Terça-feira, 17 de novembro de 1903. Petrópolis, Rio de Janeiro. José Maria da Silva Paranhos Júnior e Assis Brasil, do lado brasileiro, e Fernando Guachalla e Claudio Pinilla, do lado boliviano, assinam o Tratado de Petrópolis, resultado de um extenso processo de negociações diplomáticas entre a Bolívia e o jovem Brasil republicano, que dava os seus primeiros passos como uma nação sob o novo governo (pelo menos no plano teórico). O documento estabelece novos limites entre os territórios dos dois países, além da incorporação de um novo Estado ao território nacional: o Acre (MOURA, S.d.). A história do nascimento da unidade federativa ao extremo oeste do país é um dos primeiros atos do Brasil Republicano e perpassa por um panorama histórico marcado por tensões, envolvimento de agentes externos e o exercício das atribuições diplomáticas; portanto, é um capítulo de grande relevância para entender os caminhos percorridos pela recém-republicana Nação sul-americana.
Embora o Tratado de Petrópolis tenha sido assinado no terceiro ano do século XX, sua história tem raízes que se estendem algumas décadas antes desse marco, uma vez que é resultado de uma composição de questões sociais, econômicas, políticas e históricas que possibilitaram a pavimentação de um caminho que resultou no conhecido episódio de 17 de novembro de 1903. Na esfera social, o Brasil enfrentava um momento turbulento com o surgimento da campanha abolicionista, que mobilizou vastos setores da malha social da Nação. Nas últimas semanas de agosto de 1880, a questão da abolição entra em pauta constitucional, quando é fundada a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. A partir deste momento, começavam no Parlamento brasileiro, os debates sobre o projeto de libertação geral, apresentado pelo deputado pernambucano Joaquim Nabuco. Quatro anos depois, na Província do Ceará, negros são libertos como reação de uma incisiva pressão popular na região. Em 1877, o Brasil estava enfrentando uma série de desafios, incluindo a crescente insatisfação com a monarquia e o governo de D. Pedro II. Além disso, a Grande Seca que assolou a região entre 1877 e 1879 e as ações de grupos urbanos contribuíram para tornar o sistema de escravidão na região Nordeste ainda mais insustentável. É importante ressaltar que, no Ceará, a taxa de escravizados era notavelmente baixa, o que agravava a situação, pois a economia da região não dependia tanto da mão de obra escrava como em outras partes do país. Isso tornava a manutenção do sistema de cativeiro ainda mais difícil de justificar e sustentar. O abolicionismo, então, espalha-se pelo país como um movimento e atinge as províncias do Rio Grande do Sul, Amazonas, Goiás, Pará, Rio Grande do Norte, Piauí e Paraná. Nas grandes cidades, a escravidão perdia sua legitimidade. Paralelo a esses fatos, o Brasil, a partir da década de setenta, passou a incentivar um projeto de imigração em massa de trabalhadores para compor a força de produção das lavouras na região Sudeste. O paralelo estabelecido é importante para a compreensão do panorama, por ser a partir deste momento que, pela primeira vez, escravizados e assalariados passam a trabalhar em conjunto. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, entre 1871 e 1880 chegaram ao Brasil cerca de 219.000 imigrantes, enquanto na década seguinte o número eleva aos 525.000, e possuindo como seu ápice, o último decênio após a abolição, com um expressivo número de 1.013.000 imigrantes. Isso se deu pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil, com as exportações movimentadas pelas indústrias de cana, borracha, mas principalmente a cafeeira. Com isso, os custos gerados pelos escravizados se tornam obsoletos. Portanto, a Abolição não era mais um movimento de justiça social, mas sim uma forma de diminuir as despesas da elite da sociedade brasileira, estimulada pela necessidade da inserção do Brasil na economia mundial.
Foto: Acervo Gilberto Maringoni
Ilustração de Ângelo Agostinina Revista Illustrada nº 427, de 18 de fevereiro de 1886: denúncia crua da escravidão
A partir deste processo, pode-se compreender os caminhos traçados até o primeiro semestre de 1888 e as suas respectivas motivações. Em 13 de maio de 1888 é assinada a Lei Áurea. A proposta, constituída por apenas dois artigos, era considerada urgente e atendia a um desejo nacional dos senadores daquela época. O projeto foi encaminhado ao Congresso Nacional pelo governo imperial em 8 de maio de 1888. Em apenas dois dias, os deputados aprovaram o texto, que então seguiu para o Senado. No dia 13 de maio de 1888, os senadores votaram favoravelmente ao projeto, que foi prontamente encaminhado para a sanção da princesa imperial regente, a Princesa Isabel, que o assinou no mesmo dia. Ela substituiu Dom Pedro II, que estava afastado do cargo devido a problemas de saúde. Além disso, a lei teve que ser assinada também pelo Ministro da Agricultura da época, Rodrigo Augusto da Silva, uma vez que os escravizados eram considerados propriedade dos proprietários de terras. Contudo, após a abolição da escravidão no território nacional, nenhuma reforma foi realizada para integrar socialmente a população recém-liberta, resultando num grupo sem orientação adequada às novas regras da sociedade brasileira, agora baseada no trabalho assalariado. Após dezesseis meses, a Monarquia desaba aos olhos da história, substituída em 15 de novembro de 1889 por um sistema Republicano e Federalista. Mesmo com as transformações nas bases do Brasil, os ex-escravizados seguiam sendo discriminados e constituíam uma camada social pobre e marginalizada, sendo conhecidos como os ‘deserdados da República’. Sobre isso, o sociólogo Florestan Fernandes afirma:
A preocupação pelo destino do escravo se mantivera em foco enquanto se ligou a ele o futuro da lavoura. Ela aparece nos vários projetos que visaram regular, legalmente, a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, desde 1823 até a assinatura da Lei Áurea. (...) Com a Abolição pura e simples, porém, a atenção dos senhores se volta especialmente para seus próprios interesses. (...) A posição do negro no sistema de trabalho e sua integração à ordem social deixam de ser matéria política. Era fatal que isso sucedesse (FERNANDES, 1964, p. 30).
Com isso, os números de desempregados, trabalhadores temporários, mendigos e crianças abandonadas nas ruas cresceram no período em questão, o que gerou uma reação popular que foi duramente reprimida pelo governo brasileiro. Como um nítido exemplo, pode-se mencionar a perseguição promovida aos capoeiristas que praticavam aquela modalidade de luta pela cidade do Rio de Janeiro, a partir da década de 1890 (MARINGONI, 2011). Portanto, o cenário social que antecedeu o início das negociações do Tratado de Petrópolis é um panorama de um país que aboliu um sistema de escravidão por pressão de certa parte das elites, motivadas, quase integralmente, por razões econômicas, pondo a parcela da sociedade recém-liberta à margem, através da ausência de aparelhos na legislação que os assistissem, orientações e políticas de inserção social, além da dura perseguição que confirmava o tipo de Brasil que ali nascia: excludente, elitista e estruturalmente racista.
Já no contexto político da Nação, as últimas décadas do século XIX foram marcadas por transformações estruturais no país, com o fim do segundo reinado e da monarquia, em sua totalidade, sendo substituídas pelo nascimento da república, processo protagonizado pelo grupo político compreendido como republicanos. O declínio de D. Pedro II foi impulsionado pelos reflexos da crise econômica gerada pela Guerra do Paraguai (1864–1870), somado aos desgastes do império com os militares, a igreja e os cafeicultores, nos movimentos que a historiografia nomeou, respectivamente, de Questão Militar, Questão Religiosa e Questão Escravista. A deterioração da monarquia era acompanhada dos pensamentos positivista e republicano, que passaram a receber atenção e inspirar aqueles que não apoiavam o regime monárquico. Por mais que a propaganda republicana tenha começado a ser disseminada em território nacional, pouco se falava da mudança de regime político. Nas eleições de 1884 para a Câmara dos Deputados, somente três candidatos republicanos saíram vitoriosos, entre eles, Prudente de Morais e Campos Sales, os futuros presidentes da República. Na legislatura seguinte, apenas um republicano conseguiu obter um assento. Na última eleição parlamentar ocorrida no Império, em 31 de agosto de 1889, o Partido Republicano conseguiu eleger apenas dois Deputados. Frente ao insucesso da realização do projeto político pelo voto, os republicanos decidiram implementar as suas ideias via um golpe militar. Para tanto, procuraram capitalizar o crescente descontentamento das classes armadas com o governo civil do Império, surgida no momento de desgaste entre D. Pedro II e o Exército brasileiro. Porém, para concretizar seus planos, precisavam de um líder com prestígio suficiente na tropa. Foi desta forma que os republicanos começaram a aproximar-se do Marechal Deodoro da Fonseca, buscando o seu apoio para um golpe vigoroso contra o governo imperial. As primeiras conversas entre os republicanos e o Marechal foram difíceis, visto que Deodoro era um homem de convicção monarquista e que afirmava ser amigo do imperador — inclusive, afirmava dever favores à corte imperial. Em 14 de novembro de 1889, os republicanos espalharam o boato completamente infundado de que o governo do primeiro-ministro liberal Visconde de Ouro Preto havia decretado a prisão do marechal Deodoro. O objetivo era declarar uma república antes da instalação do novo parlamento recentemente eleito, com inauguração prevista para 20 de novembro. A falsa notícia de que a sua prisão fora ordenada foi o argumento decisivo que finalmente convenceu Deodoro a levantar-se contra o governo imperial. Na manhã do dia 15 de novembro de 1889, o Marechal reuniu vários soldados e marchou com eles em direção ao centro da cidade, rumo ao Campo da Aclamação, hoje Praça da República. Após adentrar no quartel-general, Deodoro decretou a demissão do ministério de Ouro Preto. Essa ação teve pouco impacto, uma vez que os próprios ministros, cientes dos eventos recentes, já haviam enviado um telegrama ao imperador, que estava em Petrópolis, no Rio de Janeiro, solicitando sua renúncia. Contudo, ninguém falou em declarar república, foi apenas uma mudança de ministério, e o próprio Deodoro chegou a gritar para as tropas formadas diante do comando geral: “Viva Sua Majestade o Imperador!”. Enquanto isso, D. Pedro II, que, diante da situação, havia descido ao Rio de Janeiro, reuniu-se com o Conselho de Estado no Paço Imperial, e ao ouvi-lo, decidiu aceitar a renúncia exigida pelo Visconde de Ouro Preto, e para organizar um novo ministério. Os republicanos precisavam agir rapidamente, aproveitar os acontecimentos e convencer Deodoro a cortar de uma vez por todas os laços com a monarquia. Eles utilizaram, mais uma vez, do mecanismo do boato para convencer o Marechal. Quintino Bocaiúva e o Barão de Jaceguai enviaram um mensageiro a Deodoro para informá-lo que o novo primeiro-ministro escolhido pelo imperador era Gaspar Silveira Martins, político gaúcho, com quem o marechal não concordava por serem rivais, pelo amor da mesma mulher em sua juventude. Então Deodoro estava convencido da derrubada do regime. Às três horas da tarde alguns republicanos e vereadores reuniram-se na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, foi lavrada uma ata declarando solenemente proclamada a república do Brasil, a qual foi entregue ao Marechal Deodoro. Algumas horas depois, já na noite daquela sexta-feira, o Imperador nomeou o conselheiro José Antônio Saraiva para presidir o novo ministério. O novo primeiro-ministro escreve ao Marechal informando-o da decisão do imperador, ao que Deodoro responde que já concordou em assinar os primeiros atos que estabelecem um regime republicano e federativo (Prefeitura de Marechal Deodoro, 2016.). Assim nasce, em 15 de novembro de 1889, a República Federativa do Brasil. É importante também mencionar que a partir deste momento, o país adotara o sistema federalista, que garante maior autonomia as antes chamadas províncias e agora, unidades federativas.
Marechal Deodoro da Fonseca, então, torna-se o primeiro presidente da história do Brasil, o ponto de partida de um período de transição política no país, que durou aproximadamente uma década. O governo foi dividido em duas partes: o provisório e o constitucional. O primeiro momento durou quinze meses, sendo marcado por intensas disputas pelo poder, acirrada entre grupos políticos como os liberais e positivistas, além de profundos debates gerados pela proposta de substituição e apagamento de antigos símbolos monárquicos por novos republicanos. Além disso, houve a extinção de instituições que operavam durante a monarquia no país, sendo substituídos por cargos administrativos do governo republicano, posições essas assumidas por figuras como Quintino Bocaiúva e Demétrio Ribeiro e Campos Sales. Outra característica importante referente ao primeiro momento do governo de Deodoro foi a prevenção a fragmentação da República. Já na fase constitucional do mandato, houve a promulgação de uma nova Constituição, em fevereiro de 1891. A Carta Magna estabeleceu uma república presidencialista com mandato presidencial de quatro anos sem reeleição, sufrágio universal masculino, exclusão de analfabetos, separação entre Igreja e Estado, e federalismo com autonomia para os estados brasileiros. Uma eleição presidencial indireta elegeu Deodoro da Fonseca como presidente (129 votos) e Floriano Peixoto como vice-presidente (153 votos). No entanto, o governo constitucional de Deodoro foi curto, encerrando-se em novembro devido a conflitos com o Legislativo, que se opunha a seu estilo ‘centralizador e autoritário de governar’. Os membros da Constituinte se tornaram parte do Congresso Nacional, e os desacordos com o Congresso levaram à queda de Deodoro, encerrando assim o mandato do primeiro presidente do Brasil republicano (História do Mundo, S.d.).
É importante frisarmos que foi no governo do Marechal que pudemos entender um dos antecedentes mais importantes do Tratado de Petrópolis: a crise econômica. A estagnação da economia brasileira foi fruto das ações adotadas por Rui Barbosa, enquanto Ministro da Fazenda do governo Deodoro. Conforme mencionado anteriormente, o Brasil havia experimentado recentemente a Abolição da escravidão em 1888, o que resultou na libertação de cerca de 700 mil pessoas. Como resultado desse processo abolicionista, a demanda por papel-moeda aumentou significativamente, o que contrastava com a situação da época, caracterizada por uma circulação monetária menor em comparação com a quantidade objetivada, motivando o ministro a buscar mudanças. Posto isso, em 17 de janeiro de 1890, foi aprovada a Lei Bancária (realizada sem o conhecimento do presidente). Com essa lei, Rui Barbosa permitiu que bancos privados pudessem emitir papel-moeda. O resultado foi catastrófico, uma vez que diversas sociedades anônimas surgiram no país neste período produzindo dinheiro, o que gerou uma inflação descontrolada, desvalorizando a moeda nacional; cenário que repercutiu até o governo de Prudente de Morais (terceiro presidente da República), onde a situação foi razoavelmente controlada (História do Mundo, S.d.).
Ainda no contexto dos anos iniciais da Primeira República, é de suma importância que destaquemos o papel indispensável do Ministério das Relações Exteriores (MRE), instituição do Estado com a responsabilidade de conduzir a política externa do país, por meio de negociações diplomáticas, comércio internacional e a representação do Brasil no cenário mundial. No início do período republicano houve importantes mudanças na diplomacia brasileira e no papel do MRE. Como exemplo disso, podemos mencionar o deslocamento do eixo diplomático brasileiro, anteriormente centralizado em Londres, na Inglaterra, para Washington, nos Estados Unidos da América. No eixo das relações bilaterais: dois anos após o fim da monarquia, em 1891, foi promovido o convênio aduaneiro, que permitia a livre entrada de produtos brasileiros nos EUA em troca de importações de itens norte-americanos; esses, com uma redução de 25% nas tarifas (Memória da Administração Pública Brasileira). Ainda no sentido das relações Brasil-Estados Unidos, a nomeação de Joaquim Nabuco como primeiro embaixador brasileiro na Nação norte-americana foi um sinal de prestígio e reconhecimento internacional. Nabuco, abolicionista, desfrutava de grande respeito e admiração em virtude de seu esforço em promover relações de destaque no contexto continental, visando a equilibrar o imperialismo europeu com a política expansionista do governo norte-americano, que refletia sua crescente influência no plano mundial (NABUCO, J. Joaquim Nabuco: embaixador - Volume 1. 1905-1907. Brasília: FUNAG, 2011).
Já no início do século seguinte, o então presidente da República, Rodrigues Alves, eleito em março e empossado em 15 de novembro, convida José Maria da Silva Paranhos Júnior — o Barão do Rio Branco — para assumir o cargo de Ministro das Relações Exteriores. Tendo aceitado o convite, Rio Branco chega ao Brasil em 1.º de dezembro daquele mesmo ano, capitaneando o MRE até 10 de fevereiro de 1912. São nos primeiros meses de exercício do seu mandato como Ministro que José Maria inicia sua atuação na negociação que resultou no Tratado de Petrópolis (MOURA, S.d.).
Antes de abordarmos propriamente o Tratado de Petrópolis, é importante destacarmos o último precedente, a fim de compreendermos plenamente o contexto social, político e econômico do Brasil naquele período: o ‘Primeiro Ciclo da Borracha’. Protagonizado no norte do Brasil, especialmente na região amazônica, porção do território que até então era isolada do resto do país, o ciclo trouxe notável prosperidade e desenvolvimento. A borracha, extraída das árvores seringueiras (Hevea brasiliensis) atraiu a atenção de mercados consumidores na Europa e nos Estados Unidos da América. A demanda da produção na região aumentou nas décadas que antecederam o início do século XX, gerando a necessidade de mão de obra para a heveicultura. Os operários vieram, em sua maioria, do nordeste, devido à seca que assolou a região entre 1877 e 1879. Em 1903, o governo brasileiro entrou em negociações com o governo boliviano, resultando na aquisição do controle do Estado do Acre, a cessão de territórios do Mato Grosso e o compromisso de construir uma ferrovia para o transporte da borracha — como resultado do Tratado de Petrópolis (LOPES, S.d.).
A partir de agora, temos um repertório histórico bem definido para abordarmos o tema central deste texto: O Tratado de Petrópolis. Iniciamos então com a seguinte questão: qual a relação direta entre o Ciclo da Borracha e o acordo supracitado? Para construirmos essa resposta precisamos voltar brevemente até 27 de março de 1867, data da assinatura do Tratado de Ayacucho, estabelecido entre o Brasil e a Bolívia.
O acordo propôs uma revisão a dois tratados anteriores, o Tratado de Madri (1750) e o Tratado de Santo Ildefonso (1777), responsáveis por redefinir os limites geopolíticos entre os dois países. É válido lembrarmos que a tecnologia disponível naquele momento não possibilitava a definição de marcos específicos na região amazônica, dificultando o processo de delimitação e abrindo margem para diversas reivindicações de ambos os lados. Segundo os documentos firmados pelas potências colonizadoras (Portugal e Espanha), a fronteira da Bolívia se estenderia até os estados do Mato Grosso, Acre e Amazonas. Os resultados do tratado beneficiaram os dois países, mesmo com questionamentos advindos dos bolivianos sobre a imparcialidade do acordo. A Bolívia, preocupada com o acesso a um porto marítimo devido a conflitos com o Chile, ampliou seu comércio com o Brasil e recebeu a promessa de construção da ferrovia Madeira-Mamoré para acesso ao Oceano Atlântico. O Brasil passou a adquirir produtos como fumo, quinino e estanho da economia seringalista na região. O Império Brasileiro reconheceu o território boliviano, exceto o Alto Madeira. No entanto, questões geográficas e ocupações por brasileiros levaram à disputa conhecida como a Questão do Acre no início do século XX (Curso Sapientia, 2022). Em resumo, o Tratado de Ayacucho trouxe benefícios como fronteiras definidas, fortalecimento de alianças e neutralidade boliviana na guerra com o Paraguai.
Entendido então o Tratado estabelecido entre Brasil e Bolívia, ainda na segunda metade do século XIX, podemos prosseguir na construção da resposta à indagação feita linhas acima. A região hoje compreendida como o estado do Acre estava sob interesse de três diferentes países: Brasil, Bolívia e Peru. Esse anseio pela porção de terra se dava pela riqueza de árvores seringueiras, que delas eram extraídos o látex, para a produção da borracha. É válido também lembrarmos que naquele momento já se vivia o primeiro Ciclo da Borracha no Brasil. Assim, conseguimos responder à pergunta estabelecida. Foi a partir da disputa entre os governos brasileiro, boliviano e peruano que o principal episódio interligado ao acordo ocorreu: A Revolução Acriana (1899–1903).
O conflito iniciou-se no último ano do século XIX, em 1899. Bolivianos que ocupavam a região foram expulsos e o governador do Amazonas, José Cardoso Ramalho Júnior (1898–1900), organizou a invasão do território, liderada pelo diplomata espanhol Luis Gálvez Rodríguez de Arias. Este, proclamou a República do Acre, em 14 de julho de 1899, tornando o território disputado em um Estado independente, que possuía como língua oficial o francês — da diplomacia (LOPES, S.d.). O Brasil, contudo, não reconheceu a declaração de Gálvez, mantendo o reconhecimento do território acriano como parte da Bolívia, ao contrário da Argentina, que reconheceu a legitimidade do Acre emancipado (LOPES, S.d.). Frente aos acontecimentos, a nação brasileira mobilizou tropas para a região com objetivo de dissolver a revolução. O governo boliviano reage logo em seguida, organizando uma expedição militar visando a conquista do território. Os seringueiros, que trabalhavam na região, que conseguiram impedir o avanço dos bolivianos no território. O novo governador do Amazonas, Silvério José Néri (1900–1903), enviou outra expedição de defesa que proclamou, pela segunda vez, o Acre como uma República. Brasileiros e bolivianos permaneceram em conflito pela região, levando à dissolução da segunda República Acreana em apenas um mês após sua declaração de independência. Em 1902, Silvério Néri enviou José Plácido de Castro, militar gaúcho, para retomar o território do Acre, dando início à Revolução Acreana. A expedição liderada por Castro teve sucesso ao conquistar rapidamente toda a região. Em 1903, a República do Acre foi declarada pela terceira vez, agora, com o apoio do presidente Rodrigues Alves e do Ministro das Relações Exteriores, o Barão do Rio Branco. O Acre foi então governado por um regime militar sob o comando do general Olímpio da Silveira (GARBINO, 2016). Os bolivianos tentaram resistir novamente, enviando tropas lideradas pelo general Pando. Para dar prova de seriedade, como demonstração de força, ordenou-se a mobilização de tropas federais em Mato Grosso e no Amazonas para que se deslocassem para o território do Acre. Assim, com essa articulada combinação de diplomacia e do uso do argumento militar, só restou ao governo da Bolívia retroceder. Em julho de 1903 a Bolívia consentiu em capacitar uma delegação para construir um tratado de permuta de territórios entre os dois países. Caso a comissão não conseguisse determinar um tratado de acordo direto entre as partes, o assunto seria levado ao arbitramento, tendo uma terceira Nação, esta como juiz (MOURA, S.d.). O local acertado para as negociações foi Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, honorável cidade imperial onde se encontravam as delegações estrangeiras no Brasil (LINS, 2010). No final do mesmo ano, em 17 de novembro, o tratado definitivo foi assinado — nomeado de Tratado de Petrópolis.
Maps ilustrando os interesses envolvidos na Guerra do Acre e suas fronteiras.
O processo de confecção do Tratado, contudo, não foi um ato simples, uma vez que desafiou as habilidades diplomáticas do Brasil, na figura do então Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco. Todas as atuações passadas de José Maria envolviam a decisão arbitral, de uma nação não envolvida no conflito que fornecia o veredito, no qual toda a argumentação era baseada em documentações históricas. Rio Branco, desde muito jovem, era um admirador e colecionador da cartografia, habilidade que herdou de seu pai, o baiano Visconde do Rio Branco, que desempenhou papéis de extrema relevância no Império, como Ministro das Relações Exteriores, Ministro da Fazenda e Presidente do Conselho de Ministros. Essa habilidade cartográfica foi fundamental para o sucesso de Rio Branco em todas as suas reivindicações realizadas em nome da Nação brasileira. No entanto, desta vez, o Barão não estava convencido de que o conflito poderia ser resolvido por meio de arbitragem, com base em documentos históricos, uma vez que o território em questão nunca fora formalmente reconhecido como brasileiro (MOURA, S.d.). Era uma questão envolvendo populações dos dois lados, bem como interesses internacionais advindos de empresas que detinham direitos de exploração econômica na área.
Durante o processo de confecção do tratado, os anseios da Bolívia, dos investidores e das empresas, sobretudo dos Estados Unidos da América e do Reino Unido, pelo monopólio da Borracha, motivaram Rio Branco a estabelecer duas estratégias para evitar o choque militar com o seu vizinho sul-americano. Numa delas, ele conseguiu o apoio da Casa dos Rothschild em Londres, uma instituição financeira com laços históricos com o Brasil, para os banqueiros poderem intermediar um acordo com o Bolivian Syndicate, de Nova Iorque. A operação foi bem-sucedida, pois os americanos aceitaram uma indenização de 110 mil libras esterlinas para desistir do acordo, o que enfraqueceu o lado do governo de La Paz. A segunda era mostrar à Bolívia que o Brasil estaria mesmo disposto a ir à guerra em defesa do povo extrativista do Acre, devido à impossibilidade de o governo do Rio de Janeiro permanecer inerte se a opinião pública tivesse conhecimento de que os seringueiros estavam sendo expulsos da região por meios armados. Frente às ações do Ministro, um respeitável apoiador da perspectiva do Barão publicou um elogio na imprensa: 'Temos um Homem no Itamaraty”. Ainda no contexto das negociações do Tratado, o princípio apoiado pelo Brasil em sua reivindicação contra a Bolívia foi o mesmo utilizado pelos portugueses na época dos tratados de 1750 e 1777, assinados entre o Reino de Portugal e o Reino de Espanha, para resolver suas disputas fronteiriças na América Ibérica, o preceito de uti possidetis solis. Do lado brasileiro estava Ruy Barbosa e depois o gaúcho Assis Brasil, que o substituiu, enquanto a Bolívia foi representada pelo senador Fernando Guachalla e pelo ministro Cláudio Pinilla. O primeiro de seus dez artigos afirmava: “Do rio Beni, na sua confluência com o Mamoré (onde começa o rio Madeira), para oeste, você seguirá a fronteira ao longo de um paralelo traçado a partir de sua margem esquerda em 10º20" até encontrar as nascentes do Rio Javari”. Os negociadores do Tratado, conjuntamente com o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, acordaram que o Brasil compensaria a Bolívia com 2 milhões de libras esterlinas em troca de um território que incluiria não apenas o baixo Acre (142 mil km²), mas também o alto Acre (48 mil km²), rico em florestas e reservas de seringais. A questão é que eles assinaram um contrato de arrendamento com os Estados Unidos e tiveram que pagar uma multa rescisória (CURADO, 2023). O Brasil também se comprometeu a entregar em troca algumas áreas da fronteira com Mato Grosso, num total de 3.164 km, e também a iniciar a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, com 400 km de extensão, que possibilitaria o escoamento de produtos bolivianos até a região de Mato Grosso e o consequente acesso à bacia do Prata através do Rio Paraguai (promessa feita pela primeira vez em 1867) (MOURA, S.d.). As negociações entre os bolivianos e os brasileiros, iniciadas em julho de 1903, terminaram quatro meses depois com a assinatura solene do Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903. Tornou-se uma das maiores vitórias diplomáticas do Brasil: sem a eclosão da guerra e a expansão do território de quase 200 mil km², que foi entregue a 60 mil seringueiros e seus familiares para realizarem a extração da borracha. O Tratado gerou divergentes opiniões no país, dividindo as argumentações referentes ao acordo e suas consequências benéficas e maléficas ao Brasil e a Bolívia. Contudo, apesar das críticas, o tratado foi aprovado pelas duas câmaras do Congresso Nacional por ampla maioria e rapidamente aprovado pelo presidente Rodrigues Alves em 18 de fevereiro de 1904. Concomitantemente com o acordo, foram também sancionados o Decreto n.º 1.180, de 25 de fevereiro de 1904, autorizando o Presidente da República a abrir empréstimos necessários à cobertura de despesas antecipadas, e o Decreto n.º 1.181, do mesmo dia, autorizando o Presidente a administrar temporariamente o território do Acre. Com este segundo decreto, pela primeira vez na história nacional, foi criado um território administrado diretamente pelo governo federal sem estar contido em nenhum estado da Federação (MOURA, S.d.).
Fonte: Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural da Fundação Elias Mansour
Após a aprovação do Tratado e sancionado os Decretos, houveram uma série de transformações no Brasil. A primeira delas foi a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, tendo seu último trecho concluído em 30 de abril de 1912 (WANDERLEY, 2018), sendo inaugurada em 1.º de agosto do mesmo ano, considerada posteriormente a mais isolada ferrovia do planeta. O seu processo de construção chama atenção devido à multiplicidade de nacionalidade dos operários, além da abundância de óbitos por doenças como malária, beribéri, sarampo, pneumonia, disenteria, febre-amarela e outras. Além da mão-de-obra internacional, tivemos uma grande presença de indígenas e nordestinos compondo o time de trabalhadores, de acordo com Carolina Pena de Alencar, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), onde a borracha foi gradativamente se territorializando na região amazônica (Portal do Governo do Estado de Rondônia, 2021). Dessa ferrovia, que o Brasil possuiu prazo de quatro anos para sua construção, utilizou ambos os países com direito às mesmas franquezas e tarifas (Tratado de Petrópolis, 1903). A competição para definir a empresa que iria materializar a fabricação da estrada ferro foi vencida pelo engenheiro Joaquim Catrambi. Devido a acordos firmados entre ele e o empresário Percival Farquhar, designou-se a empresa Madeira-Mamoré Railway Company para a administração da ferrovia, fundada por este último. Inaugurada em 1912, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) só gerou lucro entre 1912–1914, fato justificado pela redução do envolvimento brasileiro no mercado da borracha, devido aos seringais, que cresciam na Ásia, através das sementes contrabandeadas pelo botânico inglês Henry Wickham, em 1876. As colônias inglesas na Malásia e na África progrediam com o extrativismo, gerando um produto final mais barato, concebendo numa concorrência feroz (LOPES, S.d.). Frente a isso, as atividades de Farquhar na Amazônia entraram em falência. Aluízio Pinheiro Ferreira, em 1937, a mando do então Presidente Getúlio Vargas, adquiria a direção da ferrovia até 1966 (WANDERLEY, 2018.). Entre 1943 e 1946 ele governava o Território Federal do Guaporé. Em 1º de julho de 1972, por um decreto do general Emílio Garrastazu Médici, enquanto ocupava a presidência, a EFMM foi definitivamente desativada (Governo do Estado de Rondônia, 2021). Ainda na ótica das transformações, o Acre cresceu com a atividade da heveicultura, sendo adotado como um Estado integrante do Brasil em 1962.
Construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
A cidade de Rio Branco, no Acre, tem uma história que remonta a 1912, quando recebeu o nome definitivo em homenagem aos feitos — dissertados nesse texto — do ilustre chanceler brasileiro Barão do Rio Branco. Ela se tornou um município no ano seguinte, em 1913, e em 1920, foi designada como a capital do governo do Acre. Foi somente em 1962 que Rio Branco alcançou a posição de capital do estado. Banhada pelo rio Acre, que divide a cidade em dois distritos, conhecidos como 1º e 2º distritos, Rio Branco é hoje o epicentro administrativo, econômico e cultural da região, além de ser a cidade mais populosa do estado, abrigando mais da metade de sua população (PIRES, 2005; DA NOBREGA, 2005).
Em suma, após perpassados por mais de 160 anos de história do Brasil, pudemos observar como os cenários político, social e econômico afetaram a diplomacia brasileira e como esses precedentes se revelaram indispensáveis para entender a organização do país durante a Revolução Acriana e o processo de negociação do Tratado de Petrópolis. Após entendermos todo o panorama envolvendo o acordo, visualizamos o papel heroico de José Maria da Silva Paranhos Júnior, que defendeu bravamente os interesses brasileiros, a soberania nacional e evitou uma guerra que ceifou muitas vidas em ambos os lados da questão. José Maria prestou com excelência as atribuições de um diplomata, e sobretudo, de um Ministro das Relações Exteriores. O Barão do Rio Branco deixa um legado de inspiração, sendo uma das figuras mais emblemáticas do início da era republicana brasileira, mas que, mesmo após quase dois séculos de história, permanece intacto como o homem-símbolo da diplomacia nacional. Oficialmente instituído, desde 1945, patrono da diplomacia brasileira, Rio Branco também empresta seu nome ao instituto que, desde 1946, forma os membros da carreira de diplomata do serviço exterior brasileiro (Instituto Rio Branco — IRB) (MOURA, S.d.). A famigerada terça-feira de 17 de novembro de 1903 é um marco para a diplomacia nacional, e a história do Brasil, em sua totalidade, e é um símbolo de prevalecimento da diplomacia frente a emergência de um conflito bélico. O autor deste texto que vos fala, encerra sua dissertação com a esperança de que as lições de José Maria da Silva Paranhos Júnior sirvam como exemplo de que o diálogo deve sempre prevalecer sobre a violência.
REFERÊNCIAS:
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