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OBSERVATÓRIO/ Danaila Almeida

CRIMIGRAÇÃO : A RELAÇÃO ENTRE A POLÍTICA CRIMINAL E A POLÍTICA MIGRATÓRIA

A migração é intrínseca à natureza social. No transcorrer da história, o ser humano sempre se deslocou de um território para outro, antes mesmo de existir a definição de fronteira. Neste sentido, Brasil e Mendes (2020) apregoam que “[...] as migrações ocorrem por diversos fatores, como: quando se procura melhores condições de vida; para fugir de guerras e desastres ambientais; [...] por desejar se estabelecer em outra região, em razão, em razão do clima, da sociedade ou da família”.

Ademais, com a criação das Nações Unidas, em 1945, é que, na seara internacional, surgiu a preocupação e discussões atinentes aos direitos humanos. Desta maneira, visando assegurar aos indivíduos o acesso a esses direitos, incluindo os estrangeiros, surgiram vários documentos internacionais como a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, cujo art.13° que versa sobre migração, explicita que:

1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado;
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a este regressar.

Salienta-se o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) de 1966, que também influiu na proteção dos direitos dos estrangeiros, precipuamente no que tange a normatização do direito à livre circulação, juntamente com o direito de emigrar e o direito de asilo (Holthausen, pág. 11). Há de se destacar que a Declaração e Programa de Ação de Direitos Humanos da Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, trouxe à luz a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos.

A importância internacional delegada a essa temática buscava recuperar a dignidade humana arrasada com os eventos da Segunda Guerra Mundial. Deste modo, foram estabelecidos um conjunto de direitos considerados essenciais para a vida humana (Accioly, 2019, p. 392). Na contemporaneidade, conforme indica Martine (2005), a globalização é um dos principais fatores que impulsiona os movimentos migratórios, haja vista que os fluxos de informações concernentes a melhores oportunidades e condições de vida em algumas nações, especialmente, os industrializados. Todavia, os Estados são associações que, entre outras

Danaila Almeida Borges

características, possuem o monopólio de legitimidade da mobilidade ( Reis, 2004, pág. 150). Isto é, são as unidades políticas que determinam aqueles que podem ingressar em seus territórios a partir de suas políticas migratórias, concebida por De Moraes (2016) como:

[...] Conjunto de medidas adotadas por determinado Estado para controlar o fluxo de pessoas através de suas fronteiras, bem como a permanência dos estrangeiros em seu território. [...] As políticas migratórias tendem a responder aos imperativos globais (os direitos humanos, o respeito às convenções), mas também a múltiplas questões: a pressão de opinião pública, a exigência de segurança, a crença de concorrência no mercado de trabalho, o desejo de atrair as elites (De Moraes,2006, pág. 24)

Contudo, o imigrante sempre foi visto como o inimigo, uma possível ameaça à segurança nacional. Por sua vez, este pode ser acusado de todos os regressos sofridos pela sociedade e, por não fazer parte da comunidade, pode ser punido sem pesar (Holthausen, pág. 11). Paradoxalmente, observa-se que os próprios Estados fomentam a migração, propiciando oportunidades e esperanças, ao mesmo tempo em que expulsam os “indesejáveis”, normalmente provenientes das nações em desenvolvimento (Velasco, 2014, p. 111).

Como efeito, estes “inconvenientes” são impossibilitados de exercer a cidadania que para Milton Santos (1987), está diretamente ligada à garantia dos direitos básicos e vida digna para os seres humanos e não tão somente ao território. Nessa acepção, compreende-se que alguns são mais cidadãos que outros. Isto se deve ao acesso desigual dos direitos básicos, especialmente aos migrantes.Ademais, para o geógrafo, o território é usado de duas formas : como recurso e como abrigo.

O último está relacionado ao uso “de todos”, isto é, a “compreensão do território a partir do lugar, um espaço de todos, do qual todos os seres humanos possuem direito de uso” (Santos Et al ,2022,pág.6). É o uso do território como abrigo que aproxima os indivíduos da cidadania. Entretanto, atualmente, denota-se que às políticas governamentais dos Estados outorga o uso do território “para os que podem”, marginalizando os grupos como os imigrantes e afastando-os da cidadania.

Para os cidadãos do Sul Global, os muros ficam enormes, as pontes são quase inexistentes e as leis são mais rígidas. Para estes, as promessas são meras propagandas e a livre circulação de pessoas constituem-se em falácias. A estes também são atribuídos o alto grau de periculosidade e o adjetivo de “escórias”, cujos males da sociedade são oriundos de suas ações e , portanto, se deve negar-lhes direitos e legitimar quaisquer atos sancionadores e truculentos (Carvalho, 2015, pág. 205–206).

Com a veemente necessidade de barrar os “inimigos”, opera-se a criminalização do imigrante. Neste sentido, convém a expressão ‘crimigração’. Em 2006, Juliet Stumpf utilizou o termo para apresentar as intersecções entre a legislação criminal e as leis de imigração. Isto é, a gradativa perda de direitos dos migrantes e, em simultâneo, na criminalização dos comportamentos dos mesmos, além da “aplicação simultânea da lei penal a migrantes (que não cometeram crimes) e a aplicação da lei de imigração a condenados por crimes (com afastamento permanente dos territórios onde estes condenados cometeram os crimes)”. (Guia; Pedroso, 2015, pág. 131)

De acordo com Stumpf, a elevada intolerância em relação aos indivíduos não nacionais, resulta na estratificação do acesso aos direitos, precipuamente, o direito de exercer a cidadania. A princípio, esta maior intransigência era direcionada aos estrangeiros com graves crimes violentos. No entanto, ano após anos, crimes menores passaram a ser motivos para interdição prolongadas e expulsão (Guia; Pedroso, 2015). Tal conceito elucida a situação dos imigrantes nos Estados Unidos, cujo contexto histórico é caracterizado pela acentuada imigração de europeus e a predominância destes sobre os nativos.

Segundo Guia e Pedroso (2005), o aumento da imigração irregular do México e países asiáticos, o caso “Boatlif Mariel”, no qual o governo cubano incitava condenados a pedir asilo nos Estados unidos e o colapso financeiro de 1993, resultaram no início da convergência Lei de Imigração e da Lei Penal, culminando na política pública da ‘crimigração’. Os corolários disto foram a “[...] estratificação do acesso aos direitos, incluindo o direito de exercer a cidadania em pleno, e a acumulação de sanções penais e imigratórias, levou ao aumento imediato das deportações “(Guia ; Pedroso,2005, pág.132).

Sob outro prisma, Maria João Guia (2008) analisou que a ‘crimigração’ em Portugal, iniciou-se no século XXI, explicitados na culpabilização dos imigrantes quando os índices de criminalidade tornam-se altos ou quando o aumento dos crimes truculentos era intrínseco ao aumento de imigrantes no país. A autora também pontua que há discrminação na aplicação da pena de prisão, condenação e nas próprias condições de acesso à justiça com que se deparam os imigrantes no país.

Ademais, no Brasil, ainda não se configurou o fenômeno da crimigração. A Lei no 13.445/2017 no art. 3o, prevê, o princípio da não criminalização das migrações que, adequa-se também às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, característico de leis migratórias que objetivam à proteção dos direitos humanos. Todavia, a crimigração opera-se no Estado pela dificuldade de materialização das políticas públicas propostas.

Além disso, conforme apregoa Holthausen (2023), a nova lei mantém a racionalidade jurídica das legislações predecessoras, ao prever, por exemplo, a existência dos mecanismos de saída compulsória, instituindo o migrante como “indesejável”. Há de se destacar que no governo do ex-presidente Bolsonaro, ao estabelecer a organização dos órgãos e ministérios, a migração foi atribuída como matéria de competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), assim como o Conselho Nacional de Imigração (CNIg).

Além disso, a atual organização governamental, do presidente Lula, instituída pela Medida Provisória n. 1.154, de 1o de janeiro de 2023 (Holthausen,2023,pág.51), não distanciou-se deste paradigma, tendo em vista que o art. 35, mantém as matérias de migração, nacionalidade e refúgio sob a autoridade do MJSP. Mesmo que, em seu art. 44, estenda a competência de tal assunto ao Ministério das Relações Exteriores (MRE). Evidencia-se, portanto, que assuntos atinentes à migração ainda são tratados como matéria de segurança nacional.

A Lei n. 13.445/2017 foi essencial para o desenvolvimento no sistema jurídico brasileiro, que garantiu a proteção dos direitos dos migrantes, juntamente com o Estatuto de Refugiados. Diante disso,Ana Moraes (2020), afirma que há a superação do paradigma securitário vigente em leis como o Estatuto do Estrangeiro de 1980. Contudo, é preciso reconhecer que ainda há muito a ser melhorado no ordenamento jurídico nacional, uma vez que os elementos elencados constata a existência do da crimigração nas políticas migratórias brasileiras de maneira implícita.


 

REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Hildebrando et. Al. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2016.

BRESSAN, Clara. Crimigração: A junção do direito penal com o direito internacional a serviço da exclusão dos imigrantes. Disponível em :< https://adelpha-api.mackenzie.br/server/api/core/bitstreams/cbd305a6-bd1c-4b24-a78a-45a34 481e3e8/content >. Acesso em: 20 ago. 2023

GUIA,Maria João; PEDROSO, João. A insustentável resposta da “crimigração” face à irregularidade dos migrantes : Uma perspectiva da União Europeia. Disponível em :<

GUIA, Maria João. Imigração e criminalidade: caleidoscópio de imigrantes reclusos. Coimbra: Almedina, 2008.

HOLTHAUSEN, Maria. Crimigração: uma análise do fenômeno no Brasil sob a perspectiva da Lei n.13.445/2017 . Disponível em :< https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/248652/TCC%20-%20Vers%c3%a3o %20final.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 20 ago. 2023

MORAES, A. L. Z. Crimigração. In.: FRANÇA, Leandro Ayres (coord.); QUEVEDO, Jéssica Veleda; ABREU, Carlos A F de (orgs.). Dicionário Criminológico. Porto Alegre: Editora Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível em: < https://www.crimlab.com/dicionario-criminologico/crimigracao/33> Acesso em: 20 ago. 2023

STUMPF, Juliet. “The Crimmigration Crisis: Imigrants, Crime and Sovereign Power”, American University Law Review, v. 56, n. 2, 2006.

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