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OBSERVATÓRIO | ROBERTA LACERDA

Smart Cities: Muito além da tecnologia - O caso de Curitiba

A concepção de cidades inteligentes (smart cities) tem evoluído significativamente nas últimas décadas, impulsionada por demandas sociais crescentes. Desde o século XVIII, quando a Revolução Industrial provocou uma migração em massa da população rural para os centros urbanos, a expansão acelerada das cidades gerou uma série de desafios, como a necessidade de infraestrutura adequada, planejamento urbano e qualidade de vida. O Relatório Mundial das Cidades 2022, publicado pelo ONU-Habitat, destaca que a urbanização continua a ser uma das principais megatendências do século XXI, com a expectativa de que 68% da população mundial seja urbana até 2050, um aumento de 2,2 bilhões de pessoas (ONU, 2022).


Nesse contexto, as cidades precisam adaptar-se não apenas com o uso de tecnologias avançadas, mas também com soluções sustentáveis e inclusivas que atendam às necessidades dos cidadãos, envolvendo sustentabilidade, governança, participação cidadã e qualidade de vida. Curitiba, considerada um exemplo de cidade inteligente no Brasil, mostra que, para além da tecnologia, o foco no planejamento urbano sustentável e na participação cidadã é essencial para enfrentar os desafios do crescimento urbano e melhorar a qualidade de vida da população.


A princípio, o conceito de smart cities foi moldado a integrar como principal componente estrutural o viés tecnológico. As primeiras discussões sobre o conceito de cidades inteligentes surgiram amplamente no contexto tecnológico, com um foco claro na utilização de dispositivos de Internet das Coisas (IoT) para otimizar a gestão urbana. Empresas privadas, especialmente fornecedoras de tecnologia como a IBM, lideraram esse movimento, definindo cidades inteligentes como aquelas que utilizam dados e informações de maneira intensiva para melhorar o controle das operações urbanas e otimizar o uso de recursos escassos (CÂMARA DOS DEPUTADOS apud. Cosgrove et al., 2011).


Nesse primeiro paradigma, a integração de IoT e infraestrutura urbana era vista como a chave para aumentar a eficiência no uso de recursos, criando soluções tecnológicas para problemas como congestionamento, consumo de energia e gestão de resíduos. Contudo, essa abordagem tecnológica foi criticada por acadêmicos, que apontaram a dependência de fornecedores estrangeiros e o uso do conceito de cidades inteligentes como uma ferramenta de marketing (CÂMARA DOS DEPUTADOS apud. Hollands, 2008; Jazeel, 2015).


O foco excessivo no aspecto tecnológico das cidades inteligentes tem sido criticado por diversos estudos e projetos, como o "Urbanismo Fantasma" da Universidade de Harvard, que evidenciam o fracasso de iniciativas baseadas nesse paradigma. Exemplos emblemáticos como Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, e Songdo, na Coreia do Sul, mostram que apesar dos enormes investimentos - 22 bilhões de dólares e 40 bilhões de dólares, respectivamente - essas cidades não atingiram suas metas populacionais e de ocupação. Masdar, projetada para abrigar 50 mil habitantes, conta com apenas 300, enquanto Songdo, planejada para 65 mil pessoas, abriga apenas 30 mil (CÂMARA DOS DEPUTADOS apud. de Graaf; Solar, 2018)


Embora o paradigma tecnológico tenha desempenhado um papel importante no surgimento das smart cities, ele subestimou aspectos humanos e sociais essenciais para a formação de uma cidade sustentável. Muitos benefícios da transformação digital ficaram inacessíveis a grandes parcelas da população devido ao baixo nível de alfabetização digital e à falta de infraestrutura adequada.


Com o tempo, o conceito de cidade inteligente passou a incorporar uma abordagem mais humanista, focada no capital humano e nas dinâmicas sociais e culturais que sustentam a vida urbana (ANGELIDOU, 2015). Esse segundo paradigma defende que as smart cities devem capacitar os cidadãos a inovar e participar ativamente na solução de problemas, além de abordar questões críticas como desigualdade de renda, educação e emprego (CÂMARA DOS DEPUTADOS apud. Graham, 2002; Caragliu et al., 2011).

Alguns conceitos atuais a respeito das smart cities são, de acordo com o material de treinamento projetado para dar suporte a profissionais e especialistas na distribuição de conhecimento sobre Cidades Inteligentes em toda a Ásia e Pacífico, feito pela United Nations Centre for Regional Development (UNCRD):

British Standards Institute - A cidade inteligente é uma integração eficaz de sistemas físicos, digitais e humanos no ambiente construído para proporcionar um futuro sustentável, próspero e inclusivo para seus cidadãos. União Europeia - Uma cidade inteligente é um lugar onde redes e serviços tradicionais se tornam mais eficientes com o uso de soluções digitais para o benefício de seus habitantes e empresas. Governo da Índia - Cidades inteligentes fornecem infraestrutura central e dão uma qualidade de vida decente aos seus cidadãos, um ambiente limpo e sustentável e aplicação de Soluções 'Inteligentes'. O foco está no desenvolvimento sustentável e inclusivo e a ideia é olhar para áreas compactas e criar um modelo replicável que agirá como um farol para outras cidades aspirantes (UNCRD, 2022).

Todas essas concepções evidenciam alguns aspectos principais de uma cidade inteligente, entre eles a sustentabilidade, governança, desenvolvimento econômico, mobilidade urbana e tecnologia. A sustentabilidade se destaca pela gestão eficiente dos recursos naturais e pela adoção de tecnologias que minimizem o impacto ambiental, promovendo um futuro mais saudável para as próximas gerações. A governança participativa, que envolve a população nas decisões e no gerenciamento da metrópole, é outro aspecto essencial, garantindo que as demandas públicas sejam atendidas com precisão (EDP, 2023)


Decerto que, o desenvolvimento econômico nas smart cities é impulsionado pelo uso de tecnologias que aumentam a eficiência dos trabalhadores e estimulam a inovação, atraindo novos empreendimentos e fomentando a criação de empregos. A mobilidade inteligente, com investimentos em transporte público eficiente e alternativas sustentáveis como ciclofaixas e carros elétricos, contribui para um trânsito menos congestionado e uma melhor qualidade de vida (EDP, 2023).


Analisando o caso de Curitiba, capital do Paraná, que se destaca como uma das principais cidades do Brasil, com uma população de 1.773.718 habitantes e uma densidade demográfica de 4.078,53 hab/km² em 2022. A cidade tem um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) elevado, de 0,823, o que reflete seus avanços nas áreas de educação e qualidade de vida. A escolarização de crianças entre 6 e 14 anos alcançou 97,6% em 2010, e em 2023 o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) foi de 6,3 para os anos iniciais e 5,4 para os finais do ensino fundamental (IBGE, 2023).


Na economia, Curitiba teve um PIB per capita de R$ 49.907,02 em 2021 e, em 2023, arrecadou R$11,98 bilhões, mas com despesas que superaram as receitas, totalizando R$12,88 bilhões. No que diz respeito ao meio ambiente, a cidade conta com uma ampla cobertura de esgotamento sanitário adequado (96,3%) e arborização em vias públicas (76,1%), mantendo um compromisso com a sustentabilidade urbana (IBGE, 2023).


Em 2024, Curitiba (PR) conquistou o título de cidade mais inteligente do mundo, um reconhecimento atribuído pelo prestigiado World Smart City Awards, concedido pela Fira Barcelona, na Espanha. Essa honraria destaca as ações e programas de planejamento urbano que visam o crescimento socioeconômico e a sustentabilidade ambiental. Curitiba se destacou por suas inovações em mobilidade urbana, como o renomado sistema BRT (Bus Rapid Transit), que transformou a forma como os cidadãos se deslocam, além de iniciativas ambientais pioneiras, como o programa “Lixo que Não é Lixo”, que promove a reciclagem e a gestão eficiente de resíduos. Veja algumas das premiações que a cidade recebeu no ano de 2023:


Figura 1 - Premiações e Reconhecimento de Curitiba no ano de 2023

Fonte: Fariniuk, 2024


A cidade também tem se destacado na utilização de tecnologias para o engajamento da população por meio do projeto “Fala Curitiba”, que usa inteligência artificial para mapear as necessidades da sociedade e integrar essas demandas ao orçamento municipal. O desenvolvimento de uma Secretaria Extraordinária de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Inteligência Artificial (SEDEA) reflete o compromisso de Curitiba em ser um exemplo de inovação urbana (Itforum, 2024).


Curitiba tem se destacado na utilização de inteligência artificial (IA) para aprimorar seus serviços públicos, demonstrando um compromisso com a inovação e a eficiência. A cidade já aplica tecnologias avançadas em diversas áreas, como a Central 156 de Atendimento ao Cidadão, a Muralha Digital, e na gestão do trânsito. Um dos projetos mais ambiciosos é o “Hipervisor Urbano”, que começará a operar em fevereiro de 2024, fruto da colaboração entre o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (Itforum, 2024).

Esta plataforma atuará como um centro de convergência de dados, permitindo a coleta, processamento e distribuição de informações em tempo real, facilitando a gestão de serviços públicos e o planejamento urbano a longo prazo. O Hipervisor se integrará a diversas iniciativas, como a Muralha Digital da segurança pública e os centros operacionais de Transporte e Defesa Civil, consolidando uma abordagem interconectada para a administração da cidade(Itforum, 2024).


Para além das iniciativas focada em tecnologia, Curitiba também foi reconhecida como a segunda melhor cidade do Brasil para startups, segundo o Global Startup Ecosystem Index Report (GSEI) de 2024. Este reconhecimento reflete o esforço da cidade em fomentar um ambiente favorável para a inovação, promovendo parcerias estratégicas entre o setor público e privado. Um exemplo notável é o aplicativo “Saúde Já”, desenvolvido durante a pandemia, que facilitou teleconsultas e o agendamento de atendimentos para cerca de dois milhões de pacientes(Itforum, 2024).


Como também, Curitiba está implementando o sandbox regulatório, um ambiente de testes que permite a empresas e startups testar inovações sem as restrições normativas habituais. Essa abordagem já resultou na adoção de tecnologias como drones para entrega de pacotes e a transição para veículos elétricos na frota municipal (Itforum, 2024).


De acordo com Denis Alcides Rezende, professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana da PUCPR, uma cidade é considerada inteligente quando proporciona serviços públicos que utilizam a tecnologia da informação para a gestão urbana e a disponibilização de informações integradas. Entre as iniciativas que impactam a vida dos curitibanos estão a integração do transporte urbano, semáforos conectados, aplicativos de saúde, bibliotecas eletrônicas, controle digital de movimentação de pessoas, botões eletrônicos de pânico, gestão de documentos digitais e programas de sustentabilidade, como o Projeto Vale do Pinhão (Gazeta do povo, 2023).


As cidades inteligentes, embora promissoras, enfrentam diversas limitações que devem ser cuidadosamente consideradas, especialmente em contextos de países em desenvolvimento. Em Curitiba, por exemplo, a implementação de soluções tecnológicas avançadas deve ser precedida pela garantia de necessidades básicas, como acesso à água limpa e saneamento.


A realidade socioeconômica da cidade revela que uma parcela da população ainda enfrenta desafios significativos, com 1,5% de analfabetos e 7% de semianalfabetos, o que indica que nem todos os cidadãos têm as habilidades necessárias para interagir plenamente com as tecnologias oferecidas. Além disso, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2021 apontam que 5,3% da população curitibana, equivalente a cerca de 94 mil pessoas, não têm acesso à internet, o que limita ainda mais a inclusão digital e a participação ativa da comunidade nos serviços públicos digitais (Fariniuk, 2024)


Apesar de Curitiba ter conquistado uma série de prêmios e reconhecimento como a cidade mais inteligente do Brasil, a inclusão digital ainda é um desafio. Embora a prefeitura tenha implementado iniciativas, como o portal amigável e Wi-Fi gratuito em 310 pontos da cidade, ainda existem barreiras que impedem um acesso efetivo e crítico ao mundo digital. Os dados indicam que 7,7% dos domicílios urbanos em Curitiba não têm acesso à internet, enquanto 16,5% não possuem conexão de banda larga. Portanto, a transição para uma cidade inteligente deve considerar essas disparidades, garantindo que as tecnologias implantadas beneficiem toda a população, e não apenas uma fração que já está integrada ao ambiente digital (Fariniuk, 2024).


Em suma, embora Curitiba tenha se destacado como uma referência em inovações e tecnologias que promovem a qualidade de vida e a sustentabilidade, é fundamental reconhecer e abordar as limitações presentes na cidade, que vai além da vertente tecnológica, como por exemplo, a inclusão digital e acesso a serviços básicos. A implementação de soluções inteligentes deve ser acompanhada por estratégias que garantam que todos os cidadãos possam usufruir dos benefícios da transformação urbana. Logo, ampliam as vertentes que compõem uma cidade inteligente, para além do uso da tecnologia, identificando o planejamento urbano, práticas políticas voltadas para a sustentabilidade e governança como aspectos necessários para a sua composição.


 

Referências


BRASIL. Curitiba é eleita a cidade mais inteligente do mundo e se torna referência para o setor turístico. Ministério do Turismo. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/turismo/pt-br/assuntos/noticias/curitiba-e-eleita-a-cidade-mais-inteligente-do-mundo-e-se-torna-referencia-para-o-setor-turistico. Acesso em: 9 out. 2024.  

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Cidades inteligentes: Uma abordagem humana e sustentável. 1 ed. Centro de Estudos e Debates Estratégicos, 2021. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/altosestudos/pdf/cidades_inteligentes.pdf. Acesso em: 21 out. 2024.

FARINIUK, Tharsila Maynardes Dallabona. Da cidade inovadora à cidade inteligente:  uma análise de construções discursivas na cidade de Curitiba (PR). Revista tecnologia e Sociedade, v. 20. 2024. Disponível em: https://revistas.utfpr.edu.br/rts/article/view/10318/7504. Acesso em: 16 out. 2024.

GAZETA DO POVO. O que faz de Curitiba uma cidade inteligente?. 2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/gpbc/curitiba-de-todas-as-tribos/o-que-faz-de-curitiba-uma-cidade-inteligente/. Acesso em: 11 out. 2024.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Panorama de Curitiba. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/curitiba/panorama. Acesso em: 27 out. 2024.

ITFORUM. Curitiba rumo à cidade inteligente: iniciativas e tecnologias em destaque. 2024. Disponível em: https://itforum.com.br/noticias/curitiba-rumo-a-cidade-inteligente/#:~:text=Curitiba%20j%C3%A1%20utiliza%20intelig%C3%AAncia%20artificial,%C3%A9%20o%20%E2%80%9CHipervisor%20Urbano%E2%80%9D. Acesso em: 15 out. 2024

ONU. População mundial será 68% urbana até 2050. ONU Habitat. 2022. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/188520-onu-habitat-popula%C3%A7%C3%A3o-mundial-ser%C3%A1-68-urbana-at%C3%A9-2050. Acesso em: 21 out. 2024.

PALUDO, Augustinho Vicente; Silva, Christian Luiz da; Guimaraes, Inácio Andruski. Curitiba, cidade inteligente, para quem?. Revista de Gestão e Secretariado . Paraná, 2024. 21 p. Disponível em: https://ojs.revistagesec.org.br/secretariado/article/view/3841/2476. Acesso em: 8 out. 2024.

UNITED NATIONS CENTRE FOR REGIONAL DEVELOPMENT. Training Materials for Implementing Smart Cities In Asia and The Pacific. ONU, 2022. Disponível em: https://uncrd.un.org/sites/uncrd.un.org//files/smart-city-training-material_1_smart-cities.pdf. Acesso em: 20 out. 2024.

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