Da Guerra à Reconciliação: A Diplomacia do Repatriamento de Restos Mortais e os Desafios das Relações Sino-Coreanas
- nuriascom
- 23 de mai.
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Daví Passos Antunes Franca
As relações sino-coreanas possuem raízes milenares, marcadas por uma dinâmica de influência política e cultural. Até 1895, a Coreia era um Estado tributário do Império Chinês, o que refletia a hegemonia da China sobre a península coreana. No entanto, esse cenário foi alterado com o tratado de Shimonoseki que, ao final da Guerra Sino-Japonesa (1894–1895), transferiu a Coreia para a zona de influência do Japão, redefinindo assim o quadro político da região (Lee, 2008).
No século seguinte, após a derrota do império japonês na Segunda Guerra Sino–Japonesa (1937–1945), a Coreia tornou-se independente, e devido às divergências entre a ideologia capitalista e socialista no território, ocorreu a Guerra da Coreia (1950–1953), que redefiniu as relações sino-coreanas novamente. A China, sob regime socialista, realizou uma intervenção militar no conflito, se opondo às forças dos Estados Unidos e da República da Coreia (Coreia do Sul). A intervenção chinesa foi motivada por preocupações de caráter estratégico, principalmente pelo receio de uma Coreia unificada e alinhada aos interesses do imperialismo ocidental. Portanto, esse conflito consolidou a divisão da península e aprofundou laços diplomáticos entre a China e a Coreia do Norte.
A Diplomacia dos Restos Mortais de Combatentes Chineses
Após sete décadas de silêncio histórico entre a China e a Coreia do Sul em torno das mortes de militares e voluntários na Guerra da Coreia, um desenvolvimento significativo marcou as relações sino-coreanas: o programa de repatriação dos restos mortais de combatentes chineses. Este processo iniciou-se em 2014 através de um acordo bilateral. Até agora, os restos de 981 soldados chineses foram retornados à China (SAJID, 2024). O gesto, que transcende sua dimensão humanitária, representa um esforço conjunto para reconciliar memórias históricas divergentes e reconstruir a confiança política entre os dois países.
Além disso, a repatriação dos restos mortais evidencia uma diplomacia simbólica, com gestos estratégicos de reaproximação entre os países. Inicialmente sendo tratado como um assunto humanitário discreto, o processo ganhou relevância política com o passar do tempo, especialmente após 2020, quando as cerimônias de entrega passaram a contar com a presença de autoridades de alto escalão de ambos os países (Xinhua, 2024).
Em novembro de 2024, uma cerimônia foi realizada em Incheon, Coreia do Sul, onde oficiais sul-coreanos entregaram o 11º lote de restos mortais dos Voluntários do Povo Chinês para seu país de origem (SAJID, 2024). Este ato, que demonstra respeito mútuo entre os dois países, pode ser interpretado como uma estratégia de reaproximação entre Seul e Pequim. Por um lado, a Coreia do Sul visa estabelecer relações diplomáticas amistosas com os chineses por meio da demonstração da “prática de boa vontade”, promovendo assim, a estabilidade na região.
A China tem utilizado essas ocasiões para reforçar narrativas patrióticas, descrevendo os soldados como “heróis voluntários” que defenderam a pátria — uma retórica que ressignifica a sua participação na Guerra da Coreia. Já a Coreia do Sul, embora evite confrontar diretamente a versão histórica chinesa, tem equilibrado esses gestos com demonstrações de respeito aos falecidos e suas famílias, sem abandonar a aliança estratégica com os Estados Unidos da América. O fato do programa ter sobrevivido mesmo com as mudanças de governo em Seul (incluindo a eleição do ex-presidente Yoon Suk-yeoul, mais alinhado a Washington) sugere que para ambos os lados, o tema transcende disputas ideológicas e se trata de um canal diplomático flexível e útil tanto para suavizar tensões quanto para sondar espaços de cooperação em meio às rivalidades regionais.
Península Coreana: Futuro estável, mas sem Reunificação?
A repatriação dos restos mortais reflete uma estratégia de longo prazo da Coreia do Sul. Diante das incertezas do cenário internacional e da possibilidade de um conflito armado na Península Coreana, as autoridades sul-coreanas parecem buscar o aprofundamento das relações diplomáticas com a China. Como principal potência regional e ator-chave na mediação de conflitos no Leste Asiático, a China exerce influência decisiva sobre a Coreia do Norte, sua aliada estratégica. Ao fortalecer os laços com Pequim, a Coreia do Sul visa assegurar que a China não intensifique seu apoio a Pyongyang em um eventual conflito bélico entre as duas Coreias, esperando assim um maior equilíbrio e dinâmicas de poder na região.
Essa complexa teia de relações tem impacto direto no cenário de reunificação da península. Para analistas da geopolítica coreana, um processo de reunificação pacífica, até o momento, não se mostrou próximo da realidade, deixando o temor de uma continuação do conflito que se realizou no Século XX. A China, por sua vez, é um país socioeconomicamente estável, que tem cada vez mais ampliado suas capacidades econômicas e comerciais. Esta, devido ao zelo pelo seu crescimento econômico e estabilidade regional, pode não tolerar um conflito bélico de larga escala na região, o que por consequência, caso não ocorra um processo de reunificação pacífica, pode acabar perpetuando a separação entre as Coreias.
Considerações Finais
O retorno dos restos mortais de soldados chineses que lutaram na Guerra da Coreia simboliza mais do que um gesto humanitário: um esforço diplomático significativo entre a Coreia do Sul e a China para superar as divisões do passado e construir uma relação mais estável no presente. Esse ato reflete a complexidade das relações na Península Coreana, onde a história, herança de influências passadas, política e segurança se entrelaçam. Ao tentar se aproximar diplomaticamente da China, a Coreia do Sul demonstra uma estratégia de caráter pragmático para equilibrar as dinâmicas de poder na região, especialmente diante do futuro incerto de suas relações com a Coreia do Norte e a presença dos Estados Unidos no Leste Asiático.
Nesse contexto, as perspectivas de reunificação coreana tornam-se particularmente complexas. A China ao priorizar a estabilidade geopolítica em suas fronteiras, naturalmente atua para conter escaladas militares na península, o que, por um lado, previne conflitos abertos, mas por outro, acaba por cristalizar o status quo da divisão. Essa realidade acaba por criar um paradoxo: se por um lado a contenção de tensões protege populações coreanas de novos traumas de guerra, por outro perpetua a sua separação e a divisão sociopolítica de uma nação historicamente unificada. A questão, portanto, não reside em atribuir responsabilidades, mas em reconhecer que o atual equilíbrio de poder — do qual a China faz parte — não oferece caminhos claros para uma reunificação pacífica sob as condições políticas vigentes nas relações internacionais da região.
Referências Bibliográficas:
Anadolu Agency. Seoul returns remains of 43 Chinese volunteers from Korean War.
Disponível em:
orean-war/3407093. Acesso em: 19/03/2025.
LEE, K.-G. Trope of a Sovereign State: Treaty-Making by Korea 1876-1899. The Review of
Korean Studies, v. 11, n. 3, p. 11–36, set. 2008.
LÜ, Simian. Lvzhu Zhongguo Tongshi: Zhongguo Zhengzhishi. Tianjin People’s
Publishing House, 2023.
SNOW, Edgar. A Estrela Vermelha Brilha Sobre a China. Autonomia Literária, 2023.
Xinhua. China Focus: Remains of 43 Chinese martyrs in Korean War returned to
homeland from ROK. Disponível em:
11 Abr. 2025.
Xinhua. S. Korea returns remains of 88 Chinese soldiers killed in Korean War.
Disponível em:
10 Abr. 2025.
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