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Pedro Vivas | Observatório Internacional

Eleições na Nicarágua: Entendendo a polêmica por trás de mais um mandato de Daniel Ortega.

No dia 7 de novembro de 2021 foi confirmado o resultado de mais uma eleição na Nicarágua: Daniel Ortega foi reeleito com 75% dos votos e cumprirá seu quarto mandato consecutivo na presidência, quinto no total. Contudo, o resultado da eleição está sendo contestado, com diversos países considerando-a ilegítima.


Daniel Ortega | Foto: EFE/ Jorge Torres

Para entender o contexto da eleição deste ano e começar a compreender um pouco a situação política que a Nicarágua atravessa, é importante voltar um pouco no tempo. Em 2007, quando Ortega foi eleito para o seu segundo mandato como presidente (o primeiro foi de 1984 a 1990), o artigo 147 da Constituição da Nicarágua proibia a reeleição consecutiva e a candidatura ao cargo de presidente depois de dois mandatos em momentos diferentes. Porém, em 2009, a Suprema Corte do país decidiu que o artigo não era mais aplicável – o que abriu espaço para Ortega se candidatar nas eleições de 2011. Mas as mudanças não pararam por aí.

Em 2013 Ortega conseguiu aprovação de uma reforma constitucional que alterou duas coisas importantes no processo eleitoral: o presidente seria eleito em apenas um turno com a maioria dos votos e um candidato poderia tentar a reeleição por tempo indeterminado. Além disso, mais um detalhe foi adicionado nessa reforma: o presidente poderia despachar decretos com força de lei.

Com essas mudanças o governo de Ortega passou interferir diretamente no processo democrático e, consequentemente, demonstrar uma face autoritária. O autoritarismo de Ortega só aumentaria, principalmente com a eclosão de protestos em 2018.

Após diversos decretos durante os anos que criaram sistemas de repressão, diminuição da liberdade de expressão e violência policial, em conjunto com diversas medidas políticas e econômicas controversas, principalmente por uma reforma no Sistema de Previdência Social, a população nicaraguense tomou as ruas em 2018 para protestar contra o longo termo de Ortega.

Os protestos na capital do país, a cidade de Manágua, foram combatidos com uso da força policial, deixando mortos e capturando presos políticos em praticamente todos os dias que os protestantes iam às ruas. Além disso, a vice-presidente e esposa de Ortega, Rosario Murillo, convocou seus apoiadores a irem às ruas também, para defender o presidente e a reforma da Previdência Social, que era o tópico mais discutido pela oposição. É importante destacar também que Murillo foi a principal porta-voz do governo durante as manifestações, enquanto Ortega se manifestava pouco ou, em alguns momentos, não dava nenhum tipo de pronunciamento.

Contudo, isso apenas gerou mais conflito e diversos embates entre apoiadores e opositores. Com a cidade de Manágua sendo sitiada pela Polícia Federal, os protestos mudaram para outras cidades, como Granada, Estelí e Masaya, sem muito sucesso na tentativa de fugir da violência. Nos protestos que duraram de abril a setembro de 2018, pela contagem da Associação Nicaraguense pelos Direitos Humanos (ANPDH), cerca de 545 pessoas morreram durante as manifestações, 4533 feridos, além de diversos desaparecimentos, captura de presos políticos e exilados.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), se manifestou durante e após a onda de protestos, denunciando o uso de força desproporcional policial e conivência com grupos paramilitares. O Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) responsabilizou o governo da Nicarágua por "assassinatos, execuções extrajudiciais, maus tratos, possíveis atos de tortura e prisões arbitrárias". Os Estados Unidos, sob presidente Trump, sancionou o Nica Act, que colocou os EUA a frente para restringir medidas financeiras internacionais conceder assistência financeira ou técnica ao governo da Nicarágua e de desenvolver políticas para empréstimos futuros que promovam o desenvolvimento humano direitos no país.

A própria OEA fez o seu pronunciamento em julho de 2018, a partir da aprovação de uma resolução que pedia ao presidente Ortega a antecipação a eleição para março de 2019, com aprovação de 21 dos 34 membros ativos da Organização. O Brasil votou a favor, enquanto apenas Nicarágua, Venezuela e São Vicente e Granadinas votaram contra. O texto da resolução da OEA condenava o uso de força policial e paramilitar pelos atos de violência e pede ao governo que atue no diálogo nacional de boa fé. Ortega não realizou a antecipação das eleições. A CIDH, em entrevista ao g1, listou algumas das práticas ilegais cometidas pelo regime de Ortega, citando “uso arbitrário de força letal e não letal que resultou em violações dos direitos à vida e à integridade pessoal; execuções extrajudiciais; detenções arbitrárias; invasões e ameaças de retaliações; maus tratos; criminalização de pessoas que exercem o que deveriam ser direitos democráticos, por meio de centenas de processos judiciais sob acusações infundadas e desproporcionais, como terrorismo ou crime organizado; irregularidades nas garantias judiciais e no acesso à justiça

Com a situação sociopolítica na Nicarágua explicada sumariamente, podemos entender por que o clima das eleições de 2021 era de tensão. Mas, logo após a onda de protestos, Ortega compreendeu que vencer eleições democráticas seria muito difícil por conta de impopularidade que ele tinha criado com a população durante 2018. Então, com os seus decretos com força de lei, começou a despachar diferentes leis, como a Lei de Defesa e Direito dos Povos à Independência, estabelecida em 2020, determinando que não poderão se candidatar a cargos eleitorais “aqueles que pedirem, exaltarem ou comemorarem a imposição de sanções contra o Estado da Nicarágua”, sendo considerados traidores da pátria e expostos a infrações penais. Leis como essa tinham a finalidade de tirar a possibilidade de forte candidatos da oposição se candidatarem à presidência, prendendo-os ou até os exilando.

A partir disso, desde junho deste ano, Ortega considerou três partidos ilegais e prendeu 39 ativistas políticos, empresários e jornalistas, incluindo todos os sete pré-candidatos à presidência que eram oposição ao seu governo - Cristiana Chamorro, Félix Maradiaga, Juan Sebastián Chamorro, Medardo Mairena, Miguel Mora, Arturo Cruz e Noel Vidaurre – com alegações de que esses eram traidores da pátria. Cristiana Chamorro, que seria uma das favoritas à presidência nas eleições deste ano, foi detida com acusações de "administração abusiva, falsidade ideológica e lavagem de ativos". Segundo o CID-Gallup, empresa de pesquisa situada na Nicarágua, cerca de 65% da população teria a intenção de votar em um dos sete pré-candidatos presos, enquanto Ortega só teria 19% da intenção de votos. Ortega e Murillo, que mais uma vez era a vice, tinham os maiores índices de rejeição, com 64% de opiniões desfavoráveis.

Com todos os seus opositores políticos presos, Ortega organizou uma eleição “de fachada” para manter as aparências de democracia, onde todos os seus adversários foram colaboradores escolhidos ou aprovados por Ortega e Murillo para participar do processo eleitoral. O Conselho Supremo Eleitoral do país apontou que cerca de 65% da população votante compareceu às urnas, enquanto o estudo independente Urnas Abertas afirmou que apenas 18,5% da população votante foi, de fato, votar no dia 7. Esse conjunto de situações resultou na reeleição de Ortega e Murillo com 75% dos votos contados.

A comunidade internacional já começou a se pronunciar sobre o fato. O presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, emitiu sanções unilaterais contra a Nicarágua, prevendo restrição de crédito internacional e barreiras para emissão de vistos. Na América do Sul, o Ministério das Relações Exteriores argentino emitiu uma nota que defende a democracia ao citar que “reiteramos nossa preocupação diante da detenção de líderes opositores, assim como a necessidade de que o governo nicaraguense garanta o respeito dos direitos humanos de toda a população”, mas que irá manter a "tradição democrática de não ingerência em questões internas de outras nações”. O Brasil, fora o seu voto de apoio no texto da OEA, não se pronunciou sobre a questão.

A OEA estabeleceu que a eleição não conteve “legitimidade democrática”. O texto aprovado por 25 dos 34 membros afirma que uma avaliação coletiva imediata acontecerá, a ser concluída até 30 de novembro, para que medidas sejam tomadas pela organização –incluindo uma possível suspensão da Nicarágua da OEA. Dos membros, México, Honduras, Bolívia, São Vicente e Granadinas, Santa Lúcia, Belize e Dominica se abstiveram na votação. A embaixadora mexicana Luz Elena Baños citou que “a experiência mostra a ineficácia das políticas de isolamento”, enquanto o embaixador da Bolívia, Héctor Arce, insistiu que a nota é intervenção em assuntos internos de outros países. A União Europeia (UE), em uma declaração parecida com a nota da OEA, julgou que não existiam garantias democráticas na eleição, em que o país completou o processo para se tornar um regime autocrático, fazendo um pedido para que Ortega libere todos os presos políticos e anules os seus processos judiciais. Josef Borrell, o Alto Representante para Política Exterior da UE, deixou claro que a UE pode adotar medidas restritivas que podem ser mais limitantes que as individuais.

Antes de Daniel Ortega chegar à presidência pela primeira vez em 1984, lutou e foi preso por ser contrário à ditadura de Anastasio Somoza Debayle, na qual ele e seu partido conseguiram derrubar em 1979. De lá para cá, perdendo diversas eleições, Ortega se viu necessitado a fechar acordos com o ex-presidente Arnoldo Alemán, onde conseguiu abaixar o limite mínimo para eleição de um candidato para 35% - Ortega foi eleito com 38% no ano seguinte. Hoje, Ortega já é o quarto líder com a maior quantidade de tempo no poder na América Latina - sendo o primeiro na Nicarágua, ultrapassando a ditadura que ele mesmo ajudou a derrubar.

É importante que a comunidade internacional se junte para restituir a democracia na Nicarágua, mas, de forma mais importante, saiba lidar com essa questão sem prejudicar mais ainda os verdadeiros protagonistas dessa história: a população nicaraguense.


Referências


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