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OBSERVATÓRIO | Gustavo Domingues

DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS PARA O APROFUNDAMENTO DA INTEGRAÇÃO REGIONAL NA COMUNIDADE ANDINA

CONTEXTUALIZAÇÃO POLÍTICA ATUAL E HISTÓRICA DO PERU E SUAS RAMIFICAÇÕES PARA A COMUNIDADE ANDINA


Diante da globalização, do aumento de fluxos comerciais, da maior rapidez de fluxos informacionais e tecnológicos e da maior circulação de pessoas permitido pela eliminação de barreiras a partir do fim da Guerra Fria, a década de 1990 teve a adoção, por vários países latino-americanos (incluindo os da Comunidade Andina) de cartilhas neoliberais impostas pelos Estados Unidos.

Sendo assim, durante os anos 90, o Peru, sob a liderança do presidente autoritário Alberto Fujimori, adotou medidas econômicas neoliberais, que iam de acordo com o Consenso de Washington, este, recomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) aos países em desenvolvimento da América Latina, tais quais as privatizações de empresas estatais, a desregulamentação da economia, a rápida abertura comercial, a abolição de subsídios e do congelamento de preços, a drástica redução de restrições às importações e ao investimento estrangeiro. Embora tal política econômica de redução do tamanho do Estado tenha, a curto prazo, cumprido com o objetivo de redução da inflação do país e contribuído a um crescimento expansivo do PIB, que chegou a 13% ao ano (um dos maiores níveis, na época de qualquer país do mundo), ele também recebeu críticas por ter perpetuado as desigualdades sócio-regionais e pelas brutais violações de direitos humanos, especialmente em comunidades indígenas, que sofreram, inclusive, com sequestros, esterilização forçada e planos de extermínio étnico por serem “culturalmente atrasados”, o que foi descrito por organizações internacionais como crimes contra a humanidade.

Apesar de o Peru ter um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) relativamente elevado de 0,762 para os padrões da América Latina e um PIB per capita de 7.772 dólares (o maior entre os 4 Estados-membros da Comunidade Andina), o país sofre com um dos maiores níveis de desigualdades regionais entre todas as nações da região. De acordo com número do Instituto Nacional de Estatística e Informação do Peru, a probabilidade de um residente de um local rural ser pobre é três vezes mais alta do que a de um morador urbano, com peruanos da área andina interiorana tendo probabilidade duas vezes maior de estarem na pobreza do que aqueles que vivem no litoral. Além disso, habitantes das regiões “remotas” de Ayacucho e Cajamarca têm entre quatro e cinco vezes mais chances de serem pobres do que aqueles da região metropolitana de Lima. Um artigo da organização não-governamental Oxfam, por sua vez, afirmou que as diferenças na qualidade de vida, serviços públicos e acesso a oportunidades dentro do Peru são tão grandes que seria possível acreditar que se tratam de países diferentes. Indo de lado a lado com isso, é inegável que existe, além do fator geográfico, uma correlação étnica e racial presente na pobreza no país, tendo em vista que as regiões rurais mais pobres têm uma alta proporção de indivíduos de povos indígenas e originários, enquanto Lima possui uma taxa desproporcionalmente alta, quando comparado ao restante do Peru, de mestiços e descendentes de europeus. Nessa perspectiva, os peruanos que falam línguas indígenas (especialmente o Quechua e Aymara) e que têm o espanhol como segunda língua também sofrem com a marginalização social à medida em que possuem um índice de pobreza duas vezes maior que o da população geral.

Em um contexto político interno recente, no dia 7 de dezembro de 2022, o então-presidente do Peru, Pedro Castillo, foi deposto em meio à uma crise política severa no país que havia resultado, poucas horas antes no mesmo dia, na tentativa de Castillo dissolver o Congresso do Peru,  governar por decreto e anunciar um estado de exceção após terem sido iniciadas procedimentos de impeachment contra o mesmo (COLLYNS, 2022). Castillo, que havia sido eleito em junho de 2021, numa eleição extremamente polarizada e apertada decidida por menos de 25.000 votos, como um “outsider” sem experiência política e representante dos interesses de comunidades indígenas pobres nas áreas rurais do país (que, acostumados em ter seus interesses negligenciados ou ignorados na política peruana, viram em Castillo a chance de ter alguém que representaria a voz dos povos originários na presidência, aumentando, assim, a influência dos mesmos nos debates políticos do Peru), e cuja vitória já estava inserida num contexto de recentes sucessos eleitorais, na região, de partidos políticos e movimentos de esquerda que pregavam reformas estruturais a fim de mitigar as desigualdades socioeconômicas presentes no país. Castillo já demonstrava ser um líder fragilizado, em virtude da sua falta de capacidade de articulação política perante um Congresso controlado majoritariamente por partidos de oposição, composto também por parte das elites políticas e econômicas do país, que acusavam o presidente peruano de uma suposta falta de legitimidade popular desde o início do seu mandato em decorrência do resultado apertado da eleição, juntamente com a instabilidade política significativa gerada pelas constantes demissões de primeiros-ministros e membros do gabinete, e da sua extrema falta de popularidade na capital e maior cidade, Lima.

A crise política no Peru, que foi descrita como um “auto-golpe de Estado” e uma “tentativa de usurpação de poder” pelos opositores internos do presidente, atraiu condenação universal entre países da Comunidade Andina (ASPINWALL; CHEN, 2022). Entretanto, não se obteve um consenso sobre qual lado merecia a maior parcela da culpa pela situação. Dentre os países-membros da comunidade, a Bolívia criticou o assédio constante, desde o início de mandato, de elites peruanas contra um governo progressista legitimamente eleito, e a Colômbia, liderada pelo presidente Gustavo Petro, mesmo sem ter defendido a decisão de Castillo de dissolver o Congresso, se recusou a reconhecer o governo de Dina Boluarte, que assumiu a presidência após o impeachment de Castillo, algo que resultou na piora severa das relações diplomáticas dos dois países e culminou na declaração, por parte do Comitê das Relações de Exteriores Congresso do Peru, de Petro como “persona non grata” depois de suas falas criticando a repressão policial aos protestos antigoverno Boluarte e a comparando a tropas nazistas. As relações entre ambas as nações ficaram tão tensas que o mesmo comitê recomendou que o Ministério das Relações Exteriores tome as medidas necessárias para que Petro não entre no território nacional no Peru. Já o Equador teve um posicionamento mais conciliatório e menos assertivo, afirmando que esperava que todos os atores políticos do Peru respeitassem o Estado Democrático de Direito e pedindo para que a comunidade internacional facilitasse o processo democrático no país. Outros países, porém, foram mais inequívocos e explícitos sobre a responsabilidade pela crise, a exemplo dos Estados Unidos, que declarou que rejeitava qualquer tentativa do presidente Castillo de evitar que o Congresso cumprisse seu mandato.


CONTEXTO POLÍTICO COLOMBIANO E OS SEUS IMPACTOS PARA A INTEGRAÇÃO ANDINA


A eleição de Gustavo Petro à presidência da Colômbia em 2022, por meio de uma coalizão de frente ampla formada por partidos de esquerda, centro-esquerda, ambientalistas e progressistas, por sua vez, marcou uma mudança no perfil ideológico da política externa colombiana (MOTTA, 2023), com uma guinada à favor da promoção da integração e de um modelo de desenvolvimento latino-americano que enfatiza a autonomia com relação aos Estados Unidos e as grandes potências hegemônicas, se alinhando ao pensamento de alguns dos atuais governos dos países andinos, a exemplo de Bolívia e, até dezembro de 2022, do Peru.

A Comunidade Andina, criada oficialmente a partir da reformulação do Pacto Andino, no cenário da crise da dívida externa da década de 1980, em que o avanço das teses neoliberais do Consenso de Washington teve um impacto direto nos processos de cooperação dos países andinos. Alinhando-se ao paradigma econômico dominante, criou-se a necessidade de desburocratizar as regras do Pacto Andino para possibilitar o estabelecimento de relações comerciais com países externos ao bloco. Nesse sentido, em 1997, a Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela promoveram uma reformulação do pacto e a criação da Comunidade Andina (CAN), por meio da assinatura do Protocolo de Trujillo.

Na virada do século XXI até os dias atuais, o processo de integração da Comunidade Andina, apesar de ter sido marcado por uma série de divergências políticas e diplomáticas de natureza ideológica, além da instabilidade política interna dos países membros e contingências como as crises migratórias, foi um fator essencial. A chamada “onda rosa” foi muito importante para alinhar as agendas dos países andinos e questionar o modelo de integração neoliberal promovido pelos países durante as décadas de 1980-90, mas os conflitos e diferenças ideológicas durante o período ainda se mantiveram vivos. As principais disputas internas do bloco se deram entre Colômbia e Venezuela (ARAÚJO, 2014).  Com a eleição dos governos de esquerda, na Bolívia, Peru, e Equador, o bloco estava marcadamente mais alinhado com uma visão crítica da integração aberta neoliberal. Por outro lado, a Colômbia estava sendo presidida por Álvaro Uribe, de orientação política neoliberal que passou a se posicionar a favor da manutenção da visão de integração regional aberta, e contra a Venezuela, um governo de cunho socialista oposto à interferência dos Estados Unidos nos países andinos. A renovação dos Tratados de Livre Comércio (TLC) entre Colômbia e Peru com os Estado Unidos, dessa forma, acabou fomentando a saída da Venezuela do bloco.

Nesse sentido, em 2022, a eleição de Gustavo Petro no governo da Colômbia marcou uma mudança profunda na política externa dos governos anteriores, que tinham fortes divergências com o governo venezuelano, tendo o antecessor de Petro, o conservador Iván Duque, apoiado o líder da oposição venezuelana e autoproclamado presidente Juan Guaidó. A visão do novo presidente colombiano é, portanto, de ruptura com as hostilidades anteriores, pois, no início de 2023, em uma reunião com Nicolás Maduro, ambos defenderam a reintegração da Venezuela à Comunidade Andina de Nações (CAN) e ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos.


TEORIAS ACERCA DA INTEGRAÇÃO REGIONAL E A COMUNIDADE ANDINA


Numa perspectiva teórica de regionalismo aberto vs. regionalismo fechado, é cabível afirmar que, durante os primeiros anos após a criação do Pacto Andino, a Comunidade demonstrou ser, assim como grande parte da América Latina, aderente à estratégia de regionalismo denominada de “regionalismo fechado”, que representou a primeira onda de regionalismo latino-americano, e fomentava o intercâmbio regional a fim de incrementar as plantas industriais locais, sendo, além disso, “fechado” para fora em virtude da tentativa de diminuir a influência do Ocidente e almejar reverter a ordem internacional de países periféricos sendo subjugados, mas “aberto” para dentro pela tentativa de aproximar os países do bloco entre si e buscar criar uma base regional fortalecida que pudesse modificar seus posicionamentos na dinâmica das relações internacionais e ampliar a inserção da região diante do cenário internacional (JUNQUEIRA, 2018). Tal estratégia, que recebeu profunda influência das teorias cepalinas e esteve fundamentada no combate à deterioração dos termos de troca e no incentivo à industrialização por meio da substituição de importações, foi um dos principais motivos por trás da saída do Chile do bloco, em 1976, quando, durante a ditadura militar com orientação econômica neoliberal de Augusto Pinochet, o grande número de restrições aos investimentos externos do pacto representou-se uma barreira às tentativas do país de atrair uma quantia significativa de capital estrangeiro. Diante do impasse, houveram negociações entre os países-membros para a mudança de regras com relação à maior flexibilidade ao investimento estrangeiro e à remessa de lucros. Entretanto, a incapacidade de se chegar a um acordo acabou culminando na retirada do Chile do Pacto Andino.

Em meados da década de 90, seguindo a tendência vista no resto do mundo, a Comunidade passa a se alinhar com o regionalismo aberto, com o fomento a liberalização comercial para fora, a diminuição de tarifas e a redução de barreiras alfandegárias em meio à crescente globalização, aumento de fluxos comerciais e necessidade dos países andinos competirem internacionalmente com outros mercados (CORAZZA; HERRERA, 2004) Nesse sentido, os países do Mercosul se tornaram membros-associados da CAN (e vice-versa), o que possibilitou acordos de livre comércio e de cooperação entre os dois blocos. Por outro lado, a liberalização não chega a ser totalmente irrestrita, tendo em vista que ainda existe a presença de uma tarifa externa comum a fim de proteger o bloco de determinadas formas de concorrência estrangeira cujas nações andinas teriam poucas condições de competir contra.  De qualquer forma, como já mencionado, o regionalismo aberto foi a principal razão pela saída da Venezuela da Comunidade, pois o país era radicalmente contrário a acordos de livre comércio assinados entre Colômbia e Peru com os EUA.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Torna-se evidente, portanto, que a integração regional na Comunidade Andina se deu de formas distintas em períodos diferentes, mas o elemento em comum em todos eles foi que as divergências político-ideológicas e econômicas foram o principal empecilho ao aprofundamento da integração e o principal motivo por trás do distanciamento entre eles, notório nas saídas de Chile e Venezuela da CAN. Além disso, a dificuldade de se estabelecer uma noção de identidade única e coletiva andina, que esteja fundamentada em princípios de solidariedade mútua, também demonstra ser um outro desafio para a integração andina, assim como a ampla disparidade econômica entre as próprias nações andinas (com a Bolívia tendo pouco menos da metade do PIB per capita do Peru, por exemplo) e a instabilidade interna dos Estados-membros, que resultou em massivos protestos anti-governo e a crises de sucessão de poder não só no Peru, mas também na Bolívia e no Equador. Há, entretanto, razões para o otimismo, pois, com a recente ascensão de governos de esquerda na região, os países aparentam estar deixando suas divergências anteriores de lado em prol de um projeto andino de coexistência mais amplo, o que foi exemplificado pelas falas do presidente chileno, Gabriel Boric, elogiando o propósito da Comunidade Andina como uma forma de contribuir para o aumento do protagonismo de nações historicamente unidas do Sul Global nos debates globais, e pelo desejo expressado por Petro de reintegrar a Venezuela e o Chile à CAN, provando, assim, que o futuro do bloco pode ser promissor. Tal cenário poderá ter como consequência, possivelmente, debates sobre uma rejeição da regionalização promovida pelo mercado e um plausível retorno parcial a modelos mais tradicionais de regionalismo, em que o Estado era o principal indutor.



 

REFERÊNCIAS  


ALARCÓN, Daniel. What Pedro Castillo’s failed coup attempt means for Peru. The New Yorker. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/daily-comment/what-pedro-castillos-failed-coup-attempt-means-for-peru Acesso em: 5 maio. 2023

Andean Community nations to push for Venezuela, Chile, Argentina to join bloc. Reuters. Disponível em: https://www.reuters.com/world/americas/andean-community-nations-push-venezuela-chile-return-bloc-2022-08-29/ Acesso em: 6 maio. 2023

AQUINO, Marco. Líderes da Comunidade Andina querem adesão de Chile, Venezuela e Argentina. Reuters. https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2022/08/29/lideres-da-comunidade-andina-querem-adesao-de-chile-venezuela-e-argentina.htm

ARAÚJO, F. L. Agendas de Política Externa para a Comunidade Andina de Nações: os casos de Bolívia e Colômbia. Estudos Internacionais: revista de relações internacionais da PUC Minas, v. 2, n. 2, p. 189-214, 18 dez. 2014.

COLLYNS, Dan. Peru president removed from office and charged with ‘rebellion’ after alleged coup attempt. The Guardian Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2022/dec/07/peru-president-detained-pedro-castillo-coup Acesso em: 5 maio. 2023

CORAZZA, Gentil; HERRERA, Rémy. O “Regionalismo Aberto” da CEPAL e a Inserção da América Latina na Globalização. Disponível em: https://www.ufrgs.br/fce/wp-content/uploads/2017/02/TD14_2004_corazza_herrera.pdf Acesso em: 26 maio. 2023

Ecuador se pronuncia sobre situacion política em Perú. Disponível em: https://www.elcomercio.com/actualidad/politica/ecuador-pronunciamiento-situacion-politica-peru.html Acesso em: 7 maio. 2023

El presidente de Bolivia condena el “hostigamiento de elites” contra “Gobiernos populares” tras la crisis en Peru. Disponível em: https://www.europapress.es/internacional/noticia-presidente-bolivia-condena-hostigamiento-elites-contra-gobiernos-populares-crisis-peru-20221208032347.html Acesso em: 7 maio. 2023

Four Latin American nations back Castillo as Peru political crisis continues. Reuters.  Disponível em: https://www.reuters.com/world/americas/four-latam-nations-back-castillo-peru-political-crisis-continues-2022-08-13/ Acesso em: 6 maio. 2023

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JUNQUEIRA, Cairo. Os 70 anos da CEPAL e as Ondas de Regionalismo na América Latina. Observatório de Regionalismo. Disponível em: http://observatorio.repri.org/2018/03/05/os-70-anos-da-cepal-e-as-ondas-de-regionalismo-na-america-latina/ Acesso em: 8 junho. 2023

MOTTA, João Victor. As primárias e eleições legislativas colombianas: um déjà-vu sul-americano. Observatório de Regionalismo, 2023. Disponível em: http://observatorio.repri.org/2022/03/29/as-primarias-e-eleicoes-legislativas-colombianas-um-deja-vu-sul-americano/  . Acesso em: 10 maio. 2023.

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SANTOS ERICEIRA, R. C. dos. Do Pacto Andino à Aliança do Pacífico: reflexões sobre mecanismos da (des)integração da sub-região andina. Revista de História Regional, [S. l.], v. 26, n. 2, 2021. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/rhr/article/view/17271. Acesso em: 10 maio. 2023.

World Economic Outlook Database, April 2023.  International Monetary Fund.


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