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OBSERVATÓRIO | Bernardo Tapioca

Wind of Change: A análise do fim da Guerra-Fria e a emergência de uma configuração geopolítica multipolar sob a ótica do Rock

Em janeiro de 1991, a banda de hard rock alemã Scorpions lançou “Wind of Change” (em tradução para o português, “Vento da Mudança”). A canção, além de ser o maior hit do grupo, tornou-se um símbolo de união e paz em um momento delicado da geopolítica: o fim da Guerra Fria. Esse conflito, caracterizado por uma profunda rivalidade política, ideológica e militar entre os blocos ocidental e oriental, se estendeu de 1947 até 1991 (Folha de São Paulo, 2022). O equilíbrio geopolítico, naquele momento, era visto como bipolar, sustentado pelo embate entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O rock, surgido e difundido mundialmente na esteira do conflito em cheque, com sua excentricidade e caráter disruptivo, é um mecanismo que desafia as estruturas “fixas” da sociedade (Uniter, 2021). Para seus fãs, representa não apenas um gênero musical, mas também um verdadeiro estilo de vida. Ademais, ele, de fato, atua como um catalisador para movimentos de paz e união, como evidenciado pelo famoso festival Woodstock, realizado em 1969, que se fundamentou em práticas contraculturais, como o emblema de “paz e amor”. Entre as décadas de 1960 a 1990, surgiram diversas bandas clássicas, como The Beatles (1960), The Rolling Stones (1962), Led Zeppelin (1968), Queen (1970), Metallica (1981), The Cranberries (1989) e o próprio Scorpions (1965), todas com grandiosa relevância para o rock mundial. Já era comum observar canções de bandas criticando atos violentos, como “For What It's Worth”, do conjunto Buffalo Springfield, que se tornou um hino de protesto durante os tumultos sociais dos anos 60, incluindo as manifestações contra a Guerra do Vietnã. Com o Scorpions não foi diferente, especialmente por ser um grupo originado em uma Alemanha dividida entre os lados oriental e ocidental, resultado da divisão realizada pelas nações vitoriosas no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nesse contexto, como a canção-símbolo de paz Wind of Change analisa o fim da Guerra Fria e o eventual surgimento de um mundo multipolar? Outra questão surge, contudo, diante da atual conjuntura geopolítica: o clássico do Scorpions pode ser observado à luz dos conflitos contemporâneos, como o embate entre Rússia e Ucrânia? São essas indagações que o presente autor busca responder nas próximas linhas.


O grupo Scorpions, composto pelos músicos Rudolf Schenker, Klaus Meine, Matthias Jabs, Pawel Maciwoda e Mikkey Dee, originou-se em 1965, na cidade de Hannover, Alemanha, um dos atores centrais durante a Guerra Fria. Ao contrário das potências hegemônicas que firmavam a conjuntura bipolar, a Alemanha ocupava uma posição estratégica no tabuleiro geopolítico da época. Após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, as potências vencedoras — EUA, Reino Unido, URSS e França — assumiram o controle do território alemão, dividido em quatro zonas de administração estrangeira (DW, 2013). Essa subdivisão aprofundou as tensões entre o bloco ocidental, liderado pelos EUA, e o bloco oriental, sob influência soviética. Como reflexo dessas divergências, em 1961, iniciou-se a construção do Muro de Berlim, separando a parte oriental da cidade da porção ocidental. Com aproximadamente 3,6 metros de altura e feito de concreto, o muro foi erguido sob o pretexto de proteger os civis do “fascismo ocidental” (Medium, 2023). No entanto, a barreira acabou gerando separação e sofrimento para famílias, amigos e compatriotas que se viram divididos. As viagens entre os dois lados eram proibidas, e soldados armados tinham permissão para disparar fatalmente contra aqueles que tentassem ultrapassar o muro (DW, 2013). Na Alemanha, as diferenças entre os estilos de vida eram evidentes, sendo essas discrepâncias uma das inspirações para o grupo Scorpions na composição de seu grande sucesso. 


Contudo, a tônica para a confecção de Wind of Change se dá, definitivamente, com o término da Guerra Fria, em 1989. Esse momento foi caracterizado por diversos acontecimentos marcantes, com a queda do Muro de Berlim sendo um dos mais emblemáticos. Este evento não só evidenciou o fim das divisões entre o Oriente e o Ocidente, como também acelerou o processo de desintegração da União Soviética. O Malta Summit (Cúpula de Malta), que ocorreu em 3 de dezembro de 1989, poucas semanas após a queda do muro, foi um ponto final neste capítulo para a história mundial (BBC, 2019). George Bush (Presidente dos EUA), juntamente com Mikhail Gorbachev (Líder da URSS), anunciaram o término da Guerra Fria.


A queda do muro que dividiu Berlim em duas partes é uma das inspirações do hit ‘Wind of Change’.

Fonte: Getty Images

Paralelamente, o Scorpions, em 1989, integrou a grade do histórico festival Moscow Music Peace Festival, um evento que visou promover a paz no mundo e estabelecer a cooperação internacional na luta contra as drogas naquela região. Além do Scorpions, também marcaram presença, bandas como Bon Jovi, Cinderella, Skid Row, Mötley Crüe e Ozzy Osbourne (Whiplash, 2024). É importante, inclusive, o destaque que a realização do festival se deu em um momento antecedente ao fim da Guerra Fria e poucos meses antes da queda do Muro de Berlim. Outro ponto relevante ao tema é que foi um dos primeiros shows do grupo alemão em território soviético, sendo o inaugural realizado um ano antes, em 1988 (Setlist.Fm, 2024). Assim, em 12 e 13 de agosto de 1989, o Scorpions sobe no palco do Luzhniki Stadium (antigo Lenin Stadium), em Moscou, capital da Rússia (antiga URSS), para a realização de dois shows memoráveis.


Pôster de divulgação do Moscow Music Peace Festival

Fonte: Last Fm


Cerca de três meses após as noites de concerto em território soviético, o Muro de Berlim, símbolo da segregação provocada pela Guerra Fria, caiu diante dos olhos do mundo, marcando um momento decisivo na história que precipitou o fim, tanto da Guerra Fria, quanto da União Soviética (Euronews, 2019). Mundialmente celebrado, o colapso desse emblema de divisão, dor e repressão transformou Berlim em um símbolo de unificação e harmonia (Medium, 2023). Nesse contexto de efervescências, transformações e incertezas em relação ao futuro, mas confiantes da trajetória rumo à paz, o Scorpions lançou, em 21 de janeiro de 1991, a memorável canção “Wind of Change”. Composta pelo vocalista Klaus Meine, o single vendeu cerca de 14 milhões de cópias ao redor do mundo, solidificando o sucesso da banda de Hanôver. Além de ser um hino do rock, a canção é um valioso objeto de estudo, oferecendo uma análise do fim da Guerra Fria pela ótica da música, mais especificamente do rock, fruto de artistas diretamente envolvidos no contexto da disputa entre as potências que dividiram a Alemanha. Portanto, a partir do contexto em questão, pode-se analisar alguns trechos da música que evidenciam o olhar frente ao episódio em xeque:


"I follow the Moskva – Eu sigo o Moskva  

Down to Gorky Park – Até o Parque Gorky  

Listening to the wind of change Ouvindo o vento da mudança"


A música inicia mencionando o Rio Moskva e o Parque Gorky, ambos ícones russos. O Rio Moskva, que atravessa Moscou, representa a Rússia na totalidade, enquanto o Parque Gorky, um espaço popular e simbólico, especialmente durante o regime soviético, alude à renovação e mudança (Medium, 2023). O vento, neste caso, figuraria a força invisível da transformação política que estava ocorrendo no final da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim.


"An August summer night – Uma noite de verão em agosto  

Soldiers passing by – Soldados passando  

Listening to the wind of change – Ouvindo o vento da mudança"


Já neste trecho, é mencionado um cenário de patrulha militar, algo comum durante a Guerra Fria, com soldados russos presentes nas ruas. O vento da mudança, mencionado novamente, demonstra-se como um índice da mudança (Medium, 2023), que estava para ocorrer. A menção ao verão de agosto pode ser compreendida dubiamente: (i) como símbolo de positividade ou (ii) como uma alusão ao Moscow Music Peace Festival, ocorrido nas noites de 12 e 13 de agosto de 1989, evento que inspirou a composição da canção em questão.


"The world is closing in – O mundo está se fechando  

And did you ever think – E você já pensou  

That we could be so close like brothers? – Que poderíamos ser tão próximos como irmãos?"


Aqui, o mundo “se aproximando” e o questionamento “Did you ever think that we could be so close like brothers?” reflete a surpresa e a esperança de que, após anos de separação e hostilidade, as nações e os povos, antes divididos pela Guerra Fria, poderiam se unir como “irmãos”. Isso pode aludir à queda do Muro de Berlim e à reunificação da Alemanha, além da aproximação entre o Ocidente e o Oriente (Medium, 2023).


"The future’s in the air – O futuro está no ar  

I can feel it everywhere – Eu posso senti-lo em todo lugar  

Blowing with the wind of change – Soprado pelo vento da mudança"


O “futuro no ar” simboliza a sensação de esperança e novas possibilidades que surgiram no final dos anos 1980 e que ultrapassaram as fronteiras de Berlim, alcançando um impacto global. O vento da mudança é novamente mencionado:


"Take me to the magic of the moment – Leve-me à magia do momento  

On a glory night – Em uma noite de glória  

Where the children of tomorrow dream away – Onde as crianças do amanhã sonham  

In the wind of change – No vento da mudança"


Este refrão expressa o desejo de voltar ao “momento mágico” de uma noite de glória, provavelmente referindo-se, mais uma vez, ao show da banda em Moscou, em 1989. As “crianças do amanhã” são vistas como a próxima geração, que poderia crescer em um mundo livre das divisões e conflitos da Guerra Fria, sonhando com liberdade e paz (Medium, 2023). O vento da mudança, mais uma vez, simboliza o movimento em direção a esse futuro.


"Walking down the street – Caminhando pela rua  

Distant memories – Memórias distantes  

Are buried in the past forever – Estão enterradas no passado para sempre"


A caminhada pelas ruas sugere uma jornada física e emocional, onde as “memórias distantes” são lembranças dos tempos de repressão e divisão (Medium, 2023). Essas memórias estão “enterradas no passado”, significando que o mundo está pronto para seguir em frente, deixando para trás os dias de divisão e conflito em um mundo bipolar, à medida que as mudanças trazem um novo começo para a Europa e o mundo.


"The wind of change – O vento da mudança  

Blows straight into the face of time – Sopra diretamente na face do tempo  

Like a stormwind that will ring – Como um vento tempestuoso que tocará  

The freedom bell for peace of mind – O sino da liberdade pela paz de espírito  

Let your balalaika sing – Deixe sua balalaika cantar  

What my guitar wants to say O que minha guitarra quer dizer"


Aqui, o vento da mudança é comparado a uma tempestade que sopra “na face do tempo”, simbolizando o impacto irreversível das transformações no final da Guerra Fria. Essa “tempestade” traz o toque do “sino da liberdade”, representando um período de paz e libertação. A balalaica, um instrumento tradicional russo, simboliza a cultura russa, enquanto a guitarra, típica do Ocidente, representa a cultura ocidental (Medium, 2023). Juntas, essas metáforas sugerem a união das culturas e a superação das divisões entre os blocos socialista e capitalista, imergindo em um novo momento histórico multipolar, com expressões culturais e de poder que vão além da influência dos EUA e da (antiga) URSS.


Assim, a canção oferece uma análise que perpassa seu conteúdo lírico, refletindo a ótica do rock sobre o fato histórico, narrado por músicos diretamente impactados pelo conflito. O Scorpions retrata, de forma poética, um momento de transformações, destacando a união, a desconfiguração da disposição bipolar geopolítica e o respeito e convivência pacífica entre culturas diversas. Contudo, uma indagação ainda persegue o autor deste texto: há a possibilidade de aplicação da música ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia, que se intensificou desde 2022 — trinta e um anos após o lançamento de Wind of Change? A resposta para essa questão vem do próprio Meine, vocalista do grupo. Durante uma entrevista cedida, em 2022, durante uma residência da banda em Las Vegas ao Loudwire Nights, Klaus revelou que, atualmente, a canção soa diferente devido ao contexto político mundial (Rádio Rock, 2022). “Antes de virmos [para Las Vegas], eu estava pensando como seria tocar 'Wind of Change' do jeito que sempre tocamos ao longo dos anos”, explicou o cantor. “Eu pensei que, com essa guerra terrível na Ucrânia, não era o momento de romantizar a Rússia com a letra 'Follow the Moskva, Down to Gorky Park', sabe? Quis adaptar a música para apoiar a Ucrânia. Agora, a música começa assim: 'Now listen to my heart / It says Ukraine, waiting for the wind to change”, acrescentou.


Registro do concerto do Scorpions em Las Vegas, utilizando a letra adaptada pró-Ucrânia em Wind of Change.


Assim, fica evidente como 'Wind of Change' narra o fim da Guerra Fria sob uma perspectiva positiva, promovendo união e paz global após décadas de divisões, conflitos e disputas armamentistas. No entanto, para o letrista, a mensagem da canção, que envolve referências à Rússia e a uma iniciativa de pacificação, não se aplica ao contexto atual entre Moscou e Kiev. Desde fevereiro de 2022, ações belicosas foram deflagradas entre ambos atores com a invasão russa à Ucrânia, resultando em um conflito devastador, marcado por agressões territoriais mútuas, violações de direitos humanos e uma escalada militar que contrasta diretamente com o espírito de esperança e reconciliação que a canção originalmente transmitia. Diante disso, o letrista expressou sua solidariedade à Ucrânia, distanciando a música do cenário de guerra contemporâneo.


Em síntese, o hino do Scorpions revela o protagonismo do Rock na manutenção da esperança por um mundo menos hostil no cenário musical, mobilizando movimentos de paz por meio do som das guitarras elétricas (ou balalaicas). Além disso, a canção revela seu caráter atemporal, utilizada em diversos contextos, mesmo mais de 30 anos após seu lançamento, com aplicações que podem ser tanto orgânicas quanto adaptadas a novas realidades. Em suma, este texto evidencia a conexão direta entre música e a construção de um mundo mais unido e pacífico. A paz e a união, em oposição à guerra, refletem a essência do Rock, que busca a desconstrução de sistemas opressores. A paz, portanto, é um rompimento com as velhas estruturas – e é, por natureza, uma atitude Rock n' Roll.



 

REFERÊNCIAS


A difícil tarefa de definir o Rock. Disponível em: <https://www.uninter.com/noticias/a-dificil-tarefa-de-definir-o-rock>. Acesso em: 22 out. 2024.

BBC NEWS BRASIL. Queda do Muro de Berlim: Como os eventos de 1989 mudaram o mundo. BBC, 9 Nov. 2019.

BIENSTOCK, R. Scorpions’ ‘Wind of Change’: The oral history of 1990’s epic power ballad. Disponível em: <https://www.rollingstone.com/music/music-news/scorpions-wind-of-change-the-oral-history-of-1990s-epic-power-ballad-63069/>. Acesso em: 22 out. 2024.

DE S. PAULO, F. O que foi a Guerra Fria? Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/webstories/cotidiano/2022/03/o-que-foi-a-guerra-fria/>. Acesso em: 22 out. 2024.

DEUTSCHE WELLE. A Divisão da Alemanha – de 1945 a 1989. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/a-divis%C3%A3o-da-alemanha-de-1945-a-1989/a-958753>. Acesso em: 22 out. 2024.

EURONEWS. “wind of Change”, hino de uma revolução. Disponível em: <https://pt.euronews.com/2019/11/07/wind-of-change-hino-de-uma-revolucao>. Acesso em: 22 out. 2024.

HOLLANDA, P. Moscow Music Peace Festival: o hard rock farofa chega à União Soviética. Disponível em: <https://igormiranda.com.br/2022/08/moscow-music-peace-festival-historia/>. Acesso em: 22 out. 2024.

Scorpions: letra de “Wind Of Change” é adaptada para momento atual do mundo - A Rádio Rock - 89,1 FM - SP. Disponível em: <https://www.radiorock.com.br/2022/04/12/scorpions-letra-de-wind-change-e-adaptada-para-momento-atual-mundo/>. Acesso em: 22 out. 2024.

Programação de Moscow Music Peace Festival no Стадион Лужники em 12 Ago 1989. Disponível em: <https://www.last.fm/pt/festival/1818081+Moscow+Music+Peace+Festival/lineup>. Acesso em: 22 out. 2024.

Scorpions: a história por trás da música “Wind of Change.” Disponível em: <https://whiplash.net/materias/curiosidades/205647-scorpions.html>. Acesso em: 22 out. 2024.

SEBASTIÃO, N. O vento da mudança que sopra através da história. Disponível em: <https://medium.com/culturaliteraria/o-vento-da-mudan%C3%A7a-que-sopra-atrav%C3%A9s-da-hist%C3%B3ria-a85c0b32fe11>. Acesso em: 22 out. 2024.

Significado da música WIND OF CHANGE (Scorpions). Disponível em: <https://www.letras.mus.br/scorpions/35387/significado.html>. Acesso em: 22 out. 2024.


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