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As Organizações Internacionais e a instauração do caos: o lawfare da OEA nas eleições bolivianas de 2019

Guilherme Dias do Carmo - CPOI


O fim do século XIX representou um grande marco para o que hoje conhecemos como Sistema Internacional. O avanço das relações entre nações e povos estrangeiros introduziu o que viria a ser um século XX repleto de interações, que iriam de guerras mundiais a diversificação nas formas de cooperação multilateral. Foi inserido nesse contexto de ebulição dos vínculos entre os recém-formados Estados que as Organizações Internacionais se converteram em relevantes atores internacionais.


A Organização dos Estados Americanos (OEA), formada no ano de 1948 e sediada em Washington, com objetivos oficiais ligados à cooperação, desenvolvimento, democracia e garantia da soberania para os Estados membros, sempre esteve envolvida em polêmicas referentes ao grau de influência e ingerência norte-americana. Momentos como a expulsão e consequente isolamento de Cuba em 1962 caracterizam como os norte-americanos se utilizam de seu poder para empregar instituições grandiosas às suas predileções.


Com o fim da Guerra Fria e o enfraquecimento da Rússia - nação herdeira dos status soviéticos - os Estados Unidos se consolidaram ainda mais como grande ideólogo e tomador de decisões dentro das instituições internacionais, não sendo diferente na OEA, organização que abriga nações que muitas vezes são vistas como suas subordinadas. Entretanto, momentos como a derrubada da proposta da ALCA no ano de 2005 provaram que a resistência organizada ao dito imperialismo estadunidense tem capacidade de se organizar e agir de forma coordenada e institucional.


A história recente das Américas apresenta uma diversidade de capítulos marcados por disputas políticas internas e externas que se utilizaram das mais variadas movimentações legais, políticas, militares ou ideológicas,  que resultaram em uma imagem internacional marcada pela instabilidade e violência. No contexto da chamada onda rosa, movimento de alçada ao poder por políticos de esquerda e centro esquerda na América Latina, a utilização do chamado lawfare como arma política da oposição ganhou evidência ao ser colocado no debate por grandes nomes da política regional como Cristina Kirchner, Lula e Evo Morales, que se dizem vítimas de processos políticos e legais fraudulentos, orquestrados por agentes internos e externos descontentes com suas ideologias políticas.


Aparecendo cada vez mais no vocabulário político e jurídico, o lawfare é uma junção das palavras em inglês law (direito) e warfare (guerra), que resultam no termo warfare, utilizado para definir situações onde o poder jurídico é empregado de forma tendenciosa para criar uma “guerra jurídica” com o propósito de prejudicar alguém ou algo. O uso ilegítimo do direito como arma se manifesta como uma modalidade de substituição dos meios tradicionais de guerra, como o militar, resultando para quem dele se utiliza da aquisição de respaldo e legitimidade, por aparentemente estar seguindo normas e preceitos jurídicos legais e acordados por todos através do contrato social.


O ano de 2019 ficou marcado na política do continente por um momento onde as compreensões de lawfare, intervenção das organizações internacionais e interesses de agentes estrangeiros chegaram ao auge do debate, em consequência da polêmica eleição presidencial boliviana e suas diferentes decorrências. A queda de um presidente democraticamente eleito, o cancelamento de uma eleição e o consequente caminho da Bolívia para um estado de caos político e social representou um momento onde os limites de atuação das Organizações Internacionais foi colocado em jogo após a OEA ser acusada de utilizar de lawfare para prejudicar o então presidente e líder cocalero Evo Morales.


Em uma eleição marcada desde o princípio por um ambiente de tensões, em decorrência da insistência de Evo Morales em concorrer ao seu quarto mandato - mesmo após perder uma consulta popular referente a um possível 4º mandato- o jogo eleitoral boliviano marcou 2019 e serve de objeto de análise para o entendimento de como as Organizações Internacionais se tornaram relevantes o suficiente para impulsionar ou derrubar narrativas política que causam expressivos impactos para os países.


Tratando-se de indiscutivelmente um dos líderes políticos mais expressivos do século XXI, Evo Morales foi durante toda sua campanha de 2019 alvo de críticas que o apontavam como ditador, baseando-se no fato do líder cocalero ter recorrido ao supremo tribunal boliviano para garantir o direito de concorrer ao seu quarto mandato. Morales conseguiu a liberação de sua candidatura apoiando-se na diretriz que coloca como um direito humano o ato de votar e ser votado, decisão polêmica que gerou uma onda de debates referentes ao sistema judiciário boliviano.


O já inflamado clima político das eleições presidenciais ganhou uma reviravolta ainda maior quando, tendo já computado mais de 80% dos votos, houve uma interrupção na contagem dos votos, que só retornou cerca de 24 horas depois, apresentando um cenário que indicava ao candidato do Movimento ao Socialismo (MAS) a vitória no primeiro turno, com 47,8% dos votos. A partir desse momento, inicia-se um ambiente de caos pelas cidades bolivianas, com protestos civis, conflitos de grupos politicamente divergentes, movimentações políticas nacionais e internacionais, e um estado de desordem que se prolongou por muitos meses.


Visto o caos social que se instaurou no país andino, Evo Morales solicitou formalmente à OEA uma auditoria das eleições recém realizadas, medida que não acalmou os ânimos nas ruas, que só viria a piorar com o rápido e largamente contestado relatório cujo a OEA, que acusava a existência de fortes indícios de que o pleito boliviano teria sido fraudado a favor da chapa governista. Com o presumido respaldo de uma renomada organização, que supostamente agiria seguindo apenas  o ordenamento jurídico internacional, os protestos ganharam um caráter mais agressivo, chegando ao momento onde a residência de Evo Morales foi incendiada e a vida do presidente, de seus parceiros políticos e eleitores ficou em jogo.


A fim de evitar a escalada dos conflitos, Evo primeiramente evoca a realização de novas eleições, e posteriormente, após um “pedido” público das forças armadas, renuncia ao cargo de presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, ao qual tinha sido eleito democraticamente  no ano de 2014 para seu primeiro mandato. 


A sequência de renúncias de todo o alto escalão do governo após a saída de Morales, caracterizou a “bomba relógio” que a Bolívia tinha se tornado naquele momento, resultando na posse da segunda vice-presidente do senado boliviano, a até então pouco conhecida Jeanine Áñez. Os meses que prosseguiram a posse de Añez foram marcados por mais instabilidades, com o aumento da violência e da repressão contra grupos ligados historicamente aos governos do MAS, como os povos originários, e o asilo de Evo no México, e posteriormente na Argentina.


Nesse contexto, o Palácio Quemado foi invadido pelo líder da extrema-direita de Santa Cruz, Luís Fernando Camacho, que ingressou no gabinete presidencial com uma bíblia na mão, enquanto nas ruas seus partidários queimavam a Whipala, bandeira indígena multicolor adotada na Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia como um símbolo tão importante quanto a bandeira nacional. (RAMINA, Larissa, 2022, p.248)


A implementação de uma agenda liberal pelo curto governo Añez e a demora para a convocação de novas eleições demonstrou que a queda do movimento ao socialismo representava além de tudo uma volta para uma Bolívia que no início do século chegou a privatizar a água. Enquanto a política interna pairava o estado de guerra civil, no mundo, os frágeis relatórios lançados pela OEA eram estudados e refutados por especialistas do mundo inteiro, que em sua maioria concluíram uma considerável falta de evidências nas acusações do órgão e uma sinica negligência de fatos importantes, como o de que Morales sempre teve uma grande margem de votação em regiões de difícil acesso da Bolívia, que tiveram seus votos computados no fim da apuração, por questões logísticas.


Estudos realizados por consagradas universidades norte-americanas, como o estudo apresentado pela Massachusetts Institute of Technology (MIT), no jornal The Washington Post, concluem que não existem indícios estatísticos que comprovem uma fraude, existindo na verdade uma sequência de padrões que reforçariam a grande possibilidade de vitória para Evo Morales ainda no primeiro turno. O fato da OEA não refutar cientificamente os dados apresentados pelo estudo da MIT e de outras instituições, reforça a tese de profissionais do direito internacional que acusam a organização de ter abusado do direito internacional, e da própria carta da OEA, caracterizando-se assim como um caso de lawfare.


Na  publicação  os  analistas  indicam  que  não  há  indícios  estatísticos  que demonstrem anomalia na contagem dos votos. Os autores do estudo deixam claro ter procurado a OEA para comentar o assunto, mas não houve resposta direta (CURIEL; WILLIAMS, 2020).


O já antigo incomodo do governo estadunidense com o governo nacionalista boliviano, e os interesses de multinacionais bilionarias, como a Tesla, nos abundantes e pouco explorados recursos naturais bolivianos corroboram com acusações feitas referentes a uma possivel interferencia norte-americana no caso, país que de prontidão reconheceu e apoiou o governo da hoje presidiaria Janine Añez. 


O impacto de uma organização do porte da OEA ficou tangível ao se observar como uma acusação baseada em suposições ainda fracas pode legitimar grupos dispostos a se utilizar desse abono para conduzir ações repugnantes às quais eles saiam beneficiados. 


A utilização do judiciário - em ambas perspectivas - denota um fortalecimento da ascensão de novos campos de disputa, onde a busca pelo poder segue sendo o norteador, mas as armas utilizadas não precisam mais de pólvora, e sim de papel e tinta.


Dentro desse contexto inegavelmente dubio da candidatura de Evo, a direita fundamentalista boliviana, liderada por representantes das velhas oligarquias brancas, tiraram proveito da imparcialidade e pressuposta  competência da OEA para implementar sua agenda de terror para povos historicamente subalternizados, cometendo graves violações aos direitos humanos, como reconhecido posteriormente pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).


A esmagadora vitória de Luis Arce, candidato apoiado por Evo Morales no ano de 2020 reiterou o apoio de grande parte do povo boliviano ao projeto político do MAS e as suas recém criadas amarras com sua jovem democracia, que ainda sofre com interferências externas de agentes que supostamente deveriam trabalhar para sua manutenção e aperfeiçoamento. A utilização do lawfare a partir de uma Organização Internacional, como ocorreu com a Bolívia serve para demonstrar como a prática da desestabilização política segue sendo uma arma poderosa que se reinventa e pode aparecer através dos agentes menos esperados, causando assim impactos imensuráveis que podem ser sentidos por toda uma nação.










REFERÊNCIAS


LILIAN, Milena. OEA não comprova fraude eleitoral na Bolívia e atua politicamente, diz CEPR em relatório. Diálogos do Sul Global. 13 nov. 2019. Disponível em: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/oea-nao-comprova-fraude-eleitoral-na-bolivia-e-atua-politicamente-diz-cepr-em-relatorio/. Acesso em: 15/05/2023


OLIVEIRA, Felipe. Bolívia: A questão indígena, a ascensão de Morales e o golpe neoliberal. Revista estudos do sul global. São Paulo. V. 3. Disponível em: https://resg.thetricontinental.org/index.php/resg/article/view/76/76 


ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório final da auditoria das eleições na Bolívia: houve manipulação e graves irregularidades que impossibilitaram a validação dos resultados. Washington, D.C.: OEA, 2019. Disponível em: https://www.oas.org/pt/centro_midia/nota_imprensa.asp?sCodigo=P-109/19 


RAMINA, Larissa. O golpe de Estado na Bolívia e a OEA como agente viabilizador do lawfare, 2022. p. 45-68. 

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