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Ainda Estamos Aqui: O Cinema do Sul Global como Ato de Memória e Reparação

  • Foto do escritor: nuriascom
    nuriascom
  • 30 de mai.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 31 de mai.



Bruno Fraga e Sofia Simplício

ASCOM | Diz Aí, Ascom


Imagem: Aline Onawale


O cinema tem um papel fundamental na construção de narrativas, especialmente quando se trata de histórias silenciadas ou com pouca visibilidade. O filme Ainda Estou Aqui (2024), dirigido por Walter Salles e baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva, acompanha a trajetória de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, que perde o marido torturado e assassinado durante a ditadura militar brasileira. Mais do que reconstituir o período ditatorial, o filme aborda os traumas que permanecem após o fim do regime e o silêncio das famílias que nunca obtiveram respostas do paradeiro de seus entes. A conquista do Oscar de Melhor Filme Internacional, além de consagrar a qualidade da obra, representa um avanço simbólico para as produções do Sul Global, historicamente marginalizadas por estruturas dominadas pelo Norte. Nesse sentido, a teoria decolonial das Relações Internacionais propõe justamente o questionamento dessas hierarquias globais, denunciando como o conhecimento e a cultura produzidos no Sul são frequentemente deslegitimados ou invisibilizados nos espaços internacionais.

Embora as Relações Internacionais sejam centradas em guerras, sistemas e tratados entre Estados, é fundamental reconhecer que a violência também se manifesta dentro das fronteiras, assumindo formas institucionais e domésticas. Ao observar a história de Eunice Paiva é possível ver essas diferentes camadas: o Estado pode ser muito opressor, mas também pode ser ausente. Durante a ditadura, milhares de pessoas foram mortas, torturadas ou desaparecidas e existem muitos outros casos que seguem sem resposta, criando um país que se acostumou a viver com a impunidade, por conta da falta de responsabilização e o silêncio institucional. O apagamento não é apenas um fato político, mas também uma violência simbólica. O que acontece com um povo que não pode lembrar?

Quase 30 anos após o fim do regime, em 2011, o Brasil criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) no Governo de Dilma Rousseff, com o objetivo de investigar as graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, especialmente nos 21 anos do regime autoritário. Apesar do trabalho da CNV ter revelado documentos, identificado agentes de repressão e nomeado os mortos e desaparecidos, como é visto na obra de Paiva, a comissão teve limitações. Enquanto países como Chile e Argentina julgaram e condenaram os militares envolvidos no crime, no Brasil, muitos torturadores seguem livres, já que a Lei da Anistia de 1979 continua em vigor. Isso impediu que muitos responsáveis fossem punidos pelos crimes do regime militar. Além disso, houve várias críticas à CNV vindo de setores militares e conservadores com o discurso de “revanchismo”. Atualmente, o acesso a muitos dos arquivos da ditadura continuam restritos, com muitos documentos “desaparecidos”, escondidos ou classificados como sigilosos. Por mais que a CNV tenha sido um avanço importante, ela quebrou o pacto do esquecimento, nos trouxe dados, rostos, nomes, deu voz às vítimas e marcou posição diante de uma história que foi negada por décadas. Porém, a verdade não basta sem justiça.

As teorias pós-coloniais entre as abordagens críticas das Relações Internacionais ajudam a entender como o mundo ainda carrega os efeitos do colonialismo, mesmo depois de seu fim formal. Essas correntes criticam o fato de que as potências do Norte Global continuam ditando o que é valorizado, reconhecido e considerado legítimo, inclusive na cultura. O cinema também não é neutro, reproduzindo desigualdades. Até os dias atuais as produções do Sul Global são subestimadas em premiações internacionais, como o Oscar e o Globo de Ouro. Por isso, a vitória de Ainda Estou Aqui como Melhor Filme Internacional, e o prêmio inédito da primeira brasileira vencedora do Globo de Ouro, Fernanda Torres, como Melhor Atriz em filme de Drama, representam muito mais do que conquistas individuais. Esses reconhecimentos mostram que os países do Sul Global estão começando a ser ouvidos em espaços que, historicamente, não os reconheciam.

Contudo, o impacto desse reconhecimento vai além do cinema. Quando um filme brasileiro, que fala sobre a dor e o silêncio deixados pela ditadura, conquista um prêmio internacional, também afeta o modo como o país enxerga a si próprio. Passa a haver um reforço na identidade nacional, uma sensação de pertencimento e de que aquela história tem valor universal. Um exemplo semelhante pode ser visto no caso do filme letão Flow, embora seja uma produção europeia, vem de um país historicamente pouco valorizado entre a comunidade internacional. Como destaca o texto  Flow: O Impacto Cultural e Econômico do Oscar na Letônia, anteriormente publicado no site do NURI, quando histórias de países pouco conhecidos são identificados internacionalmente, elas ganham força e ajudam a construir uma nova história.

Flow mostrou que grandes histórias podem surgir de qualquer lugar, independentemente de orçamento ou infraestrutura. [...] Assim, o filme não apenas colocou a nação no mapa, mas também abriu portas para uma nova geração de cineastas letões, [...]. (FREIRE; TEIXEIRA; ALMEIDA, 2025)

Neste sentido, Ainda estou aqui não é apenas sobre a narrativa de uma mulher que perdeu o marido para a ditadura: é um espelho em que o Brasil se vê - ou se recusa a ver. Ainda Estou Aqui os obriga a revisitar um passado que continua ecoando nas estruturas de poder, nas violências diárias e nas ausências. Sua vitória no Oscar, trazendo reconhecimento, pela primeira vez, a um filme que conta a história sobre um trauma nacional, não apenas projeta o Brasil como um país que consome cultura, mas como um país que produz narrativas potentes e politicamente relevantes.

Se as teorias pós-coloniais relembram que o Sul Global vive à sombra de um sistema que marginaliza suas vozes, a premiação é uma resposta de que essas histórias merecem a sua devida vocalização. Por fim, é sempre importante relembrar que nenhuma democracia se sustenta sem memória e nenhuma nação é, ou será, plenamente livre, enquanto o seu passado for silenciado. 



Referências:


ACADEMIA BRASILEIRA DE CINEMA. Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, vai representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar 2025. 2024. Disponível em: https://academiabrasileiradecinema.com.br/ainda-estou-aqui-de-walter-salles-vai-representar-o-brasil-na-disputa-por-uma-vaga-no-oscar%EF%B8%8F-2025/. Acesso em: 15 maio 2025.


FREIRE, Daniela Mendes Viana; TEIXEIRA, João Paulo Silva; ALMEIDA, Lara Carvalho de. Flow: o impacto cultural e econômico do Oscar na Letônia. Núcleo de Pesquisa e Extensão em Relações Internacionais (NURI), 5 abr. 2025. Disponível em: https://nuriunijorge.wixsite.com/nuri/post/flow-o-impacto-cultural-e-econ%C3%B4mico-do-oscar-na-let%C3%B4nia. Acesso em: 14 maio 2025.


NASSER CURY, Paula Maria. Comissão da Verdade: análise do caso brasileiro. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 7, p. 286–315, 2012.


SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 78, p. 3-46, 2007.


TAVARES, Mirian. Da ruína como discurso: Apontamentos sobre cinematografias pós-coloniais. Portuguese Literary & Cultural Studies, n. 34-35, p. 257-276, 2022.


TOLEDO, Áureo. Perspectivas pós-coloniais e decoloniais em relações internacionais: a parte que nos cabe nesse percurso. In: TOLEDO, Áureo (org.). Perspectivas pós-coloniais e decoloniais em relações internacionais. Salvador: Edufba, 2021.

 
 
 

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2 Comments


joao vitor
joao vitor
May 31

Qualidade!👏🏽

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Harissa Farhá Moraes
Harissa Farhá Moraes
May 31

Muito bom! 👏

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