Cultura Pop na construção de uma diplomacia transnacional: o ativismo político de fãs de kpop no cenário internacional e na luta contra hegemonia ocidental
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Por: Iasmin Cardoso
O período pós-Segunda Guerra Mundial ficou marcado pela emergência de diversos movimentos culturais marcados pela forte influência dos Estados Unidos, que, ao despontar como potência hegemônica, passaram a manifestar seus valores, estilos de vida e padrões de consumo por meio da indústria cultural. Essa expansão da cultura norte-americana, que foi impulsionada pelo cinema, pela música e pela mídia de massa, consolidou o chamado “american way of life” (Tradução: modo americano de viver) como ideal global, transformando a cultura em instrumento de poder e dominação simbólica no cenário internacional. (DA ROCHA; VARGAS; 2021)
Esse instrumento de poder e dominação é chamado de soft power, que de acordo com Joseph Nye(1980), é o poder através da capacidade de influência dos estados sem a necessidade de força militar e/ou um financiamento econômico, ou seja, é a transmissão de uma imagem positiva do estado através de polos culturais, ideológicos e políticos. Assim, a cultura passa a ser usada estrategicamente como meio de legitimar hegemonias e moldar pensamentos globais.
Contudo, nas últimas décadas, essa lógica tem sido tensionada pela ascensão de novas potências culturais que desafiam a centralidade ocidental nesse campo. Por conta disso, a diplomacia internacional tem quebrado cada vez mais essa fronteira entre o entretenimento e a política, tornando-se possível a presença de artistas e elementos da cultura pop em ações políticas internacionais. Um dos maiores exemplos de diplomacia cultural visível atualmente é a expansão do Hallyu, uma onda de cultura gerada pela Coreia do Sul, geralmente expressada através de música, filmes, séries e jogos. (BILLIG; DA SILVA, 2022)
Um exemplo dessa diplomacia foi a promoção do grupo sul-coreano BTS em uma campanha da UNICEF, na qual os mesmos promoveram a luta contra o bullying, a violência e incentivaram o bem-estar mental de crianças e adolescentes, e anos depois discursaram ressaltando a importância dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS). Essas campanhas atraíram a atenção de fãs ao redor do mundo e resolveram se mobilizar em campanhas de conscientização e naquelas focadas nas políticas públicas.
Essa relação destaca o modo como a cultura pop pode ser mobilizada como ferramenta de soft power, visto que essas atitudes representam mais do que o entretenimento, pois demonstra como o K-pop assume uma dimensão geopolítica, devido ao modo com o qual gerou as milhares de fãs ao redor do mundo que se mobilizam em causas sociais e políticas, tornando-se novos agentes diplomáticos.
Este artigo parte, portanto, da seguinte problemática: de que forma os fandoms de K-pop atuam como agentes políticos transnacionais, e até que ponto esse ativismo desafia o sistema hegemônico cultural ocidental? Nesse sentido, podemos dizer que a Coreia do Sul tem divulgado culturalmente sua política de forma efetiva no cenário internacional. Essa ideia se destaca quando os membros dos grupos de kpop se comprometem com as causas internacionais, e os fãs começaram a se mobilizar em campanhas em diversas causas ao redor do mundo. Em 2019 os fãs chegaram a criar uma organização não governamental (ONG)- chamada de Army help the planet- com o objetivo principal o desenvolvimento de projetos socioambientais, por conta da promoção do discurso do grupo BTS em cooperação com a UNICEF.
Segundo a matéria do CNN, um outro projeto que gerou a atuação de diversos fandoms foi a arrecadação para a campanha Black Lives Matter no ano de 2020 após os protestos pela morte de George Floyd. Esses fãs se mobilizaram através das redes sociais para arrecadar milhões de dólares destinados a organizações de combate ao racismo, mostrando que sua atuação vai além das fronteiras nacionais e que esses grupos se reconhecem como parte de uma comunidade política global.
Esses casos mostram que este tipo de consumo de cultura pop ultrapassa a esfera do entretenimento e se consolida no campo político, econômico e social, na qual se torna também parte de uma plataforma multilateral, pois une indivíduos de diferentes países em torno de pautas coletivas. Pode-se dizer que essa plataforma, possui um papel transnacional devido a atuação dos fandoms de K-pop representar uma mudança no equilíbrio da influência cultural global, colocando a Coreia do Sul em uma posição capaz de disputar um espaço dominado pelas potências ocidentais que moldam os padrões culturais e influenciam os consumos das mídias globais. Por isso, o engajamento dos fãs de K-pop expressa que novas formas de poder cultural estão surgindo, sendo elas menos centralizadas e mais colaborativas.
Dessa forma, quando nos referimos ao Kpop, o fenômeno não reforça apenas a multipolaridade cultural, mas também questiona a hegemonia ocidental na criação de identidades, consumo e mobilização política, mostrando que o poder de consumo no cenário global não é mais exclusiva das potências Ocidentais, visto que, atores culturais emergentes com capacidade de influência internacional tem se tornado cada vez mais presente.
Outro desafio da hegemonia ocidental impactado pelo kpop pode ser caracterizado pela quebra dos padrões linguísticos dominantes no ocidente, devido à produção das músicas serem majoritariamente em coreano, a ideia de que o inglês é necessário para atingir sucesso internacional se torna questionável. (KANG, 2023)
A pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea, Daniela Mazur- doutoranda em Comunicação- se referindo a questão da relação entre os Estados Unidos e a globalização do kpop, destaca que:
“O potencial histórico de influência cultural, social e política dos Estados Unidos no mundo através da globalização e do “american way of life” vem de uma base imperialista, que tinha/tem uma perspectiva fundada nos valores ocidentais, que há séculos são reafirmados e configurados como verdades universais, e a Coreia do Sul não participa dessa lógica. A Coreia participa da dinâmica excludente do orientalismo, que exotiza, menospreza, distancia e essencializa o que não é ocidental.
Então, o lugar do “Oriente”, aqui no caso representado pela nação sul-coreana, é o de resistência e de contrafluxo em um mundo “globalizado” que é pautado nos ideais ocidentais e no poder de influência secular dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. O K-pop está sim se globalizando em favor de alcançar diferentes mercados e culturas, mas o poder destrutivo de propagação de um estilo de vida acima de todos os outros, como é o american way of life, é completamente distinto da conquista internacional da Hallyu por causa desse sistema de poder secular.” MAZUR, Daniela. K-pop e um ativismo que rompe com a ignorância ocidental. [Entrevista concedida a] João Vitor Santos. Instituto Humanitas Unisinos, Jul, 2020."
Essa análise evidencia como o estado sul-coreano, por meio de sua produção cultural, consegue criar um espaço simbólico alternativo ao norte-americano, consolidando sua própria narrativa de identidade e poder cultural, independente da lógica de hegemonia ocidental.
Por conta disso, é possível dizer que os fãs desempenham um papel central quando buscam interagir com os conteúdos e os artistas através da aprendizagem da língua coreana, transformando-se ainda mais em agentes ativos que buscam a valorização do idioma e da cultura sul-coreana. Essa mobilização reforça a identidade cultural do país criando uma rede global de engajamento que quebra a hegemonia ocidental.
Além disso, a participação dos fãs nas promoções de campanhas sociais, traduções e eventos não descreve apenas o modo no qual a cultura é consumida, mas reflete também na construção de uma diplomacia cultural descentralizada, evidenciando que o K-pop funciona como um mecanismo de soft power não estatal capaz de disputar espaço com potências culturais tradicionais. Sendo assim, os fandoms podem ser considerados como autores diretos na construção de um movimento cultural contra-hegemônico, demonstrando que o K-pop pode expandir sua influência internacional sem perder sua identidade e elementos sociais.
Diante do exposto, é perceptível que o Kpop não é apenas uma ferramenta de soft power desenvolvida pela Coreia do Sul. Se tornou um ato de expansão de novos atores presentes no cenário político e internacional, que ajudam na promoção contra a dominação de influência cultural estadunidense e abrem espaço para debates de novos caminhos de influência no século XXI.
Referências Bibliográficas:
Army help the planet. Disponível em: <https://armyhelptheplanet.com/>. Acesso em: 21 set. 2025.
BTS e fãs doam mais de US$ 2 milhões para o movimento Black Lives Matter. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/bts-e-fas-doam-mais-de-us-2-milhoes-para-o-movimento-black-lives-matters/>. Acesso em: 20 set. 2025.
DA ROCHA, Anderson Alves; VARGAS, Herom. Da Cultura de Massa ao Pop: definições e histórico da cultura pop. Revista Comunicação Midiática, v. 16, n.1, p. 35-‐45, jan/jun. 2021 Disponível em: https://share.google/JZbWr1ikr51GaIhn1. Acesso em: 10 out. 2025.
JÚNIOR, Moreira; NEVES, Humberto. A atuação de fandoms como atores de política internacional: o caso brasileiro da Army Help Manaus. Disponível em: <https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/41000/3/Atua%C3%A7%C3%A3oFandomsComo.pdf>. Acesso em: 09 out. 2025.
KANG, Sahie. The global K-Pop impact. Disponível em: <https://www.middlebury.edu/language-schools/blog/global-k-pop-impact>. Acesso em: 18 set. 2025.
K-pop: como os fãs de música sul-coreana estão influenciando a política. BBC, 26 jun. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-53200786> Acesso em: 18 set. 2025
MILKO, Victoria. Fãs de K-pop pelo mundo abraçam ativismo contra mudanças climáticas. Disponível em: <https://fastcompanybrasil.com/impacto/fas-de-k-pop-pelo-mundo-abracam-ativismo-contra-mudancas-climaticas/>. Acesso em: 17 set. 2025.
SANTOS, João Vitor. K-pop e um ativismo que rompe com a ignorância ocidental. Entrevista especial com Daniela Mazur. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/601201-k-pop-e-um-ativismo-que-rompe-com-a-cegueira-ocidental-entrevista-especial-com-daniela-mazur>. Acesso em: 11 out. 2025.
UNICEF e banda de pop sul-coreano pedem fim da violência nas escolas. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/83860-unicef-e-banda-de-pop-sul-coreano-pedem-fim-da-viol%C3%AAncia-nas-escolas>. Acesso em: 22 set. 2025.
UNICEF e BTS comemoram o sucesso da campanha LOVE MYSELF. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/150470-unicef-e-bts-comemoram-o-sucesso-da-campanha-love-myself>. Acesso em: 20 set. 2025.
Vista do K-pop, ativismo de fã e desobediência epistêmica: um olhar decolonial sobre os ARMYs do BTS. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/logos/article/view/54453/36831>. Acesso em: 17 set. 2025

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