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Stella Nunes - OBSERVATÓRIO

A revolução global da primavera de Myanmar contra o golpe militar



O último dia primeiro de fevereiro foi marcado pelo golpe militar em Myanmar, antiga Birmânia, no sudeste da Ásia. No primeiro momento, a tomada de poder pelo exército não utilizou força armada, contudo, a forte repressão aos protestos da oposição civil repercutiu internacionalmente pelos inúmeros casos de violência, massacres e violação dos direitos humanos que ocorreram nos últimos meses.

O período democrático em Myanmar foi alcançado em 2011, após cinquenta anos de comando da Junta Militar. A recente democracia esteve desde 2016 sob a liderança de Aung San Suu Kyi, Conselheira de Estado, Prêmio Nobel da Paz (1991), filha do principal símbolo pró-democracia da nova Birmânia, Aung San, e líder do principal partido nacional civil; a Liga Nacional pela Democracia (NDL, sigla em inglês). O NDL venceu a eleição que ocorreu em novembro do ano passado com 83% das cadeiras do parlamento, entretanto, no dia da primeira assembleia geral que marcaria o início do ano legislativo, os militares decretaram a tomada do controle do Estado. O Tatmadaw, exército birmanês, alegou fraude eleitoral e irregularidades nos processos de votação, mas a Comissão Eleitoral assegurou a validação do resultado.

O novo parlamento se encaminhava para a aprovação de um novo governo que teria Suu Kyi como Primeira-Ministra quando, por meio do canal de televisão Myawaddy News, pertencente ao exército, foi feito o anúncio da tomada de poder e mantido como único canal de comunicação permitido. A Constituição de 2008 de Myanmar, redigida pelos militares, autoriza que seja enunciado estado de emergência nacional e as forças nacionais utilizaram do artigo 417 para validar o controle do governo por um ano, prometendo organizar novas eleições “livres e justas” quando o estado de emergência se encerrar.

As Forças Armadas detiveram a líder Suu Kyi e o presidente Win Myint e nomearam o vice-presidente Myint Swe para o seu posto, seguindo o que indica a Constituição do país em caso de emergência nacional, no entanto, o general Min Aung Hlaing é quem está exercendo poder, sendo o responsável pela fiscalização das autoridades. Min Aung Hlaing obteve influência política no governo mesmo nos dez anos de democracia no país, e, pela sua atuação contra as minorias étnicas ligadas às políticas empregadas por Suu Kyi, recebeu sanções e condenações internacionais.

Para estabelecer o controle do país, o Tatmadaw cercou o parlamento de maneira pacífica, restringiu o uso de internet, interrompeu as linhas telefônicas, bloqueou os canais de informação e suspendeu os voos nacionais e internacionais. Além de Suu Kyi, muitos políticos, líderes estudantis e dirigentes étnicos foram presos, o que sucedeu em atos civis pró-democracia desde que o golpe foi declarado. Contudo, à medida que a população ia às ruas, a repressão militar se fez presente. Min Aung Hlaing, através de discurso televisionado, declarou que “atos violentos que afetam a segurança e a estabilidade são inadequados” (EL PAÍS, 2021). O general também afirmou que as ações militares são em busca da restauração da paz no país, e que restabelecer a democracia é o principal intuito do exército birmanês. No entanto, manifestantes pacíficos estão sendo feridos e mortos durante os protestos desde fevereiro. O governo responde a quaisquer atos contrários à intervenção com ataques de força, contudo, as ameaças de endurecer as medidas contra os atos impulsionam ainda mais pessoas a irem às ruas protestar pela continuidade da democracia no país e pelo fim da Junta Militar. O Tatmadaw tem invadido casas dos civis em busca de armamentos que possam ser utilizados nos protestos, com isso, muitos civis estão sendo vitimados em suas próprias residências.

Em março, o canal de notícias da Organização das Nações Unidas, ONU News, divulgou que 149 pessoas haviam sido confirmadas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU como vítimas da intervenção militar. Cidades e bairros carentes contabilizam os maiores índices de violência. No dia 27 do mesmo mês, ocorreu a celebração do Dia das Forças Armadas e 114 manifestantes foram mortos em protesto, de acordo com o El País. Os militares ameaçaram atirar na cabeça dos participantes do ato como forma de repressão ao movimento. Segundo Isto É, em menos de dois meses, houve mais de 3 mil detidos e 1,9 mil presos. Cerca de 1.000 detidos foram confirmados pela UNICEF como crianças e jovens, e até o dia primeiro de abril, aproximadamente 43 crianças perderam a vida pelas ações das forças armadas, dados contabilizados pela ONG Save the Children. Nesse período, cerca de 60 presos políticos morreram sob custódia do exército, levantando suspeitas de tortura até a morte, pois os militares apenas comunicam os óbitos sem indicar as causas, porém os cadáveres apresentavam ferimentos compatíveis com tortura (O GLOBO, 2021).

A situação em Myanmar foi condenada por diversos países. A reação internacional fez-se mais preocupada à medida que a repressão se fez mais violenta. No mês de fevereiro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiu um documento pedindo a imediata soltura dos detidos. Os Estados-membros requerem atualizações constantes que devem ser realizadas pelo Alto Comissário para os Direitos Humanos e pelo relator especial sobre a situação em Myanmar. A resolução também solicita o fim da censura instaurada e a cooperação entre as autoridades de Myanmar e os órgãos da ONU, considerando a participação das Nações Unidas em assistência humanitária no país, que teve sua importância reiterada pelo coordenador residente da ONU no país, Ola Almgren e pelo Secretário Geral, António Guterres. Com o rápido crescimento no número de mortes, Guterres afirmou que o mundo deveria enviar um “sinal claro” contra o golpe militar em Myanmar (ONU News, 2021).

A participação do Ocidente foi de grande importância no processo de democratização em Myanmar, que utilizaram da pressão internacional e sanções diplomáticas para influenciar o fim do período militar. A União Europeia e o Reino Unido classificaram a intervenção como golpe e aplicaram sanções ao país pelo descumprimento dos direitos plenos. Os Estados Unidos condenaram a tomada de poder pelos militares e ameaçaram aplicar sanções, mas não classificou a intervenção como golpe, assim como feito pela Embaixada Brasileira. A Casa Branca decidiu esperar uma decisão do Conselho de Segurança da ONU, porque, as sanções internacionais cabíveis, como por exemplo, as de viés econômico e o isolamento diplomático, possivelmente não teriam o mesmo efeito perante o Tatmadaw como em 2011. No dia 10 de março, o Conselho de Segurança condenou a violência no país. Neste mesmo dia, o exército birmanês respondeu às manifestações com balas de borracha e gás lacrimogêneo. A União Europeia e os Estados Unidos responsabilizaram oficiais militares e outras entidades do governo pela violência, além disso, o governo estadunidense aplicou sanções à empresa estatal Myanma Gems, principal indústria de pedras preciosas do país.

A China, principal parceira comercial de Myanmar, apenas pediu estabilidade, sem demonstrar oposição ou apoio às justificativas do Tatmadaw para a deposição do governo eleito e barrou a classificação de golpe pelo Conselho de Segurança. Assim como a Rússia, a China enviou um representante oficial para o desfile em comemoração ao Dia das Forças Armadas. Ambos os países demonstram abertura para o relacionamento diplomático com a liderança de Min Aung Hlaing, porque a influência diplomática que exercem independe de quem esteja no governo.

A Junta Militar não cedeu às pressões ocidentais, fazendo com que continuassem a repressão e os movimentos pró-democracia no país, chamados de “revolução global da primavera em Myanmar”, que busca fazer com que o mundo escute a voz do povo birmanês contra o governo militar instaurado. Thuzar Wint Lwin, Miss Universo de Myanmar em 2021, usou o concurso que ocorreu em 16 de maio para manifestar e fazer com que o mundo volte os olhos para o que está acontecendo em seu país. Participante dos protestos contra a Junta desde fevereiro, Wint Lwin utilizou a prova de Traje Nacional para homenagear o povo Chin, grupo étnico ao qual pertence, localizado no noroeste do país onde os conflitos das últimas semanas ocorreram. Nesta mesma prova, Wint Lwin levou uma faixa que tinha escrito “Pray for Myanmar”, e foi considerada a participante com o melhor traje, sendo elogiada internacionalmente pela coragem de manifestar contra o golpe em seu país. O governo birmanês não se pronunciou, mas há relatos de que emitiu um mandado de prisão para Wint Lwin.

Apesar de ter sido detida sob alegação de fraude eleitoral, Suu Kyi foi acusada pelo exército de crimes que não estão atrelados às denúncias da eleição. As acusações iniciais eram de aceitação de suborno e importação ilegal de equipamentos de comunicação, o que leva a percepção de prisão arbitrária, mas, em abril, novas acusações foram feitas vinculadas a gestão de catástrofes naturais e incitação à desordem pública. Desde sua prisão em fevereiro, Suu Kyi não havia sido vista em público. Em prisão domiciliar, a líder política encarava as audiências de julgamento que aconteciam virtualmente, mas, no dia 24 de maio foi presencialmente ao tribunal, sendo sua primeira aparição desde que fora detida. Caso condenada, ela pode ser banida da política ou condenada a vários anos de prisão (G1, 2021). O general Hlaing afirmou que desde fevereiro, morreram 300 civis e 47 policiais, no entanto, segundo dados da Associação de Assistência para Prisioneiros Políticos (AAPP), calcula-se que mais de 800 pessoas foram assassinadas pelas Forças Armadas por participação ou organização dos atos contra a declaração de estado de emergência (G1, 2021).

O agravamento da situação em Myanmar causou alarde na comunidade internacional que teme um “conflito total” no país, pois, o governo passou a conter os protestos utilizando armamento de nível militar. O Secretário Geral da ONU, Guterres, manteve em seus pronunciamentos o estímulo para que os países e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) atuassem para o fim da violência e repressão em Myanmar. Tom Andrews, relator especial sobre Myanmar, afirma que a atuação dos países deve ocorrer de modo multilateral e coordenado, com o intuito de agravar as sanções impostas (ONU News, 2021). Até o momento, os efeitos que medidas coercitivas internacionais podem ter perante o novo governo são incertas, mas, sem a participação decisiva dos atores internacionais, apenas a pressão internacional não consegue assegurar que os conflitos políticos e sociais em Myanmar irão se encerrar em breve.



Referências:

ALMOGUERA, Paloma. Mais de 110 mortos nos protestos de Mianmar depois que militares ameaçaram atirar na cabeça. El País, março 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-03-27/mais-de-90-mortos-nos-protestos-de-mianmar-depois-que-militares-ameacaram-atirar-na-cabeca.html>. Acesso em: 30/03/2021

BIRSEL, Robert. Mortes em protestos em Mianmar têm como objetivo ‘sacudir o mundo’. CNN Brasil, maio 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/05/02/mortes-em-protestos-em-mianmar-tem-como-objetivo-sacudir-o-mundo. Acesso em: 24/05/2021

Conselho de Direitos Humanos pede liberação imediata de detidos em Mianmar. ONU News, fevereiro 2021. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/02/1741362. Acesso em: 30/03/2021

Conselho de Segurança debate cooperação entre ONU e organizações regionais. ONU News, abril 2021. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/04/1748062. Acesso em: 24/05/2021

CUDDY, Alice. Myanmar coup: What is happening and why? BBC News, fevereiro 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-asia-55902070>. Acesso em: 30/03/2021

Entenda o golpe militar em Mianmar. G1, fevereiro 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/02/01/entenda-o-golpe-militar-em-mianmar.ghtml>. Acesso em: 30/03/2021

Escritório para Direitos Humanos vê risco de “conflito total” em Mianmar. ONU News, abril 2021. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2021/04/1747442. Acesso em: 24/05/2021

Exército de Myanmar declara estado de emergência após detenção de Suu Kyi. Diário de Notícias, fevereiro 2021. Disponível em: <https://www.dn.pt/internacional/exercito-de-myanmar-declara-estado-de-emergencia-e-assume-controlo-do-pais-durante-um-ano-13300602.html#media-1>. Acesso em: 30/03/2021

Exército de Myanmar detém chefe do governo e declara emergência. Agência Brasil, fevereiro 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-02/exercito-de-myanmar-detem-chefe-do-governo-e-declara-emergencia. Acesso em: 30/03/2021

GAOUETTE, Nicole. What’s happening in Myanmar and what the Biden administration is trying to do about it. CNN, abril 2021. Disponível em: https://edition.cnn.com/2021/04/13/politics/myanmar-explainer-us/index.html. Acesso em: 24/05/2021

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