis sociais ou culturais definidos, ou ainda se recusou a atender às expectativas de comportamento atribuídas ao seu sexo. (ACNUR, pág.10. 2008- Tradução livre)
Entretanto, em 2012 esse documento foi reformulado para a Diretriz sobre Proteção Internacional n.º 9, que aborda as solicitações de refúgio com base na orientação sexual e/ou identidade de gênero, no contexto do Artigo 1A(2) da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados, a qual é a diretriz mais atual da ACNUR no que tange a proteção desse grupo específico. Posto isso, entende-se que, na visão de Andrade (2018), o refúgio por orientação sexual passou a ser cada vez mais reconhecido como uma necessidade urgente em resposta aos contextos de violência e discriminação.
Ainda que com o passar dos anos tenha ocorrido o fortalecimento das diretrizes internacionais, a implementação dessas normas necessitam da aprovação dos Estado-membro da organização. Pensando nessa perspectiva, conforme o relatório de 2024 da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Transexuais e Intersexuais (ILGA), sobre Homofobia patrocinada pelo Estado, dentre os 193 Países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 62 Países ainda criminalizam a relação entre duas pessoas do mesmo gênero, o que mostra o longo caminho que o ACNUR precisa traçar para garantir os direitos básicos dessa população.
Pensando em sanar essas dificuldades, o Alto Comissariado para Refugiados (ACNUR) desenvolve, em 2011, a campanha“ livres e iguais” cujo objetivo é combater o discurso de ódio e os estereótipos relacionados a população LGBTQIAPN+ por meio de periódicos ou notas oficiais da organização. Como, por exemplo, em 2017, quando o ACNUR em parceria com o escritório ACNUR-Brasil desenvolveram uma “cartilha informativa sobre a proteção de pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTI” a qual tinha por objetivo informar as particularidades desse grupo social de uma forma que fosse colocado como “conselho” aos Estados.
Por fim, conclui-se que a proteção internacional para refugiados LGBTQIAPN+ representa uma luta importante para o reconhecimento dos diretos humanos básicos. Embora ainda haja muitas Nações que criminalizam e/ou perseguem essa população, a criação dessas normas pela Organização das Nações Unidas foram de suma importância para a ampliação dos “tipos” de refúgio, entretanto, ainda há algumas limitações dessas diretrizes, na prática. Contudo, essas restrições encontradas demonstram que a luta por acolhimento digno para esses refugiados necessitam tanto da ampliação das normas internacionais, como também, das legislações nacionais de cada Estado-membro dessa organização para que os direitos humanos básicos sejam plenamente respeitados e protegidos em todos os contextos.
REFERÊNCIAS:
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Nota de Orientação do ACNUR sobre Pedidos de Refugiados Relacionados à Orientação Sexual e Identidade de Gênero, 21 de novembro de 2008, disponível em: https://www.refworld.org/policy/legalguidance/unhcr/2008/en/63725 Acesso em 31 de outubro de 2024
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR). Cartilha informativa sobre a proteção de pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTI. Brasília: ACNUR, 2017. Disponível em: www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Cartilha-informativa-sobre-a-prot eção-de-pessoas-refugiadas-e-solicitantes-de-refúgio-LGBTI_ACNUR-2017.pdf. Acesso em: 29 outubro. 24
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR). Diretrizes sobre Proteção Internacional n. 09: Solicitações de Refúgio baseadas na Orientação Sexual e/ou Identidade de Gênero no contexto do Artigo 1A (2) da Convenção de 1951 e/ou Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados. 23 out. 2012. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2014/9748.pdf. Acesso em: 28 outubro. 24
ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR). O que significa ser um refugiado LGBTQIA+. 29 jun. 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/06/29/o-que-significa-ser-um-refugiado-lgbtqi/. Acesso em: 31 outubro. 24
ANDRADE, Vítor Lopes. Elegibilidade das solicitações de refúgio por motivos de orientação sexual no Brasil. Século XXI, Santa Maria, v. 8, n. 1, p.75-111, jan./jun. 2018. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/seculoxxi/article/view/35668/19278. Acesso em: 29 de outubro.24
PRINCÍPIOS de Yogyakarta. Princípios sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. 2007. Disponível em: <http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_yogyakarta.pdf>. Acesso em: 30. Outubro. 2024
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