DO ORIENTALISMO À ANCESTRALIDADE INDIGENA: UMA LEITURA PÓS-COLONIAL DE DUNA PARTE 2
- nuriascom
- 4 de jun.
- 5 min de leitura
Por: Alan Vítor Araújo Menezes e Maria Luiza dos R. G. C. Bitencourt
INTRODUÇÃO
Em um universo distópico, no qual a civilização humana dominou a viagem intergalática, o novo sistema é regido pelo imperador e pelas 12 Grandes Casas, que são responsáveis por ocupar os planetas e garantir a sobrevivência humana. É neste cenário que se passa a saga Duna. No primeiro filme conhecemos as casas Harkonnen e Atreides, que entram em guerra pelo direito de explorar o planeta Arrakis, essencial dentro do universo do filme por conter a tão disputada “especiaria”. No fim, a família Atreides é aniquilada por Harkonnen, sobrando dois sobreviventes, o jovem mestre Paul Atreides e sua mãe Jessica, integrante das Bene Gesserit, ordem matriarcal que opera na política do imperium a fim de atingir objetivos próprios.
Partindo desse contexto, “Duna: Parte 2” vai acompanhar a jornada de Paul Atreides após se juntar aos Fremen, grupo rebelde da população de Arrakis que luta contra a colonização de seu planeta. Em busca de vingança pela casa de Atreides, Paul encontra-se em uma complexa disputa de poder, na qual precisa escolher se vai assumir seu papel como Lisan Al Gaib, equivalente a um “Messias”, ou continuar com o papel de guerreiro fremen.
A RELAÇÃO COM O PÓS-COLONIALISMO
Ao longo da história, o colonialismo é um elemento central pelo qual a trama se desenvolve: a ocupação de Arrakis pelos Harkonnen não deixa dúvidas sobre esse fato. Entretanto, entre diálogos e elementos simbólicos, o filme consegue apresentar uma forma mais profunda do colonialismo e como ele se instaura na sociedade.
A profecia do Lisan Al Gaib e toda a religião dos Fremen é um exemplo da colonização desse povo. Durante ambos os filmes da saga, a crença no Lisan Al Gaib é confirmada como uma crença instaurada pelas Bene Gesserit naquele planeta para ajudar os Harkonnen na extração de especiarias em Arrakis. É dito em diversos momentos da história que as habilidades de Paul não se devem a alguma interferência mística, mas a um plano secular realizado pelas Bene Gesserit. Entretanto, a religião instaurou-se de forma tão profunda na sociedade Fremen que a região Sul do planeta, que tem menos contato com o imperium, é dominada pela ala “fundamentalista” da religião.
Além disso, dentro da comunidade das Grandes Casas, predomina uma visão de inferioridade sobre o povo Fremen. Em diversos momentos do filme ocorrem diálogos nos quais os Fremens são denominados “ratos” ou figuras a serem dominadas , criando a impressão de haver um “eu” das casas do imperium e um “outro” pertencente aos Fremens. A recíproca também é verdadeira: logo no início do primeiro filme, no monólogo da personagem Chani, ela se refere aos Harkonnen como “estrangeiros” e mais tarde, durante o segundo filme, ela volta a usar esse termo para se referir a Paul Atreides.
A criação de uma narrativa que coloque um povo acima do outro, a criação ou catequização de uma religião e o domínio de um povo pela força, são características do colonialismo muito questionadas pelas teorias pós-coloniais das Relações Internacionais. A criação de um “eu” do imperium e um “outro” Fremen também é um fator muito questionado nessas teorias, principalmente por Edward Said.
Em “Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”(1978), Edward Said vai discursar justamente sobre como a Europa conseguiu construir sua identidade a partir da criação do “outro” oriental. A partir da criação de narrativas e sobre a “inferioridade” dos orientais, a Europa foi capaz de construir um discurso de superioridade e criar uma identidade oposta e supostamente superior a do “outro” oriental, a qual se perpetua mesmo com o fim da colonização.
AS ESPECIARIAS E A ANCESTRALIDADE DOS POVOS TRADICIONAIS
A maneira como a economia e sociedade de Arrakis funcionam se assemelha bastante à relação de exploração de recursos naturais existente no mundo real contemporâneo. De propriedades únicas, a especiaria é um recurso encontrado no solo de Arrakis. Ela expande as habilidades mentais e sensoriais daqueles que a consomem, assim como contribui para a prolongação da vida. Além dos benefícios medicinais e psicoativos, a especiaria é utilizada como combustível, o que promove uma aptidão para navegações interestelares, sendo essa característica essencial para a economia e política do universo.
Apesar de ser uma commodity bastante demandada pelo universo, a extração da especiaria agrega na degradação do solo do planeta, afetando negativamente na fauna e na flora local, além de acarretar em processos de deslocamento territorial e, no pior dos cenários, no genocídio da população Fremen. Paralelo a isso, tem-se o processo conflituoso dos povos indígenas da Amazônia contra a exploração de suas terras por mineradoras e madeireiras, uma questão que se intensificou no Brasil nos últimos anos devido às políticas governamentais permissivas.
Em Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Ailton Krenak descreve como os povos indígenas, ao longo dos séculos, resistiram às tentativas de erradicação por parte dos colonizadores, que os consideravam "bárbaros" e tentaram impor a eles o modelo civilizatório europeu. Ele ressalta que muitas dessas culturas não se viam como indivíduos, mas como "pessoas coletivas", profundamente conectadas à Terra e à ancestralidade (Krenak, 2019). Essa conexão é perceptível na narrativa do filme, pois, assim como o povo indígena para com os colonizadores, ela é utilizada pelos Fremen como um mecanismo de resistência contra a extração violenta e excessiva da especiaria pelos Harkonnen ao manter viva a tradição profética do Messias que trará a natureza de volta à Arrakis.
CONCLUSÃO
Em suma, o filme Duna Parte 2, vista sob a ótica das Relações Internacionais e dos estudos pós-coloniais, revela uma alegoria complexa sobre os mecanismos de dominação colonial. Através da exploração da especiaria em Arrakis, da manipulação religiosa orquestrada pelas Bene Gesserit e da construção dicotômica entre o "eu" imperial e o "outro" Fremen, a narrativa expõe as estruturas de poder que perpetuam a subjugação de povos e territórios. A profecia do Lisan al-Gaib, enquanto dispositivo de controle, e a desumanização dos Fremen pelas Grandes Casas, ecoam diretamente as críticas de Edward Said ao orientalismo, onde a identidade do colonizador é consolidada mediante a invenção de um sujeito inferiorizado.
Paralelamente, a degradação ambiental e o deslocamento forçado em Arrakis refletem conflitos contemporâneos, como a resistência indígena na Amazônia brasileira frente à exploração predatória, realidade que Ailton Krenak associa à persistência de epistemologias coloniais que negam a conexão entre seres humanos e território.
Conclui-se, portanto, que a obra transcende a ficção científica ao mostrar como o colonialismo se reinventa através do controle ideológico, da violência epistêmica e da economia extrativista, oferecendo um instrumental crítico para repensar as dinâmicas de poder no mundo real.
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