Na terça-feira (16) o destroyer estadunidense de mísseis guiados, USS Arleigh Burke, atracou na cidade de Limassol, no Chipre, para uma visita programada. O envio da embarcação foi duramente criticado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia, que, sobre o caso, afirmou: "As medidas tomadas pelos Estados Unidos na região, que perturbam o equilíbrio em detrimento da parte cipriota turca, prejudicam a posição neutra de longa data dos Estados Unidos" (Middle East Eye, 2023). É a segunda vez em menos de 60 dias que a Turquia repudia uma medida dos EUA relacionada à sua presença no território cipriota. Em abril, o submarino nuclear USS San Juan foi enviado até o porto de Limassol e um discurso de retaliação muito semelhante ao proferido na semana passada foi direcionado a Washington em abril. A tensão na região do Chipre, que vive historicamente uma disputa entre seu território promovido pela Grécia e Turquia, está em um ponto crítico. Em setembro, a Grécia alertou sobre a possibilidade de uma guerra semelhante à da Ucrânia com a Turquia, mas as relações melhoraram devido a uma diplomacia de boa vontade após um terremoto fatal na Turquia e um acidente de trem na Grécia (Crisis Group, 2023). Diante da incerteza e volatilidade das relações greco-turcas, juntamente com a possível interferência de outros países na questão cipriota, quais serão os próximos passos dessa disputa? E, o mais importante, será que o Chipre está finalmente próximo de alcançar sua liberdade, após mais de meio século de conflitos?
Para compreender melhor os possíveis próximos passos do conflito, é crucial analisar a história do Chipre como país independente e como nação fragmentada, uma vez que as atitudes adotadas atualmente possuem suas origens enraizadas no passado. A ilha do Chipre, no leste do Mar Mediterrâneo, possui uma história milenar influenciada por várias civilizações, incluindo gregos e turcos. Desde os tempos micênicos, os gregos estabeleceram colônias na ilha, tornando-a parte do mundo helênico. Após passar pelo domínio persa e romano, o Chipre tornou-se um centro cristão ortodoxo sob o Império Romano do Oriente. No século XVI, os otomanos conquistaram a ilha, trazendo uma influência cultural turca. No início do século XX, o Chipre passou para o domínio britânico, despertando esperanças de união com a Grécia para os gregos cipriotas. A partir deste momento, as tensões entre a comunidade grega e turca cipriota começaram a crescer. Os turcos cipriotas, que eram minoria, expressaram preocupações sobre a perspectiva de se unirem à Grécia e clamaram por uma autonomia dentro do Chipre. Essas tensões culminaram no início do conflito entre gregos e turcos cipriotas em meados da década de 1950. Em 16 de agosto de 1960, Chipre tornou-se um país independente, através da assinatura do Tratado de Garantia, promovido conjuntamente com o Reino Unido e Turquia. Durante esse período, os gregos cipriotas, representados pela Organização Nacional Cipriota (EOKA), buscavam a possível unificação com a Grécia (tal desejo é associado ao termo enosis), enquanto os turcos cipriotas, liderados pela Organização Turca de Resistência (TMT), defendiam a manutenção da autonomia e a proteção de seus direitos. Essa situação explosiva levou ao início da guerra no Chipre em 1963, quando a violência intercomunitária se intensificou, resultando em mortes e deslocamentos em massa de ambos os lados.
Old, antique map of Cyprus by Ortelius A. Disponível em: <https://sanderusmaps.com/our-catalogue/antique-maps/asia/turkey-cyprus/old-antique-map-of-cyprus-by-ortelius-a-22955>. Acesso em: 7 jun. 2023.
É nesse cenário de conflito e divisão que a história do Chipre entrou em uma nova fase, em 1963, com a eclosão do confronto direto. A partir do início da guerra, diversos episódios marcantes moldaram a ilha e suas relações com a Grécia e a Turquia na contemporaneidade. Em 1974, a Turquia invadiu o Chipre em resposta a um golpe de estado liderado por nacionalistas gregos. Em 1983, foi decretada a independência da porção setentrional da ilha, nomeada de República Turca de Chipre do Norte, na qual, até hoje, apenas a Turquia reconhece a legitimidade do território e sua soberania como país independente. Tal fato resultou na ocupação militar na porção ao norte da ilha e na criação da "Linha Verde" que divide as áreas controladas por gregos e turcos. A presença da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) estabeleceu a Força de Manutenção da Paz das Nações Unidas no Chipre (UNFICYP), que tem o objetivo de supervisionar o cessar-fogo e facilitar as negociações de paz, mas o conflito continua sem uma solução definitiva (Observatório de Conflitos Internacionais - UNESP, 2020). As consequências da guerra foram profundas, com perdas humanas, feridos e deslocados, além da divisão social, econômica e política da ilha. A história de Tasoula Hadjitofi, por exemplo, representa a vida de milhares de pessoas afetadas pelo conflito. Tasoula vivia em Famagusta, uma cidade ao norte do Chipre, que ao ser invadida pela Turquia foi esvaziada pelos cipriotas-gregos, obrigando-a a deixar sua casa ainda adolescente. Hoje, Tasoula tem mais de 60 anos, e foi apenas em 2021 que ela conseguiu revisitar seu lar e suas memórias de infância, após 47 anos separados pela guerra (Spiegel, 2021).
NESHITOV, T. A refugee returns to northern Cyprus after 47 years. Disponível em: <https://www.spiegel.de/international/europe/an-expellee-returns-to-northern-cyprus-after-47-years-a-664be1fc-7020-45a0-9af3-e4af2233f517>. Acesso em: 7 jun. 2023.
Contudo, os retrocessos (principalmente diplomáticos) ocasionadas pela guerra, aos poucos, demonstram-se como inerentes ao passado do conflito devido aos largos passos rumo à paz e independência que o Chipre vem tomando recentemente. Em 1.º de maio de 2004, o pedido do Chipre referente à sua adesão na União Europeia (UE) foi aprovado, tornando a ilha do mediterrâneo um dos atuais 27 membros do bloco. Contudo, apenas a porção sul (ou a porção “não-turca”) é reconhecida como o Chipre que integra a União Europeia, tornando Nicósia, hoje, a única e última capital europeia dividida (BBC News, 2004). Porém, a entrada do país mediterrâneo na UE, em linhas gerais, é um sinal estimulante e um grande passo frente a uma possível reunificação futura entre os dois territórios fragmentados etnicamente, podendo inclusive ser fruto de esforços diplomáticos do bloco para tal. Ademais, as relações diplomáticas entre Grécia e Turquia têm sido pautadas por meio de diversas reuniões com representantes de cada governo, além de consultas populares e reuniões com líderes comunitários cipriotas de ambos os lados do país.
Ao chegarmos neste patamar, com o embargo suficiente de conhecimentos tangentes à questão do Chipre, suas consequências e dinâmicas diplomáticas envolvendo Turquia e Grécia, podemos então pavimentar alguns supostos próximos passos para essa guerra, incluindo caminhos que a solucionem.
É importante destacar que a atual dificuldade de perceber uma posição recente de Ancara e Atenas em relação ao conflito se deve ao fato de ambas as nações estarem enfrentando eleições ainda este ano. Por mais que tal fato gere incertezas para alguns, esse pode ser o primeiro fator que venha a se revelar como um caminho significativo para o início de acordos e negociações que eventualmente levarão ao fim da disputa cipriota. Com a vitória de Erdoğan nas eleições na Turquia, é esperado que o presidente reeleito continue sendo um forte aliado de parceiros nacionalistas. Por mais desestimulante que seja o cenário, não são descartadas as possibilidades de modificação de alguns termos de sua política externa na questão cipriota, dado o histórico de volatilidade de posicionamento do presidente frente a algumas pautas do governo. Na Grécia, as eleições parlamentares estão se aproximando, e embora os efeitos dos resultados não tenham o mesmo impacto das eleições turcas, a dinâmica prevista segue sendo positiva. Na República Helênica, existe a real possibilidade de uma aproximação estratégica com a Turquia (Crisis Group, 2023) após anos de tensões diplomáticas. Contudo, em entrevista ao Observatório Político Internacional do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Relações Internacionais (NURI), Danae Sypsa, graduanda em história e arqueologia na Aristotle University of Thessaloniki, Grécia, afirmou, sobre a realidade política do país:
"A Grécia não é um país que consegue escolher as dinâmicas políticas que acontecem aqui [...] Penso inclusive que esta é uma parte da razão pela qual este problema nunca foi resolvido até agora.”
Nessa perspectiva, Danae destaca a fragilidade do governo grego diante de certas questões e sua dependência das ações tomadas por nações vizinhas. Isso pode ser considerado um fator adicional que dificulta o fim da disputa. Espera-se que, com as eleições deste ano, o governo grego ganhe maior autonomia na tomada de decisões, o que poderia resultar na mencionada aproximação com o governo turco no contexto da questão cipriota. Com isso, pode-se inferir que com essa suposta reconciliação, o estabelecimento de uma série de diálogos entre Ancara e Atenas possa ocorrer, nos quais a questão do Chipre certamente estará presente na agenda bilateral.
Nesse contexto, é importante lembrar o acordo de cooperação entre Grécia, Turquia e Chipre, mediado pelas Nações Unidas em 2021. Esse acordo busca promover a confiança mútua e a estabilidade na região, além de abordar questões pendentes, como o estabelecimento de uma zona econômica exclusiva no Mediterrâneo Oriental. Embora nenhum pacto tenha sido assinado na reunião, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, informou que as partes concordaram em convocar outra reunião dos 5 + 1 num futuro próximo, visando alcançar um consenso que permita o início de negociações formais (UN News, 2021).
Além disso, acordos envolvendo turismo, comércio e viagens podem ser um passo possível tomado pelas nações envolvidas na disputa. O Chipre é um país com uma riqueza cultural e natural extraordinária, mas porções de seu território estão privadas de receber prestígio (inter)nacional devido à divisão que a ilha enfrenta. Por exemplo, na porção setentrional, correspondente à República Turca de Chipre do Norte, encontra-se o aeroporto de Ercan/Tymbou, que atualmente realiza voos diretos internacionais apenas para a Turquia (Crisis Group, 2023). A reabertura deste aeroporto cipriota para voos provenientes de outras nações, além da Turquia, poderia impulsionar o desenvolvimento econômico significativamente. Setores como o turismo, comércio e serviços seriam beneficiados, gerando empregos e lucros para o país, levando cipriotas turcos e cipriotas gregos a trabalhar em conjunto no desenvolvimento do Chipre como uma nação unificada, o que poderia ser, inclusive, um caminho promissor para a reunificação do país.
Ainda sobre os impactos econômicos no Chipre, assim como seus reflexos em países vizinhos, como a Grécia, Danae disse:
“[...] as pessoas na Grécia realmente gostariam de fazer parte do Chipre, devido à história, mas também, economicamente, é claro, porque se os números fizerem parte da Grécia, isso beneficiaria muito a economia grega. Além de que é uma posição importante para o comércio [...] A questão econômica se estende principalmente entre a Ásia, a Turquia, a Grécia e a Europa. Portanto, é uma localização que, se pertencer ao meu país (Grécia), de alguma forma seria positiva para nós.”
Assim, pode-se inferir que, apesar das perspectivas encorajadoras de parcerias entre os gregos-cipriotas e turco-cipriotas no território do Chipre como uma nação unificada, a questão econômica, ligada à Grécia ou à Turquia, ainda é relevante para uma parte dos gregos e, possivelmente, dos turcos também. Diante disso, seria válido promover um debate mais aberto sobre o assunto, como apontado por Danae, que, embora ocorra na Grécia, não é predominante em ambientes acadêmicos:
“Nas escolas, é um assunto sobre o qual nunca se falou, mesmo no ensino médio. O sistema educacional em matérias como história, ou algo relacionado à política nunca teve esse tópico mencionado. [...] Fora das universidades e escolas esse assunto é debatido, portanto, é algo sobre o qual se fala, principalmente porque muitas pessoas se mudaram do Chipre para a Grécia, mas não é algo explorado no sistema educacional grego.”
A falta de conhecimento sobre o assunto, devido à ausência de abordagem no sistema educacional grego, pode ser considerada um aspecto a ser modificado, a fim de fornecer um conhecimento fundamentado e abrangente sobre o tema à população envolvida no conflito. Em 2017, no Chipre, a interrupção das negociações relacionadas ao processo de busca pela paz foi motivada por uma disputa escolar ligada à forma como a enosis era abordada (DW, 2017). Uma futura reformulação do sistema educacional que inclua uma abordagem imparcial tanto no território cipriota quanto na Grécia e Turquia pode ser um sinal positivo em relação à disposição de superar o passado, abandonar um sistema confortável que perpetua o conflito e construir a paz.
Em resumo, prever o próximo passo exato da disputa e suas consequências é uma tarefa difícil. No entanto, ao analisar a história e suas dinâmicas, é possível vislumbrar algumas possibilidades. Para alcançar uma possível resolução da disputa, é necessário que a Grécia e a Turquia estabeleçam medidas construtivas baseadas na confiança e no respeito à soberania das nações envolvidas no conflito. Um instrumento eficaz para isso seria o desenvolvimento de projetos de benefício-mútuo. Essas iniciativas teriam um impacto positivo em ambos os países e estabeleceriam bases sólidas para parcerias futuras. Isso criaria um ambiente menos hostil e mais diplomático, no qual ambas as nações poderiam encontrar um meio-termo para resolver a questão cipriota. No entanto, o desfecho esperado há mais de cinquenta anos está completamente condicionado às próximas ações do conflito nesse território tão complexo e significativo. Isso implica que a pergunta que motivou o autor deste artigo a escrevê-lo e o leitor atual a explorá-lo será respondida e registrada nos livros de história muito em breve.
TREMETOUSIOTIS, C. 9 reasons why we love Cyprus!!! Artemis Cynthia Complex, 13 jul. 2021. Disponível em: <https://artemiscynthia.com/9-reasons-why-we-love-cyprus/>. Acesso em: 7 jun. 2023
REFERÊNCIAS:
1. International Crisis Group. Island Divided: Next Steps for Troubled Cyprus. Disponível em: <https://www.crisisgroup.org/europe-central-asia/western-europemediterranean/cyprus/268-island-divided-next-steps-troubled-cyprus>. Acesso em: 29 maio 2023.
2. Middle East Eye. Turkey Slams US for Sending Warship to Cyprus. Disponível em: <https://www.middleeasteye.net/news/turkey-slams-us-sending-warship-cyprus>. Acesso em: 29 maio 2023.
3. Comunidade de Sant'Egidio. Breve história de Chipre. Disponível em: <https://archive.santegidio.org/pageID/135/langID/pt/Breve-história-de-Chipre.html>. Acesso em: 29 maio 2023.
4. Chipre News. Cyprus History. Disponível em: <https://chiprenews.net/cyprus/history>. Acesso em: 29 maio 2023.
5. Spiegel Online International. An Expellee Returns to Northern Cyprus After 47 Years. Disponível em: <https://www.spiegel.de/international/europe/an-expellee-returns-to-northern-cyprus-after-47-years-a-664be1fc-7020-45a0-9af3-e4af2233f517>. Acesso em: 29 maio 2023.
6. BBC News. Chipre: A história da ilha dividida. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2004/04/printable/040426_chiprecl>. Acesso em: 29 maio 2023.
7. Observatório de Conflitos Internacionais - UNESP. Chipre: A questão cipriota como um caso de estudo. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/v.-7-n.-6-dez-2020.pdf>. Acesso em: 29 maio 2023.
8. Nações Unidas. UN News. Chipre: ONU destaca importância de respeito às zonas desmilitarizadas. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/04/1749122>. Acesso em: 29 maio 2023.
9. Ercan Airport. Official Website. Disponível em: <https://www.ercanairport.net>. Acesso em: 29 maio 2023.
10. DW News. Cyprus peace process stalls over school history dispute. Disponível em: <https://www.dw.com/en/cyprus-peace-process-stalls-over-school-history-dispute/a-37668141>. Acesso em: 29 maio 2023.
Comentarios