O que a fala racista de Alberto Fernández nos diz sobre raça na política internacional.
A noção de “genocídio” emprestada de Abdias Nascimento (2016) compreende, em linhas gerais, um refinado e sistemático processo de sujeição e extermínio sociocultural. Essa asfixia deliberada de grupos políticos, raciais ou culturais inúmeras vezes reproduziu-se nas relações sociais da América Latina como violentos mecanismos de repressão dessas populações. Lélia Gonzalez (1988), referindo-se aos instrumentos dessa política emergida das sociedades ibéricas e transpostas às suas colônias, coloca que se desenvolveu um modelo de dominação primordialmente ancorado ao ideário do branqueamento. Como consequência, ecos dessa herança racista e xenofóbica transbordam a história e ainda se fazem protagonistas de declarações recentes como aquela do presidente da Argentina, Alberto Fernández.
No último dia 9, o mandatário argentino afirmou: "Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós, argentinos, viemos de barcos. Barcos que vinham da Europa, e assim construímos nossa sociedade". A frase que corrobora a invisibilização das populações não brancas — erroneamente atribuída ao Nobel de Literatura Octavio Paz, mas que em verdade é letra de uma canção de Litto Nebbia — foi proferida em uma tentativa desastrada de mostrar aproximação entre argentinos e europeus na ocasião da visita do chefe de governo espanhol, Pedro Sanchéz, à Buenos Aires. A repercussão negativa dentro e fora do país sulamericano desvelou as bases de um europeísmo internalizado a partir da política de apagamento que marcou o quadro étnico-racial argentino desde o século XIX.
Enquanto projeto, o “desaparecimento” dos negros e dos descendentes ameríndios legitimou-se tanto nas esferas científica e intelectual, quanto na política a partir da incorporação de teorias e doutrinas raciais europeias — como o positivismo, o evolucionismo e o darwinismo social. No caso dos afro-argentinos, a instrumentalização desses processos se deu a partir do fato de que as condições de aquisição da alforria e o subsequente processo de abolição estavam diretamente ligados ao serviço militar e a inserção nas linhas de frente de combates armados; em uma “política da morte”. Outrossim, o intenso fluxo migratório europeu, estimulado por políticas públicas à época, estava intrinsecamente atrelado às noções de progresso e civilização que se construíram e seguem no imaginário argentino.
Com efeito, o cientista social Marcelo Moreira (2010) expõe que, em 1853, a parcela branca da população argentina correspondia a aproximadamente 3% — compondo um cenário predominantemente marcado por afrodescendentes, indígenas e outros —, enquanto que cerca de sessenta anos depois esse número alcançava os esmagadores 95%. Impactos do branqueamento desse quadro étinico-racial estão postos no censo demográfico mais recente, de 2010, que identifica a disparidade latente de 149.493 afrodescentes para um total de 40.117.096 argentinos. Dos que se autoidentificam como indígenas ou descendentes dos povos originários, os dados se aproximam de um milhão que seguem resistindo e reivindicando seus espaços e memória.
A discussão suscitada pela frase de Fernández resgata a recorrência desse tipo de comentário — em 2018, outro presidente argentino, Macri, pronunciou um posicionamento escancarado de invisibilização das populações não brancas ao dizer que “na América do Sul, somos todos descendentes de europeus”. A natureza dessas falas nada menos é que sintomática da marginalização e segregação étinico-cultural constantemente autorizada e absolvida de qualquer culpa. Como comentou a ativista mapuche Moira Millán acerca de toda a situação, “o negacionismo como política de Estado foi e é genocida”.
Raça e racismo, nesse sentido, se entrelaçam no tecido das relações nacionais e internacionais — nas dinâmicas e disputas de poder — e mais do que simplesmente questões domésticas, se constituem, não em perspectiva, mas em traço fundamental do ordenamento político no mundo. A colonialidade do poder continua a moldar os desígnios dos Estados e a se fazer inexoravelmente presente na política interna e externa, mas ainda assim é majoritariamente secundarizada na análise do cenário internacional. Mais que isso, tal postura reforça toda uma lógica de opressão através da relação intrínseca entre as diferentes classificações sociais — para utilizar o termo de Patricia Hill Collins (2019), corrobora com uma matriz de dominação. Passar pelo entendimento de que as questões raciais, parafraseando Malcom X, não se limitam a uma problemática de direitos civis domésticos, mas extravasam para a seara internacional dos direitos humanos é premente para o desenvolvimento de soluções similarmente globais. Em última instância, pensar os múltiplos e cotidianos genocídios étnico-raciais a partir de um lugar das relações internacionais — e em uma conjuntura cada vez mais vertiginosamente interconectada no espaço-tempo — é não obstar a verdade, a justiça e, sobretudo, a memória, que no âmago do “apesar” se faz resistência.
Kayanne Simões.
REFERÊNCIAS
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