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Diplomacia Pop: Como a popularização do Vogue pela Madonna ajudou no combate à AIDS

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    nuriascom
  • 12 de nov.
  • 6 min de leitura
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Diz aí, ASCOM!

Por: Lara Agra


Quando realizou seu show na Praia de Copacabana em 2024, Madonna, em sua apresentação de ‘Live to Tell’ —  uma das favoritas dos fãs e uma das músicas mais importantes da discografia da cantora — fez uma homenagem para aqueles que faleceram por conta da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS). Em uma performance extremamente forte e emocionante, a cantora chegou a incluir no telão ícones brasileiros como Cazuza e Renato Russo, vítimas da doença quando ela estava em seu auge no mundo.


Esse momento chama a atenção para um dos pontos mais relevantes que fizeram a Madonna ser tão aclamada, mesmo depois de 40 anos de carreira. Para entender a importância da Madonna e sua luta pela saúde pública em prol da comunidade LGBTQ+, é preciso revisar os danos causados pela construção heteronormativa dentro do discurso coercitivo em torno da AIDS, principalmente nos anos 80. 


O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) veio ao mundo de maneira silenciosa, e a sua variante em estágio avançado, a AIDS, de forma fatal. Mesmo a doença tendo sido identificada antes de receber sua nomenclatura oficial, foi somente em 1981, quando o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) publicou um boletim alertando as pessoas sobre uma “doença estranha de gente esquisita”, que emergiu um novo ciclo de pânico e preconceito em escala global, que ressoa, mesmo que de maneira fragmentada, até os dias de hoje. 


No início, a AIDS foi chamada oficialmente por profissionais de saúde e acadêmicos por nomes como “deficiência imunológica relacionada aos gays”, “peste gay”, “câncer gay”, “síndrome da ira de Deus” e também “doença dos 5Hs”: associada aos homossexuais, hemofílicos, prostitutas (hookers), haitianos e usuários de heroína. O direcionamento da culpa, especialmente aos homossexuais, tinha o objetivo de criar um grande alvo para encobrir a falta de informação que se tinha sobre a doença. Enquanto os médicos estavam perdidos, espalhando presunções danosas e infundadas que serviram para agravar a crise da epidemia, se tornou nítida a segregação a que esses grupos foram submetidos, deixando todo um segmento populacional ainda mais estigmatizado.


No escopo de suas obras explorando a Teoria Queer, Judith Butler provoca algumas questões acerca da formação do sujeito. Quem se constitui como sujeito? O que conta como uma vida? O que acontece se uma identidade não se torna “bem-sucedida”? Os fracassos podem proporcionar oportunidades para reconstruções subversivas de identidade? O que simplesmente se consolida como poder? O mundo presenciou nessa crise de saúde pública a forma como o poder da época usou uma abordagem discriminatória e moralista a fim de dirigir o retorno político e social de acordo com seus interesses hegemônicos. A eclosão dos movimentos de Libertação Gay, que vinham tomando força nos Estados Unidos desde os anos 60, se apresentava como uma ameaça para o formato tradicional do sistema. O repúdio a ideia do “outro” e sua luta por reivindicação de espaços e direitos eram vistos como uma afronta à ordem heteronormativa de poder. 


Ainda olhando para os Estados Unidos, dessa vez adentrando o subúrbio e os guetos de Nova York, a cultura queer se mantinha viva e resistente dentro dos ballrooms: competições e apresentações voltadas para o público LGBTQ+ em discotecas onde se realizavam performances de voguing.  Os gays afeminados, mulheres trans, travestis, parte de um grupo formado em sua maioria por negros e latinos, eram predominantes nesses espaços e consequentemente os que fundaram a cultura nos Estados Unidos.


A cultura ballroom é um espaço de celebração a tudo que remete à liberdade de existência e criatividade da comunidade LGBTQ+.  O nome voguing vem da revista Vogue e consiste em uma dança com movimentos baseados nas poses que as modelos faziam nas revistas. O voguing permitiu que os queers não brancos pudessem resistir com sua arte em meio a essa demonização do “outro”, ainda mais durante a epidemia da AIDS. Como resultado de processos discursivos que se desenvolvem no interior das culturas, a Teoria Queer questiona as concepções de gênero, de sexo, de raça e outras categorias que criam identidades rígidas sobre as quais o "sujeito" se localiza. E o queer, sob a lente da própria teoria, traz uma ideia de empoderamento e reivindicação dos corpos subalternos, que, ao se manterem fortalecidos em suas margens identitárias, têm poder para ocupar espaços com seus corpos e sexualidades.


A Madonna surge em um contexto onde poucos artistas mainstream declararam publicamente solidariedade à comunidade LGBTQ+. Seu trajeto foi muito marcado por seus amigos queers que, evidencialmente, tocaram em sua arte. A cantora não só se inseriu nos espaços e nos movimentos políticos, mas também abraçou o espírito da comunidade e os incluiu em seus trabalhos. Sua expressão artística, marcada pela alegoria religiosa, glamour da sexualidade e arcabouço queer, desafiou a ignorância e o medo instaurados pela Comunidade Internacional naquele período de intimidação pungente. 


Em 1989, com o lançamento do seu álbum ‘Like a Prayer’, Madonna inseriu uma cartilha disruptiva sobre a AIDS dentro dos discos. O folheto enfatiza que qualquer pessoa, independentemente de raça, gênero, sexualidade ou idade podia contrair HIV e consequentemente a AIDS, além de levar em grande alcance as verdadeiras formas de transmissão de HIV. O cumprimento desse papel, que foi negligenciado pela mídia e pelos governos da época, foi uma das maiores contribuições que Madonna poderia dar à causa. Sua constante ênfase de que as pessoas que vivem com HIV merecem compaixão, apoio e não violência marca de forma clara seu posicionamento frente ao estigma, levando em frente uma das principais lutas carregadas no ativismo da cantora.  


Com o lançamento da música e do clipe de ‘Vogue’ em 1990, a cultura ballroom deixou o subúrbio estadunidense e estourou pelo mundo. Ao levar o vogue para a mídia, Madonna também trouxe as pessoas do movimento para mostrarem sua arte e fazerem o restante do mundo se apaixonar pela cultura LGBTQ+. Essa popularização do voguing se faz muito importante para colocar em local de protagonismo essas pessoas historicamente marginalizadas. A AIDS, no imaginário de grande parte da população, era a doença do “outro”, daqueles que tinham desvio de comportamento e cometiam práticas nefastas. Quando artistas de grande alcance como a Madonna, se tornam porta-vozes dessa comunidade e lutam pela humanização desses sujeitos, ainda mais em meio a opressão intensa como na crise da AIDS, acabam sendo imortalizados pela sua importância na história. 


‘Live to Tell’, lançada em 1986, é uma ode a todos os entes queridos da Madonna que morreram na luta contra a AIDS. A música recebeu uma performance especial na “Celebration Tour”, mostrando retratos de diversas vítimas da doença, e foi cantada com muita emoção por mais de 1,6 milhões de pessoas no show de Copacabana em 2024. Essa faixa foi recebida pelos fãs como um acalento para o próprio luto, a fim de ser usada como memorial dos seus próprios conhecidos e amados que já se foram. 


Entre as grandes estrelas da música americana, Madonna ocupa uma posição revolucionária no meio delas. Se a luta contra o preconceito é um desafio até os dias de hoje, imagine então quanta coragem seria necessária para uma mulher resolver vir à frente e defender o direito de pessoas LGBTQ+, através da arte da própria comunidade, há 40 anos, em uma década na qual todos eram mal vistos, vulgares e sujos, através da arte da própria comunidade?


Felizmente, hoje em dia o tratamento para o HIV permite às pessoas levar uma vida normal e tranquila com o vírus. Mas até a medicina e o debate público chegarem nesse ponto, não se pode esquecer como a comunidade queer foi transformada em pária e de como, apesar disso, resistiram.



REFERÊNCIAS 


ROLLINGSTONE. Qual a importância de Madonna para o voguing – e por que a cultura ballroom vai muito além da cantora. Disponível em: https://rollingstone.com.br/noticia/come-vogue-qual-importancia-de-madonna-para-o-voguing-e-por-que-cultura-ballroom-vai-muito-alem-da-cantora/. Acesso em 20 out. 2025


BBC NEWS BRASIL. Como Madonna quebrou tabus ao incluir 'cartilha sobre Aids' em álbum de 1989. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceklygyy8z4o. Acesso em 20 out. 2025


VIEIRA FILHO, MAURÍCIO. Madonna, Sexualidades e Corporeidades na The Celebration Tour no Brasil. Universidade Federal de Juiz de Fora. 28 ago. 2024.


NÚCLEO DE PESQUISA E EXTENSÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS. A epidemia de AIDS como fator regulatório e de construção de políticas globais. Disponível em: https://nuriunijorge.wixsite.com/nuri/post/a-epidemia-de-aids-como-fator-regulat%C3%B3rio-e-de-constru%C3%A7%C3%A3o-de-pol%C3%ADticas-globais. Acesso em 31 out. 2025

 

SALIH, S. Judith Butler e a Teoria Queer. São Paulo, Autêntica, 2016.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.  


CIÊNCIA SUJA. AIDS: epidemia do preconceito. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/5LF8OdEnslD6BIESavQD3B?si=c07b67361d074321. Acesso em 24 out. 2025


WELLCOME COLLECTION. Artists, activism and AIDS. Disponível em: https://wellcomecollection.org/stories/artists--activism-and-aids . Acesso em 24 out. 2025 


 
 
 

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