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OBSERVATÓRIO | Júlia Moura Abreu

As eleições na Turquia e a importância para o cenário internacional

Pela primeira vez na história da Turquia as eleições presidenciais foram para um segundo turno. No dia 28 de maio, o povo decidiu entre reeleger o atual presidente, Recep Tayyip Erdoğan, ou eleger o economista Kemal Kılıçdaroğlu, além de votar pela eleição de membros do parlamento. A Turquia é extremamente privilegiada geograficamente, além de ser uma nação transcontinental, tendo uma parte do território localizado na Europa, e outra na Ásia, tem acesso ao Mar Mediterrâneo e Mar Negro e desde 1952 é país membro da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), é um país poderoso belicamente e possui um extenso histórico de conflitos, como o atual Conflito no Chipre, o Genocídio Armênio e tantos outros.

O primeiro turno das eleições ocorreu no dia 14 de março, e foi extremamente acirrado, com o atual presidente, tendo recebido 49,2% contra os 44,95% do segundo mais votado, Kılıçdaroğlu. Esse primeiro turno também foi marcado por fortes acusações de corrupção, ao decorrer do dia da eleição, houve relatos de ataques, fraudes e tentativas de impedir a votação nas seções eleitorais de todo o país, porém, os votos continuam sendo considerados válidos, ignorando os inúmeros protestos da população. Para entender todas as repercussões dessa eleição no cenário internacional, primeiramente é necessário entender a estrutura e formação social e a história do país, entender como a sua formação, após a dissolução do Império Otomano apresenta suas consequências atualmente.

O Império Otomano (1299-1922) foi um dos mais poderosos impérios da história, sendo fortemente marcado por seu caráter multiétnico, multicultural e multilingue e tinha um vasto território que abrangia três continentes; Ásia, África e Europa. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um dos tratados de paz assinados foi o Tratado de Sévres (1920), que decretou a partilha do Império Otomano, a extensão do território da Armênia e a criação de um Estado Curdo. Três anos depois, em 1923, liderados por Mustafa Kemal Atatürk, soldados do Movimento Nacionalista Turco, conseguem vencer a Guerra de Independencia Turca e com o Tratado de Lausanne, é decretado oficialmente a República da Turquia.

Os ideais do marechal de campo Kemal Atatürk, considerado o pai da República turca, criaram um movimento ideológico conhecido como Kemalismo. Esse movimento é baseado em quatro pilares: secularismo (Estado laico), ou seja, não somente a separação total de Estado e religião, mas também de religião e educação, cultura e assuntos legais; reformismo, isso significa que conceitos tradicionais foram abandonados e conceitos modernos foram adotados; nacionalismo, construída na ideia de uma identidade nacional turca, além de ser anti-imperialista e contra qualquer dinastia de qualquer classe social que não seja a sociedade turca e por fim; estatismo, afirmando que o Estado deve regular a economia e agir onde as iniciativas privadas não agiam.

Atualmente essa ideologia é adepta majoritariamente por uma elite política e econômica, desesperada por manter as relações de poder como estão. Por trás dos quatro pilares, está subentendido uma mensagem: é necessário ocidentalizar a Turquia. No início da década de 2010, essa ideologia já era considerada ultrapassada e realmente só tinha apelo da elite, já que essa ocidentalização forçada e a laicidade do Estado batia de frente com a sociedade turca. O atual presidente, após anos trabalhando para desmantelar os princípios do estado kemalista, principalmente ao reformular as relações entre civis e militares e ao reduzir a autonomia das forças armadas. Porém, agora, com o intuito de se reeleger, Erdoğan está se apoiando nessas ideias, apelando pelos votos da direita, das elites e dos conservadores, que são a maioria da população.

Agora para entender melhor como Tayyip Erdoğan chegou na posição de manter autoridade sobre a Turquia por 20 Anos. Erdoğan foi ativista islâmico por décadas, inicialmente filiado ao Necmettin Erbakan pro-Islamic Welfare Party (Necmettin Erbakan Partido pró bem-estar islâmico) e por ele se elegeu prefeito de Istambul em 1994, porém ele acabou sendo preso por quatro meses devido a uma fala de incitação ao ódio racial. Em 2001, ele voltou à vida política e criou outro partido enraizado no Islam, aliado ao Abdullah Gul, partido este que ele representa até hoje, o AKP (Partido pela Justiça e Desenvolvimento). Passou a ocupar o cargo de Primeiro Ministro da Turquia em 2003, e os três primeiros mandatos foram um período de crescimento econômico estável, a classe média cresceu e muitos saíram da pobreza, também investiu em infraestrutura e construiu moradias no intuito de modernizar a Turquia.

Porém, muitos estudiosos apontavam que seu governo estava cada vez mais autocrata. Alguns turcos se atrevem a dizer que ele criou uma nova classe social na Turquia, que seria essa elite que o apoia até os dias atuais. Em 2014, após ser proibido de concorrer novamente para o cargo de Primeiro Ministro, ele se elegeu presidente, e dois anos depois, em 2016, a Turquia presenciou a primeira tentativa violenta de golpe, quando soldados da rebelião quase conseguiram sequestrar o presidente.

Em 2017, ele ganhou um referendo que o garantia diversos privilégios e atitudes antidemocráticas, como o direito de impor um estado de emergência, poder extinguir partidos políticos e nomear os principais funcionários para cargos públicos, além do poder de intervir no sistema jurídico. Em 2018, conseguiu se reeleger com os votos das pequenas cidades rurais, áreas mais conservadoras, como indicado no mapa abaixo:


Nesse último mandato, o presidente vem mantendo fortes laços com a Rússia e Vladimir Putin e buscou um papel fundamental na atual guerra contra a Ucrânia. Durante seu governo, ficou notável o afastamento das relações entre Turquia e OTAN, tal visto que o país adquiriu um sistema de defesa antimísseis da Rússia e selecionou a mesma para construir o primeiro reator nuclear turco, portanto, nesses anos, a Turquia vem fortalecendo suas relações com Rússia e China.

Para a atual eleição, sua estratégia vem sendo conquistar e manter o apoio de conservadores e da direita, porém, a oposição está tomando força, especialmente após os terremotos ocorridos na Turquia em fevereiro, que deixaram mais de 50 mil mortos e cerca de 6 mil desabrigados. O desabamento das construções foi devido a irresponsabilidade do governo, que os construiu sem a estrutura correta e com materiais de baixa qualidade, sem a fiscalização necessária, além do fato do governo ter demorado mais de 3 dias para enviar socorro, algumas cidades receberam ajuda 10 dias após o terremoto, o governo inclusive admitiu ter sido desleixado com o envio de tropas para auxílio.

O rival do atual presidente nessas eleições, Kemal Kılıçdaroğlu, é conhecido por ser um homem extremamente calmo, de fala mansa e membro do Partido Republicano do Povo (CHP). É um político experiente, nos últimos meses até fez alguns vídeos em seu Instagram em defesa dos curdos e alevitas, ao decorrer da sua campanha, sempre fez questão de declarar diversas vezes que uniria todas as diferentes vertentes da sociedade turca. Kılıçdaroğlu está no comando do CHP há treze anos, e nesse período trabalhou em prol de uma reforma no partido, se aproximando de líderes islâmicos, desvencilhando o partido do arcaísmo militarista, apresentou figuras religiosas, ativistas curdos e mulheres, na intenção de realmente democratizar o partido.

Kılıçdaroğlu sempre foi tão pacifico que, em 2017, lançou a “Marcha para a Justiça”, caminhando de Ancara (capital turca) à Istambul. Com sua fala calma e seu jeito pacífico, o economista conseguiu o apoio de seis outros partidos de oposição ao Presidente Erdoğan. Agora, indo mais para a situação política e econômica da Turquia, é fundamental saber que a mídia no país é controlada pelo governo e comandada por apoiadores do mesmo, tanto que as informações e dados estatísticos oferecidos sobre a eleição recebem muita reclamação da população, que os afirma não serem confiáveis. "Não havia mídia livre, nem judiciário independente. Os recursos do Estado eram usados em favor do titular, o sistema eleitoral é alterado com frequência e, se levarmos em conta tudo isso, podemos entender um pouco melhor por que as pesquisas não foram necessariamente tão assertivas nas eleições da Turquia", explicou a Euronews, Ilke Toygur, professora de Geopolítica Europeia na Universidade Carlos III de Madri.

Porém, o aspecto mais relevante dessas eleições para o Sistema Internacional está relacionada à OTAN, já que Kılıçdaroğlu já afirmou que gostaria de reaproximar a Turquia da organização e seus membros aliados, e provavelmente entrará com outro pedido de entrada à União Europeia, visto que em 2018, após a reeleição de Erdoğan, a UE congelou as negociações de adesão da Turquia, respondendo ao que foi chamado de "retrocesso no Estado de Direito e nos direitos fundamentais" do país.

Economicamente, a Turquia tem sido impiedosamente atingida por uma crise financeira, que em outubro do ano passado, apresentou uma inflação de 85%, porém, com os dados mais recentes está em cerca de 44% e essa diminuída é um dos maiores argumentos utilizados pelo atual presidente em sua campanha de reeleição. Assim, o mundo aguarda para descobrir como os turcos irão votar, por qual direção eles seguirão. Essa eleição é de suma importância, tanto para a Turquia e o Oriente Médio quanto para o resto do mundo.

Como último ato, na tentativa de garantir a reeleição, Erdoğan apelou pelos votos dos conservadores, fazendo uma visita pública à Basílica de Santa Sofia, Ayasofya em turco, o maior símbolo do legado do Império Bizantino e atualmente representa a importância mundial por representar as profundas mudanças que se passaram na Turquia. Ayasofya foi construída para ser a catedral de Constantinopla (atual Istambul), tendo a função de uma igreja ou catedral católica romana até 1453, quando foi transformada em uma mesquita e nesse período cruz do cume da cúpula foi trocada por um crescente (símbolo do Islã), os mosaicos e referências cristãs foram cobertos e foram inseridas gigantescas placas de bronze com trechos do Alcorão, até que em 1931 ela foi secularizada durante o governo de Atatürk e hoje funciona como museu.

Já o seu opositor, Kılıçdaroğlu fez visita ao túmulo do fundador da República Turca e do Kemalismo, Kemal Atatürk, como se pedindo apoio a todos que acreditem na secularização, no estatização e reformismo e principalmente na nacionalização, passando a ideia de que ele trará uma Turquia mais democrática e justa, com melhores condições de vida para o povo. No entanto, como foi decretado no último domingo, mesmo com todos os esforços para conquistar o apoio da população, Kılıçdaroğlu foi derrotado nas urnas, com 47,93% contra os vencedores 52,07% de Erdoğan.


 

Referências:


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