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Educação no Brasil: Força para o Desenvolvimento ou Projeto de Poder?


Guilherme Uzêda - CECIDES




No contexto global, a educação é amplamente reconhecida como um dos principais pilares para o desenvolvimento socioeconômico de uma nação. Ela não apenas capacita indivíduos com habilidades e conhecimentos necessários para participar ativamente da economia e da sociedade, mas desempenha um papel crucial na promoção da igualdade de oportunidades e no fortalecimento dos alicerces para um futuro mais sustentável. No entanto, no caso brasileiro, essa dinâmica se desenrola em um cenário complexo e com diversas nuances, permeado por desafios históricos e estruturais.

Ao longo da história do Brasil a educação foi alvo de atenção, especialmente em momentos-chave de transformação, seja de forma positiva ou negativa. Figuras como  Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes destacaram a importância da educação como um instrumento de transformação social e como um meio para a construção de uma identidade nacional sólida e inclusiva. Entretanto, apesar do reconhecimento retórico de sua importância, a implementação efetiva de políticas educacionais abrangentes e de longo prazo tem sido desafiadora. Neste texto, proponho uma análise sobre a seguinte questão: historicamente, o Estado brasileiro reconhece e promove a educação como ferramenta essencial para impulsionar o desenvolvimento nacional ou utiliza da educação a fim de sistematizar  desigualdades?

Tradicionalmente no Brasil, as classes dominantes exercem um papel hegemônico na formulação e implementação de políticas educacionais que refletem seus próprios interesses, em detrimento das classes mais desfavorecidas. Durante o período colonial, por exemplo, a educação era reservada às elites coloniais, com acesso restrito à população indigena e negra, que eram subjugadas e exploradas. A criação das primeiras instituições de ensino no Brasil Colônia servia principalmente para a formação de uma elite letrada que pudesse manter o status quo e legitimar o sistema de exploração colonial. 

Após a independência, a educação continuou a ser utilizada como instrumento de controle e dominação. O acesso à educação formal era limitado e altamente segmentado, perpetuando as desigualdades sociais existentes.

Já durante o período da ditadura militar, nas décadas de 1960, 1970 e 1980, a educação foi frequentemente utilizada como instrumento de propaganda e controle ideológico. O regime militar promoveu uma educação voltada para a formação de uma mão-de-obra dócil e despolitizada, sem espaço para o pensamento crítico e a reflexão de injustiças sociais, muitas vezes fazendo uso de práticas e ideologias importadas dos Estados Unidos. Essa manobra de esvaziamento das políticas educacionais fica ainda mais evidente quando figuras como Paulo Freire são perseguidas, presas e exiladas. Especificamente no caso de Freire, a perseguição foi institucionalizada, com o Estado brasileiro declarando o educador como “inimigo do povo brasileiro”, “subversivo” e “inimigo de Deus”, termos descritos pelo próprio Freire no programa Matéria Prima, da antiga TV Cultura onde participou de uma . Em 1963, o educador desenvolveu um método de ensino com base em assimilação acelerada, onde em um exercício de 45 dias, ensinou 300 cortadores de cana a ler e escrever, mas além desse ensino rápido, esse método visa habilitar o aluno a “ler o mundo”, seguindo a expressão popularizada pelo próprio Patrono da Educação Brasileira. Essa experiência é uma mostra de como Paulo Freire tinha objetivos e concepção de educação e mundo completamente contrários aos do regime ditatorial vigente nesse período.

Mesmo depois da redemocratização, as políticas educacionais continuaram a refletir os interesses das elites dominantes, com investimentos insuficientes na educação pública e uma crescente tendência de privatização do ensino, provocando o surgimento do maior conglomerado de educação particular do mundo, o grupo Kroton, que engloba empresas como Unopar, Anhanguera, Ampli, Pitágoras, Uniderp, Unic e Unime. Essa realidade é agravada pela falta de recursos adequados, má gestão, corrupção e inúmeras tentativas de desestruturar projetos e iniciativas importantes na área da educação, como os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Idealizado por Darcy Ribeiro e com estrutura física desenvolvida por Oscar Niemeyer, os CIEPs foram um pilar da política educacional do governo de Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro em 1983. A ideia consistia em ser um sistema de educação integral onde os alunos estariam envolvidos em aulas do currículo escolar, teriam acesso a refeições e participavam de atividades de cunho cultural. Essa esquematização tinha como objetivo também impactar na segurança pública, afastando os jovens da sedução da atividade criminosa nas comunidades mais pobres. Os governos posteriores de Moreira Franco, Marcello Alencar, Anthony Garotinho e Rosinha Garotinho descontinuaram e desvirtuaram completamente a proposta original por motivos de divergência política e para atender interesses do capital privado.

Esses desafios coletivos de origem política e econômica refletem uma crise sistêmica que compromete o acesso equitativo à educação de qualidade e mina os esforços para promover um desenvolvimento educacional abrangente e inclusivo. Esse processo é descrito na famosa frase “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” (Darcy Ribeiro, 1977). Enquanto esse projeto persistir, será difícil alcançar um desenvolvimento verdadeiramente inclusivo e sustentável no país.

Embora também hajam avanços e conquistas significativas ao longo das últimas duas décadas, como a expansão do acesso à educação básica, o aumento do número de matrículas em instituições de ensino superior e maior participação de negros e indígenas dentro do processo educacional brasileiro, ainda há muito a ser feito. Ainda assim, é necessário reconhecer que essas conquistas foram alcançadas mediante processos que não estão isentos de críticas. Por exemplo, a expansão do acesso à educação básica muitas vezes ocorreu de forma quantitativa, sem garantir a qualidade do ensino oferecido. Escolas superlotadas, falta de infraestrutura adequada e deficiências na formação de professores são apenas algumas das questões que comprometem a eficácia do sistema educacional brasileiro. Da mesma forma, a maior participação de negros e indígenas no processo educacional é um avanço importante na luta contra a exclusão e o preconceito. No entanto, é fundamental reconhecer que esses grupos ainda enfrentam inúmeras barreiras no acesso à educação de qualidade, desde a falta de representatividade nos currículos até a discriminação dentro das próprias instituições de ensino. Atentando-se para essas e outras questões, fica claro que o desafio de garantir uma educação de qualidade e inclusiva para todos os brasileiros deve permanecer como prioridade urgente, especialmente à luz dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela ONU, especificamente o ODS 4, ponto de partida desse texto e que visa assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. Ao revisar a literatura acadêmica, é possível aprofundar a compreensão sobre como a educação foi historicamente tratada pelo Estado brasileiro e como isso influenciou o desenvolvimento socioeconômico do país. Os trabalhos de Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes são especialmente relevantes nesse contexto. Darcy Ribeiro, por exemplo, em suas obras “Nossa Escola é uma Calamidade” (1984) e “Educação como Prioridade” (2018), destaca como a educação foi historicamente utilizada como ferramenta de dominação e exclusão no Brasil. Ele argumenta que as elites dominantes controlam o acesso à educação como forma de manter seu status privilegiado na sociedade e perpetuar as desigualdades socioeconômicas. Já Florestan Fernandes, por sua vez, em obras como "A Revolução Burguesa no Brasil" (1974) e "A Sociologia no Brasil" (1980), analisa as estruturas sociais e políticas que moldaram o sistema educacional brasileiro. Ele destaca como as políticas educacionais foram historicamente influenciadas pelos interesses das elites dominantes, que priorizavam uma educação voltada para a reprodução das hierarquias sociais existentes.

Ambos os autores ressaltam a importância da educação como instrumento de transformação social e como um meio para superar as desigualdades históricas no Brasil. No entanto, eles também apontam as limitações e contradições das políticas educacionais implementadas pelo Estado ao longo do tempo, que muitas vezes reproduzem e reforçam as injustiças sociais em vez de combatê-las.

Ao revisar a literatura desses e de outros autores, podemos aprofundar nossa compreensão sobre como a educação foi historicamente utilizada no Brasil, seja como uma ferramenta para promover o desenvolvimento socioeconômico inclusivo, seja como um mecanismo para perpetuar desigualdades. Essa análise crítica nos permite contextualizar melhor o papel da educação na sociedade brasileira e identificar possíveis caminhos para uma abordagem mais equitativa e transformadora no futuro.

Indiscutivelmente, a educação tem sido mais uma ferramenta de manutenção de desigualdades do que um motor do desenvolvimento nacional. As políticas educacionais refletem, em grande medida, os interesses das elites dominantes em perpetuar sua posição privilegiada na sociedade. Nesse sentido, é notável a influência de instituições privadas, como a Fundação Lemann, que é uma organização sem fins lucrativos ligada à família Lemann, mas que atua politicamente de forma ativa e se faz presente na construção de políticas educacionais em todo o Brasil. Essa abordagem suscita uma visão de educação mais voltada para as demandas do mercado, resultando em uma educação segmentada, onde a ênfase em competências técnicas em detrimento de uma formação mais ampla e humanística, limita o desenvolvimento integral dos estudantes e os restringe-os a papeis e ocupações específicas, em vez de prepará-los para uma participação ativa e crítica na sociedade, ocasionando no enfraquecimento não só da economia a longo prazo, mas também limitando a sociedade a permanecer nesse mesmo modelo político-mercadológico falido.

Para resolver essa questão, é fundamental uma mudança radical na forma como encaramos a educação. Isso implica em uma visão mais abrangente e comprometida com a equidade e a inclusão, alinhada com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 - Educação de Qualidade. Isso implica na urgência de mudar o modelo de governança política e estruturar práticas mais sustentáveis no campo educacional. Invés de focar apenas em resultados quantitativos, devemos priorizar uma abordagem holística, que reconheça a diversidade de experiências e necessidades dos alunos, algo muito distante da relação que se tem com a educação neste momento no país. Uma solução mais profunda requer investimentos significativos não apenas em infraestrutura, mas também na formação e valorização dos profissionais da educação. Salários dignos, condições de trabalho adequadas e oportunidades de desenvolvimento profissional são essenciais para atrair e manter talentos no sistema educacional. Além disso, devemos repensar o currículo escolar, tornando-o mais inclusivo e relevante para a realidade dos alunos. Segundo Freire, a educação deve ser libertadora, permitindo que os alunos desenvolvam uma consciência crítica de sua realidade e se tornem agentes ativos na transformação de sua própria sociedade. Para alcançar esse objetivo, é fundamental que o currículo escolar incorpore uma diversidade de perspectivas e experiências, especialmente aquelas relacionadas às questões sociais, culturais e ambientais do Brasil. Darcy Ribeiro, por sua vez, destacou a importância de uma educação que valorize a diversidade cultural e étnica do país, reconhecendo e respeitando as diferentes identidades e saberes presentes em nossa sociedade. Para ele, a escola deve ser um espaço de encontro e diálogo entre as diversas culturas que compõem o Brasil, contribuindo para a construção de uma identidade nacional plural e democrática. 

Portanto, repensar o currículo escolar à luz dos princípios de Freire, Ribeiro e outros tantos brasileiros que pensaram sobre educação partindo do brasil, implica em uma mudança de paradigma, onde a sala de aula deixa de ser uma simples reprodução de conhecimentos para se tornar uma experiência significativa e transformadora. Isso requer uma abordagem pedagógica que promova a participação ativa dos alunos, estimulando o pensamento crítico, a criatividade e a autonomia. Ao deixar de lado as visões de consenso transatlântico, que muitas vezes são alienantes e descontextualizadas para a realidade brasileira, deve-se buscar construir uma educação mais autêntica e emancipadora, que contribua para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.

A participação da comunidade é fundamental para garantir que as políticas educacionais atendam verdadeiramente às necessidades locais. Isso é especialmente evidente nos conselhos escolares, que continuam a desempenhar um papel crucial no cenário educacional. Os conselhos escolares são espaços democráticos onde pais, alunos, professores e membros da comunidade se reúnem para discutir e decidir questões relevantes para a escola e a educação local. Através dos conselhos, a participação ativa da comunidade é facilitada, proporcionando uma ampla variedade de perspectivas e experiências. Essa diversidade de vozes é essencial para garantir que as políticas educacionais sejam inclusivas e representativas das necessidades e valores locais. Além disso, os conselhos escolares promovem a transparência e a prestação de contas, assegurando que as decisões tomadas sejam transparentes e alinhadas com o interesse público. Isso contribui para uma gestão mais eficaz dos recursos educacionais e para o fortalecimento da confiança entre a escola e a comunidade.

No contexto da economia do conhecimento, a educação desempenha um papel crucial. Em uma economia cada vez mais baseada no conhecimento, o acesso à educação de qualidade é essencial para capacitar indivíduos a participarem plenamente da sociedade e contribuírem para o desenvolvimento econômico. Portanto, investir na educação não é apenas uma questão de justiça social, mas também uma estratégia econômica inteligente.

Países e cidades do Sul Global têm reconhecido cada vez mais a importância da qualificação do conhecimento para impulsionar seu desenvolvimento econômico. Um exemplo notável é Kerala, na Índia, que priorizou a educação e a alfabetização como parte de sua estratégia de desenvolvimento. Como resultado, Kerala alcançou altos níveis de alfabetização e um capital humano bem qualificado, o que contribuiu significativamente para seu progresso social e econômico. Outro exemplo é Singapura, que investiu pesadamente em educação nas últimas décadas, transformando-se em um centro global de inovação e tecnologia. A ênfase do governo em uma educação de qualidade resultou em uma força de trabalho altamente qualificada e em um ambiente favorável para negócios e investimentos.

 Ao adotar essas medidas, é possível vislumbrar a transformação da educação em uma genuína força motriz para o desenvolvimento nacional, proporcionando oportunidades equitativas de aprendizado e crescimento para todos os brasileiros. Contudo, essa jornada rumo à excelência educacional é obstaculizada por um cenário político marcado por interesses individuais e disputas por poder, que frequentemente comprometem a implementação de políticas educacionais eficazes. Diante desse panorama, é crucial reconhecer a necessidade premente de aprimorar o capital político e reformar o modelo de governança política. Urge uma mudança substancial na maneira como as decisões são concebidas e executadas, promovendo a transparência, a participação democrática e a prestação de contas em todos os níveis de governo. Somente por meio desse esforço conjunto e da superação dos desafios políticos será verdadeiramente possível catalisar a educação como um instrumento de transformação social e garantir que deixe de ser uma ferramenta para a perpetuação do poder das classes dirigentes do Brasil.










REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Gigantes da educação. Disponível em: <https://istoe.com.br/294090_GIGANTES+DA+EDUCACAO/>. Acesso em: 20 abr. 2024.


‌RIBEIRO, D.; LÚCIA VELLOSO MAURÍCIO. Educação como prioridade. São Paulo: Global Editora, 2018.


RIBEIRO, D. Nossa escola é uma calamidade. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984.


FLORESTAN FERNANDES; JOSÉ DE SOUZA MARTINS. A revolução burguesa no Brasil : ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2008.


XAVIER, Libania Nacif. Educação e Cultura para a Democracia em Darcy Ribeiro. Revista Interinstitucional Artes de Educar, [S. l.], v. 3, n. 2, p. 31–46, 2017. DOI: 10.12957/riae.2017.31709 


SALLES, F. C. A educação pública no Brasil: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro. Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB, [S. l.], n. 12, 2013. Disponível em: https://www.serie-estudos.ucdb.br/serie-estudos/article/view/575. Acesso em: 10 abr. 2024.


Paulo Freire - Ministério da Educação. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/paulo-freire#:~:text=O%20educador%20sofreu%20persegui>. Acesso em: 13 maio. 2024.


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1 Comment


João Marcelo
João Marcelo
May 14

Bela reflexão! Um assunto que realmente vale a pena ser discutido, e que claramente necessita de mais atenção no Brasil.

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