A saída dos Estados Unidos da OMS e seus impactos no cenário internacional
- nuriascom
- 24 de mai.
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Gabriel Monteiro e Iuri santiago
A fim de evitar o surgimento de novas epidemias como a da Gripe Espanhola (1918-1920), foi criada em 1948, durante o pós Segunda Guerra Mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS), que tornou-se com o passar da segunda metade do século XX até a atualidade uma peça fundamental na governança da saúde global. (UNB, 2021). A agência subordinada da ONU tem um enorme impacto no combate de doenças como o HIV e a tuberculose, e promove também políticas de saúde pública mundial. Um exemplo são os auxílios que a instituição fornece para o fortalecimento dos sistemas de saúde ao redor do mundo, principalmente o de países mais carentes, como o incentivo à vacinação (PAHO, 2022). Apesar disso, a OMS enfrenta dificuldades estruturais, como os cortes nos orçamentos anuais da instituição nos últimos anos, causados pela diminuição do financiamento de alguns países. O maior desafio recente, enfrentado pela instituição sanitária, foi o combate à pandemia de COVID-19 no início da década de 2020, que teve milhões de casos de contaminação e óbitos ao redor do mundo. A OMS teve um papel importantíssimo, voltando-se exclusivamente no apoio ao desenvolvimento da vacina e a recomendações sobre a prevenção da doença, tanto para os países-membros quanto para a população mundial. (WHO, 2024).
Entretanto, algumas das decisões da Organização Mundial da Saúde (OMS) em relação à pandemia de Covid-19, como a não restrição de voos oriundos da China, resultaram na insatisfação do presidente norte-americano, Donald Trump, que resolveu à época ( junho de 2020) retirar os Estados Unidos da Organização, argumentando que a China tinha total controle da OMS. Essa decisão, em consequência, resultou no corte dos 450 milhões de dólares em financiamento que os estadunidenses aportavam anualmente, em um momento crítico da pandemia. Esta medida, no entanto, foi revertida pelo presidente sucessor, Joe Biden (Agência Brasil, 2020)
Já em seu segundo mandato, o presidente Donald Trump resolveu seguir com a sua ideia original, e anunciou, logo no primeiro dia do seu segundo mandato, que os Estados Unidos iriam se retirar novamente da OMS. Segundo ele, a agência “continua a exigir pagamentos injustamente onerosos” (CNN, 2025) e justificou a saída dos norte-americanos afirmando:
“A má gestão da Organização na pandemia de covid-19 que surgiu de Wuhan, China, e outras crises globais de saúde, sua falha em adotar reformas urgentemente necessárias e sua incapacidade de demonstrar independência da influência política inapropriada dos estados-membros da OMS”. (VEJA, 2025).
A saída do país norte-americano trouxe novos desafios significativos para a OMS e para a cooperação global na saúde. O Estado norte-americano era um dos principais financiadores e formuladores de políticas dentro da Organização, fornecendo também auxílio em novos programas, além de realizar pesquisas e estudos na área da saúde (Jornal USP, 2019). Sendo assim, sua retirada gerou incertezas e dúvidas sobre o futuro de vários programas essenciais no combate de diversas doenças, evidenciando a importância da Organização Mundial de Saúde como pilar essencial na coordenação da resposta global a emergências sanitárias e dos Estados Unidos na garantia da manutenção dessas respostas (VEJA, 2025).
A primeira grande consequência foi na parte financeira da Organização, os Estados Unidos contribuem com 20% do financiamento geral anual da OMS, sendo o principal financiador da instituição (DW, 2025). Além de liderar o financiamento de diversos programas de saúde pública ao redor do mundo em conjunto com a ONU, como o programa contra o HIV/AIDS, o UNAIDS, e o Fundo Global de combate à Tuberculose e Malária (UNAIDS, 2025). Consequentemente, os mais afetados vão ser os países que recebem o apoio desses programas no combate dessas doenças, e que infelizmente não possuem recursos financeiros o suficientes para ajudar a manter esses projetos ativos, visto que esses países são bastante vulneráveis. Já a OMS, ao receber menos recursos, enfrentará dificuldades operacionais para manter sua presença global, tendo o risco de se tornar menos influente e capacitada para coordenar e definir políticas de saúde, gerando um risco contra futuros problemas mundiais, como o surgimento de uma nova pandemia global. (SBPC, 2025)
A retirada dos Estados Unidos também ameaça a colaboração científica internacional, visto que várias universidades e laboratórios norte-americanos têm parcerias históricas com a OMS, por meio de centros colaboradores que promovem pesquisa, desenvolvimento de vacinas e o monitoramento de doenças (FIOCRUZ, 2025). Ao romper esses laços, há o risco de um isolamento científico, prejudicando os avanços globais. Instituições internas também serão impactadas, visto que algumas agências americanas de referência, como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e a Food and Drug Administration (FDA), trocam experiências e pesquisas com a Organização Mundial de Saúde tanto em pesquisas (HEALTH, 2009).
Em meio a isto, a decisão dos Estados Unidos abriu caminhos para o fortalecimento de outras potências dentro da OMS. A China, que já estava ampliando a sua influência em outras Organizações Internacionais, aumentou a sua contribuição financeira e política dentro da OMS. O discurso do país asiatico, após a decisão do presidente norte-americano, foi de apoio total à Organização (EXAME, 2025). Da mesma forma, a União Europeia também passou a desempenhar um papel mais ativo, promovendo iniciativas para fortalecer a OMS e garantir sua independência operacional. Essas aproximações podem ser benéficas para a Organização Mundial da Saúde, visto que que a maior atuação desses países pode contribuir para a diminuição dos danos causados pela saída do país norte-americano da instituição. (EXAME, 2025).
Dessa maneira, a saída dos EUA da OMS não causou apenas problemas financeiros e operacionais, mas também contribuiu para uma série de mudanças no equilíbrio de poder dentro da Organização. Essa decisão política do presidente norte-americano faz com que o país se isole cada vez mais no cenário internacional político e sanitário, fazendo com que o país seja criticado e mal vista por outras nações influentes no cenário político internacional, como a China e a União Europeia. (CCI, 2025) A ausência dos Estados Unidos nesse cenário da saúde global, e da Organização Mundial de Saúde, pode impactar muito negativamente a atuação da instituição, visto que historicamente o país possui uma importante contribuição para asaúde pública global.
Ainda sobre isso, os EUA não se isentam dos efeitos de suas próprias ações, uma vez que os mesmos também sofreram os impactos da sua saída, apesar das consequências geradas para a Organização e para seus programas de saúde, sendo estes de grande importância para todo o globo (FIOCRUZ, 2025). Nesse sentido, uma delas é o encerramento de uma das pontes de comunicação que existe internamente, que funciona da seguinte maneira: ao identificar uma possível ameaça sanitária, determinado país relata a situação diretamente para a OMS, e ela, por sua vez, cria uma ponte para que todos os Estados-membros sejam notificados sobre o ocorrido, podendo se preparar coletivamente para o que pode ocorrer (WHO). Com a saída do país norte americano, essa ponte é obstruída de ambos os lados, já que a OMS não mais será informada diretamente sobre as questões internas dos Estados Unidos, e vice-versa, reduzindo sua efetividade.
Além disso, é importante avaliar as potenciais pandemias futuras e como o combate a elas seria ainda mais complicado, levando em consideração a deserção de um país tão influente no sistema internacional. Em Uganda, República Democrática do Congo e Burundi, alguns vírus com potenciais pandêmicos já são uma realidade, e a fragilidade desses países em desenvolvimento tem sido um fator propulsor na rápida proliferação dessas doenças (ONU, 2025). “Doenças não se prendem a fronteiras nacionais. Portanto, essa decisão não é preocupante apenas para os EUA, mas, na verdade, para todos os países do mundo.” (Pauline Schelbeek, 2024, tradução nossa ).
Ademais, com a volta de Donald Trump à presidência, eventos internos também devem ser adicionados à equação, como a indicação de Robert F. Kennedy Jr. – proeminente defensor da política antivacina (MIT Technology, 2025) – ao posto de secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, o que pode intensificar a desconfiança em relação às políticas de saúde pública e enfraquecer programas de imunização no país (G1, 2025). A postura de Kennedy, levando em consideração seu histórico ativista anti vacinas, pode comprometer os Estados Unidos em esforços multilaterais, reduzindo a cooperação em momentos críticos. Por consequência, a retirada dos EUA da OMS, além de poder influenciar outros atores a se retirarem da Organização, pode resultar também na adoção de políticas mais nacionalistas em relação à área da saúde, enfraquecendo ainda mais a resposta mundial a epidemias, desastres naturais e crises humanitárias em regiões mais vulneráveis de países ainda em desenvolvimento, comprometendo a cooperação entre os mesmos (UFMG, 2020).
Segundo Santana e Pires-Alves (2017), o enfraquecimento do multilateralismo na saúde global compromete a capacidade coletiva de resposta a surtos, já que a fragmentação da cooperação internacional pode gerar desigualdades no acesso a tratamentos, uma vez que as disputas entre os atores e os interesses privados pode acarretar no favorecimento dos interesses desses agentes e não no bem estar da maioria:
O segundo paradoxo se revela na tensão entre solidariedade internacional e interesses nacionais nos setores científico e tecnológico, econômico, industrial e financeiro que, efetivamente, definem os acordos geopolíticos e militares entre países. Disputas de poder entre governos incidem nesse campo de relações, sob a influência de grandes empresas privadas, geralmente em detrimento do interesse coletivo, fator-chave no engendramento das desigualdades e injustiças que dividem o mundo entre os mais afluentes e os mais desvalidos, com reflexos dolorosos no tocante à saúde.
(Santana e Pires-alves, 2017).
Dessa maneira, com o multilateralismo fragmentado, nenhum país, por mais poderoso ou avançado que seja, poderia resolver essas questões isoladamente. Este cenário evidencia, portanto, a necessidade de cooperação na construção de um sistema de saúde internacional eficiente e resiliente, ressaltando a importância das relações multilaterais para enfrentar desafios sanitários globais, papel que vem sendo historicamente desempenhado pela OMS.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. Trump anuncia rompimento dos Estados Unidos com a OMS. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-05/trump-anuncia-rompimento-dos-estados-unidos-com-oms. Acesso em: 15 abr. 2025.
BBC. Coronavírus: o que está por trás da decisão de Donald Trump de suspender financiamento à OMS - BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52302892. Acesso em: 15 abr. 2025.
CCI/ENSP. Paulo Buss: “A saída dos EUA da OMS não é benéfica para o sistema multilateral, nem para a própria população do país”. Disponível em: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/56014.
CNN. Saiba o que significa a saída dos EUA da OMS e suas consequências. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/saiba-o-que-significa-a-saida-dos-eua-da-oms-e-suas-consequencias/. Acesso em: 22 mar. 2025
CNN. União Europeia vê com preocupação anúncio dos EUA de deixar a OMS. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/uniao-europeia-ve-com-preocupacao-anuncio-dos-eua-de-deixar-a-oms/. Acesso em: 23 mar. 2025
DADOS MUNDIAIS. Países em desenvolvimento. Disponível em: https://www.dadosmundiais.com/paises-desenvolvimento.php. Acesso em: 3 abr. 2025
DW. Com saída dos EUA, OMS prevê corte orçamentário de 20%. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/com-sa%C3%ADda-dos-eua-oms-prev%C3%AA-corte-or%C3%A7ament%C3%A1rio-de-20/a-72085218. Acesso em: 23 abr. 2025.
EXAME. China defende fortalecimento do papel da OMS após saída dos EUA. Disponível em: https://exame.com/mundo/china-defende-fortalecimento-do-papel-da-oms-apos-saida-dos-eua/. Acesso em: 23 mar. 2025
FIOCRUZ. Saída norte-americana da OMS coloca em risco visão de saúde como direito, avalia historiador - Casa de Oswaldo Cruz. Disponível em: https://coc.fiocruz.br/todas-as-noticias/saida-norte-americana-da-oms-coloca-em-risco-visao-de-saude-como-direito-avalia-historiador/. Acesso em: 2 maio. 2025.
G1. Trump escolhe Robert F. Kennedy Jr. como secretário de Saúde. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/eleicoes-nos-eua/2024/noticia/2024/11/14/trump-escolhe-robert-f-kennedy-jr-como-secretario-de-saude.ghtml. Acesso em: 01 abr. 2025.
HAMZELOU, Jessica. EUA fora da OMS: consequências globais. Disponível em: https://mittechreview.com.br/eua-saida-oms-impactos/. Acesso em: 1 abr. 2025.
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PAHO. Imunização - OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/imunizacao. Acesso em: 02 maio.2025.
SANTANA, José Paranaguá de; PIRES-ALVES, Fernando. Desenvolvimento, desigualdade e cooperação internacional em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, jul. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YfTCSGwwYy4ZzjwNFNLbkYz/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 3 abr. 2025.
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UFMG. Nacionalismo em tempos de pandemia. Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/nacionalismo-em-tempos-de-pandemia. Acesso em: 03 abr. 2025.
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