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Rafael Vieira - OBSERVATÓRIO

Contemplando o passado para compreender o futuro: China e Taiwan à beira de uma guerra

Os anos de 2019 e 2020 foram difíceis para o Hong Kong: começando com a aprovação de uma lei que permite a extradição de pessoas da região para a China continental e terminando com a nova lei de segurança nacional de Hong Kong que, de facto, encerra quaisquer esperanças de manutenção do princípio de “um país, dois sistemas” que imperava nas relações entre o Partido Comunista da China (PCCh) e as autoridades locais da região administrativa – tudo isso em meio a diversos protestos que marcaram uma ruptura no tecido social de Hong Kong, com os “amarelos”, defensores dos protestos, de um lado; e os “azuis”, defensores tanto do PCCh quanto do governo local, de outro.

2021 chegou e muitos esqueceram do que aconteceu em Hong Kong. Os motores da história se movem e agora as atenções estão voltadas à outra pedra no sapato do governo de Xi Jinping: Taiwan. Por que essa ânsia existencial para anexar Taiwan? De onde vem essa rivalidade? Quais os interesses nacionais que fundamentam esse olhar cobiçoso perante a Ilha Formosa?

Responder essas perguntas é o meu intuito nesse texto. Para tanto, através deste vislumbre histórico de aproximadamente um século, pretendo compreender as dinâmicas que ensejam o futuro próximo com o auxílio das certezas que o passado recente nos disponibiliza. Então, no espírito do slogan que Xi usa em seus discursos direcionados à população chinesa (“nunca esqueçam a razão de começarmos”), vamos conhecer um pouco da história recente da China.


Sun Yat-sen e a invenção da China

Sun Yat-sen em 1911 após liderar a revolução que derrubou a última dinastia imperial chinesa (os Qing) | Wikimedia Commons


Eu não sou particularmente afeito por biografias de grandes figuras políticas, mas é um tanto difícil conhecer, ainda que brevemente, a história de Sun Yat-sen e não se questionar sobre essa figura magnética que brilha os olhos de dois inimigos mortais. Como pode um mesmo homem ser digno de reverência tanto pelo PCCh quanto pelos taiwaneses? Não é uma tarefa fácil agradar os rivais estreitamente separados, mas Sun Yat-sen não é uma figura de fácil compreensão, como veremos.

Hayton (2020, p. 30) descreve de forma singela o impacto que este homem teve na história da China:

Em 24 de novembro de 1894, dois meses depois que as forças japonesas destruíram a marinha dos Qing, três dias depois de terem capturado a Península de Liautum e duas semanas depois de seu próprio aniversário de 28 anos, Sun Wen, seu irmão mais velho e alguns de seus amigos se encontraram em uma ilha do Pacífico para fazer um juramento revolucionário. Eles iriam, prometeram, "expulsar os tártaros [estrangeiros no geral, os Qing inclusos], reviver a China e estabelecer um governo unificado". Este foi o manifesto acordado na primeira reunião do Xing Zhong Hui - literalmente "Sociedade para a revitalização do Centro", um grupo que evoluiria a partir desses pequenos primórdios para a organização que, dezessete anos depois, derrubou o Império do Grande Qing. Nesse período, Sun Wen já seria mais conhecido como Sun Zhongshan ou Sun Yat-sen. [tradução nossa]

Para entender a importância de Sun Yat-sen, precisamos perpassar pelo contexto que ensejou a Revolução de 1911. Em suma, a revolução de Xinhai foi o resultado de anos anteriores conturbados, tanto pela primeira guerra sino-japonesa (1894-1895) e a mudança de órbita de principal potência regional dos Qing para o Japão do imperador Meiji, quanto pelos crescentes sentimentos nacionalistas – parte importados e parte ressignificados – que afloravam nas diversas organizações revolucionárias que vinham surgindo.

Não seria até 1905 que as várias tentativas revolucionárias de derrubar os Qing ganhariam ímpeto: foi neste ano que surgiu a Tongmeng Hui, a Sociedade da Aliança, unificando diversos grupos revolucionários e promovendo uma força capaz de desafiar significativamente o domínio Qing. Essa sociedade firmaria os princípios que regeriam a China pós-Qing: expulsar os tártaros, reviver Zhonghua [a China], estabelecer uma República e distribuir a terra igualmente entre as pessoas.

Temos, portanto, alguns dos elementos mais característicos do cenário que vai nos levar para a compreensão histórica da divisa entre China e Taiwan. Primeiro, a Sociedade da Aliança é a base do que é hoje o Kuomintang (KMT), partido nacionalista chinês que se exilaria em Taiwan no ano de 1949 (chegaremos lá). Segundo, os princípios da Sociedade da Aliança são a base dos três princípios do povo desenvolvidos por Sun Yat-sen e que guiam tanto nacionalistas em Taiwan quanto nacionalistas na China continental: Mínzú (nacionalismo), Mínquán (democracia) e Mínshēng (bem-estar social). Comunistas e nacionalistas taiwaneses divergem quanto às interpretações de cada princípio, emulando e herdando as divergências típicas dos debates ocidentais entre direita e esquerda, gerando uma fragmentação ideológica e interpretativa que, no entanto, compartilha um mesmo “profeta”: Sun Yat-sen.

Por fim, é no princípio de bem-estar social que reside a principal divisa que marcaria a China em uma guerra civil para chamar de sua. Nele, residem as principais divergências ideológicas que fariam o conflito China-Taiwan nascer. Com a morte de Sun Yat-sen em 1925, Chiang Kai-shek assume o poder do KMT e começa a desfazer a conciliação entre comunistas e seus opositores que o falecido líder revolucionário tinha conseguido manter. Assim, o PCCh, fundado em 1921 e que em 1925 já havia crescido significativamente dentro da política chinesa, começa a ser marginalizado e os membros de esquerda do KMT perdem espaço dentro do partido.

O estopim vem em 1927: Chiang Kai-shek promove um violento ataque à Xangai, uma cidade até então comandada por milícias comunistas, matando pelo menos 5 mil pessoas. Eis o começo da Guerra Civil Chinesa. Vamos, portanto, à mais uma parada no passado para, então, olharmos para o presente e o futuro.


Uma China dividida: a clivagem


A partir de 1927, as coisas começam a acontecer com uma intensidade frenética na China (e no mundo): o Exército Vermelho do PCCh começa a ser formado, após o governo de Wuhan (formado pela esquerda dentro do KMT) ser dissolvido pelas forças de Chiang e uma nova base governamental, em Nanquim, ser formada – desta vez sem quaisquer resquícios de influências comunistas. Ainda em 1927, o KMT e o PCCh se enfrentaram em Nanchang, com uma vitória dos comunistas que se tornaria um momento militar simbólico para a história da China em sua versão contada pelos vencedores. No fim daquele ano, durante o acontecimento que ficaria conhecido como a Revolta da Colheita de Outono, Mao Tsé-Tung surge como líder do exército comunista que, encarando uma derrota significativa, passaria os próximos anos reestruturando tanto as táticas militares como as estratégias rurais e urbanas do PCCh, o que seria decisivo para o seu eventual resultado vitorioso na guerra civil.

Antes da paralisação das contendas em virtude da segunda guerra sino-japonesa em 1937, ainda houve tempo de acontecer a Grande Marcha em 1934, em que a República Soviética da China (estabelecida em 1931 por Mao) foi obliterada pelo Exército Nacional Revolucionário do KMT e engajou em uma retirada que duraria 370 dias e significaria a ascensão definitiva de Mao ao poder no PCCh. Assim que a Segunda Guerra Mundial foi encerrada em 1945 e o Japão passou a ser ocupado pelos Aliados, o conflito interno na China voltou aos holofotes e, com Mao já consolidado no PCCh e tendo aproveitado o período de pausa para se fortalecer gradualmente, os comunistas se colocaram numa posição defensiva contra um poderoso exército do KMT – apoiado pelos EUA e agora pelos japoneses – e prevaleceram apesar das dificuldades: a China rural, amplamente negligenciada pelo KMT, seria decisiva estrategicamente para a custosa vitória do PCCh em 1949, consagrada no dia primeiro de outubro daquele ano com a proclamação da República Popular da China por Mao.

Com isso, o KMT se exilou do continente em direção à Taiwan, também conhecida como ilha Formosa, declarando Taipei como a capital temporária da República da China. Surge, então, a disputa verbal de qual dos governos constitui a verdadeira China e uma batalha de retórica nacionalista e de reescrita da história por parte dos dois lados se inicia. A ambiguidade do status político de Taiwan é uma das principais questões do direito internacional, com o governo do PCCh se recusando a estabelecer relações diplomáticas com quaisquer países que reconheçam Taiwan como um país. Vale mencionar que os EUA, apesar de serem o principal aliado de Taiwan, adotaram a política do PCCh de que há apenas uma China, navegando na ambiguidade formal das disputas diplomáticas entre os dois lados sobre o assunto a fim evitar gerar problemas maiores.

O fato é que, com uma posição ambígua ou não, não parece haver muito tempo sobrando para os estadunidenses se decidirem com relação às agressivas investidas recentes do governo de Xi Jinping com relação a Taiwan: o aumento alarmante nas atividades militares do Exército Vermelho próximas da ilha de Taiwan¹, as declarações expressas de Xi Jinping de que buscará uma reunificação pacífica com Taiwan e o assustador surgimento de propagandas do governo comunista sugerindo um genocídio do povo que habita Taiwan parecem sinistros sinais de que o relógio se apressa em chegar na hora H. Em um mundo indeciso e imprevisível sobre qual sua próxima catástrofe (seja advinda das artimanhas da política ou da cruel contingência da natureza), os presságios dos novos tempos continentais que rondam a ilha Formosa parecem cada vez menos sinuosos.


Playing Prophet: Um futuro cada vez mais presente


Para finalizar, quero elencar, munido do que desenvolvi ao longo deste texto, três elementos cruciais para que enxerguemos o futuro das relações entre a China e Taiwan e, assim, possamos ter a base fixa de qualquer tentativa de prospecção sobre as possibilidades – e suas respectivas probabilidades – que rondam o futuro dessa relação espinhosa.

Primeiro, é fundamental enxergar que o caráter do que aconteceu em Hong Kong é duplo: de um lado, o PCCh conseguiu, sem muitos freios, consolidar um domínio político sobre a elite da região, que o ajudou a concretizar as peças legislativas decisivas de 2019 e 2020 que hoje minam quaisquer sonhos de autonomia e democracia aos moldes ocidentais por ali. Não há nenhum tipo de influência desse porte do PCCh em Taiwan: nem quando o então presidente de Taiwan e líder do KMT Ma Ying-jeou se encontrou com Xi Jinping em Singapura em 2015, muito menos agora com Taiwan sob a liderança de Tsai Ing-wen e o seu Partido Democrático Progressista que cultiva um nacionalismo próprio, avesso aos resquícios dos princípios de Sun Yat-sen que habitam os corações de correligionários do KMT. E do outro lado? Bom, a necessidade de um caráter repressivo da polícia em Hong Kong nos dá um gostinho do tipo de resistência que espera os chineses em Taiwan, cheia de ressentimentos e disposta a persistir mesmo nas mais adversas condições. Se em Hong Kong, no seu quintal, a China não encontrou vida fácil, na ilha dos seus sonhos, Xi certamente também não encontrará; e precisará, se quiser conquistar o objeto do seu desejo imutável, mobilizar uma força significativa para tanto.

Entramos então no segundo ponto: a força que precisará ser mobilizada precisa levar em conta não só a força de Taiwan, mas de seus aliados e é aqui que reside o perigo de escalada do conflito, tendo em seus germes a possibilidade real de levar-nos de volta aos sombrios cenários de guerras mundiais. Isto pois existem certos movimentos recentes que indicam preparações nesse sentido: Biden e sua vocal defesa de Taiwan, aparentemente mais disposto a se contrapor à China do que seu antecessor; o recente pacto entre Austrália, Reino Unido e EUA visando deixar os australianos equipados com submarinos à base de energia nuclear (não necessariamente armados com mísseis nucleares) e uma série de afunilamentos estratégicos visando um cenário de um invasão chinesa à Taiwan; e, por fim, os recentes avisos e estudos de autoridades militares dentro dos EUA que indicam a aproximação da tão temida – mas esperada – invasão. Tudo isso não nos permite cravar um quando, mas o fato é que a tempestade perfeita parece já estar meteorologicamente – ou, nesse caso, geopoliticamente – plantada.

Finalmente, como último ponto, não posso deixar de relembrar como o espírito de Sun Yat-sem permeia tudo isso. Se em Taiwan ele é o pai da República da China, o fundador da Nação, reverenciado pelo governo e pelo povo e estampado na moeda do país, na China continental ele é o precursor da Revolução, o idealizador da Nação unificada, do conceito de uma única China, além de ter o seu retratado imponente estampado na Praça da Paz Celestial e de ser mencionado até mesmo na Constituição da República Popular da China. Sun Yat-sen é a figura sem a qual não haveria o conflito que existe hoje e em 2021, 96 anos depois de sua morte, pauta as principais questões que permeiam essa conturbada história.

Termino desejando que em 2025, no seu centenário, tenhamos uma situação mais pacífica nas relações ao redor do Estreito, mesmo estando bem ciente do quanto esse desejo é um otimismo ingênuo. Não obstante, nos é permitido sonhar.


Notas:


¹ Para facilitar a leitura do texto e evitar notas de rodapé, algumas das fontes foram deixadas em hyperlink para que possam ser consultadas.


REFERÊNCIAS


BUSH, Richard C. What the historic Ma-Xi meeting could mean for cross-Strait relations. Brookings, 2015. Disponível em: <https://www.brookings.edu/blog/order-from-chaos/2015/11/09/what-the-historic-ma-xi-meeting-could-mean-for-cross-strait-relations/>. Acesso em: 7 de novembro de 2021.

CHEN, Simon Shin-wei; HUI, Samuel; KAI-CHUN, Wang. Why US Strategic Ambiguity Is Safer for Taiwan. The Diplomat, 2021. Disponível em: <https://thediplomat.com/2021/04/why-us-strategic-ambiguity-is-safer-for-taiwan/>. Acesso em: 7 de novembro de 2021.

HAYTON, Bill. The Invention of China. New Haven: Yale University Press, 2020.

HOFHEINZ, Roy. The Broken Wave: The Chinese Communist Peasant Movement, 1922-28. Harvard University Press, 2013.

SCHWARTZ, Benjamin J. Chinese Communism and the Rise of Mao. Cambridge: Harvard University Press, 1951.

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