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Isadora Melo

Golpe militar no Mali: uma celebração ou um grito de desespero?

Isadora Melo



Enquanto a pós-modernidade ocidental aclama a democracia como regime político possível, em 18 de Agosto de 2020 os malineses celebram um Golpe Militar em praça pública da capital Bamako, golpe que gerou o sequestro e renúncia do presidente Ibrahim Boubacar Keita e chamou atenção de importantes organizações como a União Europeia o Conselho de Segurança a CEDEAO e a França. No entanto a celebração civil é um grito de desespero e não uma comemoração ao militarismo.


O Mali está localizado em uma das regiões mais pobres da África, o Sahel, composto por Estados instáveis que não possuem controle de suas crises internas, marcados por incessantes conflitos comunitários fruto das demarcações fronteiriças da descolonização, e esconderijos de radicais Islâmicos Jihadistas. Por esse motivo foi criado o G5 Sahel, uma instituição de coordenação e cooperação regional para o desenvolvimento e segurança da África Central, que nos últimos anos tem focado bastante em operações de combate ao terrorismo que tem crescido principalmente no Níger, Burkina Faso e no norte do Mali. Esse combate vem recebendo a ajuda de países como Estados Unidos, Alemanha e França, que mantém tropas de combate na região. Importante ressaltar que os países europeus e a União Europeia possuem uma preocupação particular em relação ao tema, devido à proximidade do continente Europeu com o Sahel, temendo que o Sahel se torne uma base de envio de milícias Islâmicas para Europa e o Mali (um país supostamente estratégico para isso), pois há ali esconderijos e bases jihadistas ligadas a Al-Qaeda, no norte da região, que já tentam dominar grupos étnicos violentamente para além das fronteiras daquele país.


O Mali já vinha experimentando instabilidades em seu território, como conflitos intercomunitários, com destaque nas populações de Dagom, Peul e Bambora, que são ora vítimas - ora autores dos conflitos, pois o crescimento populacional, os diversos casos de corrupção no governo, a falta de empregos (o que leva jovens a entrarem para organizações terroristas, uma vez que essas pagam salários altos) e atentados terroristas contra a população, incluindo muçulmanos moderados são frequentes no país. Com a chegada da pandemia foi intensificado o sentimento de insatisfação da população com o governo de Keita, afirmando que além de corrupto, aquele governo não é capaz de lidar com a crise do país. Mesmo em meio à pandemia, no entanto, o governo manteve as eleições de março e o Tribunal Constitucional anulou a eleição de trinta e um parlamentares eleitos – opositores ao governo - e permitiu que os aliados de Keita ganhassem dez cadeiras no parlamento, dando a ele clara vantagem. Como consequência a população foi às ruas se manifestando a favor da retirada de Keita do poder. Segundo o portal da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, a própria organização planejava a deposição de Keita do poder de maneira constitucional, mas não agiram a tempo pois em dezoito de agosto de 2020 uma junta militar sequestrou o primeiro ministro e o presidente, fazendo Keita renunciar ao poder, o que fez o golpe militar ser comemorado por grande parte da população civil do país que, conforme previamente informado, já se encontrava bastante insatisfeita com o governo.


Esse é o quarto golpe militar sofrido pelo Mali desde sua independência da França, em 1960, sendo o terceiro o que tomou corpo em 2012, antecedendo o governo de Keita, no qual Mali passava por uma situação semelhante à atual. Outra situação que vale a pena ser considerada, foi a tentativa de independência do território de Azawad no norte do Mali, liderada pelos povos nômades e muçumanos Tuaregues divididos em dois grupos o MNLA (Movimento Nacional de Libertação da Azawad) e o Ansar Dine (que diferente do MNLA, não luta pela independência mas pela introdução da Sharia - lei Islâmica no país). Importante ressaltar que a introdução da Sharia é o objetivo de maioria dos grupos extremistas não só no Mali, mas em outros países do continente africano, pois as milícias se aproveitam da fragilidade e instabilidade desses Estados para tentar tomar o poder. Foi nesse contexto específico que Keita subiu ao poder - democraticamente e com o apoio do ocidente. Ele apresentou propostas de estabilização da crise no país e de combate ao terrorismo e inicialmente conseguiu resultados positivos, com o recebimento de tropas estrangeiras (com destaque nas francesas) para ajuda no combate ao terrorismo e com a assinatura do Acordo de Argel, de 2015, que propôs um cessar-fogo no norte do Mali. Com o tempo, no entanto, a crise interna do país apenas se agravou e as tropas francesas foram criticadas por má coordenação e ineficiência no combate ao terrorismo.


França a potência ex-metrópole do Mali e da maior parte do Sahel é o país que mais demonstrou inquietação com o golpe militar, solicitando - juntamente com o Níger - uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU um dia depois do golpe. Tal preocupação se materializa por conta dos interesses político-econômicos que o país tem na região, já que o Mali é, em termos geoestratégicos, muito importante para a França, uma vez que de sua fronteira com o Níger vem o urânio que a multinacional francesa Areva explora (levando em consideração que 86% da energia gerada na França é produzida por usinas nucleares). A importância geoestratégica do Mali advém também de sua proximidade com a Argélia, de onde sai o gás natural que abastece a França. Além, no entanto, dos entraves já citados, a França teme que o golpe incite outros grupos militares ou terroristas na região do Sahel a tentarem tomar o poder inspirando-se no Mali, o que levaria a França (e outros governos ocidentais) a perder parte da sua influência junto às ex-colônias.


A União Europeia, a ONU, a União Africana e a CEDEAO já declararam total rejeição ao golpe e pediram a retomada o mais rápido possível da ordem constitucional. Dentre essas Organizações se destaca a CEDEAO, que conseguiu durante negociações se impor à decisão da Junta Militar de estabelecer um governo de transição de três anos, fazendo eles diminuírem para dois anos. Ainda insatisfeita com a decisão da Junta de estabelecer um governo de transição, a CEDEAO impôs embargo ao comércio e às transações financeiras do Mali, mas de acordo com o jornal alemão Deutsche Welle, o líder militar da junta Assimi Goitá já afirmou que não está preocupado com a agenda da CEDEAO e que o assunto deve ser resolvido pelo Mali. A própria oposição malinesa (M5-RFP), que era inicialmente a favor da junta militar, agora está contra afirmando que essa está em busca dos interesses militares e não mais do interesse da população do Mali.


O quarto golpe militar do Mali não foi uma surpresa mas sim uma das consequências de anos de crise. As Organizações Internacionais que foram tão rápidas em rejeitar o golpe não foram mais rápidas do que a junta militar em agir contra ou com o presidente Keita, que se mostrava incapaz de lidar com a crise que já durava anos. Os terroristas por outro lado não fizeram nenhuma declaração até o momento, mas as tropas francesas continuam combatendo-os por interesses muito além da paz. Ao fim, a população que outrora comemorava não parece ser mais a única prioridade da junta militar pois a junta que tomou o poder declarando que iria devolvê-lo para os civis, agora planeja colocar militares no poder também, dando vazão as dúvidas óbvias de que esse regime militar talvez não seja tão diferente de todos os outros regimes militares.


Isadora Silva Melo



REFERÊNCIAS :


Entenda a crise no Mali. BBC NEWS. 2012 . Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/04/120406_mail_entenda> Acesso em: 14/09/2020


Mali foi a votos apesar da Covid-19. Deutsche Welle. 2020.

Mali: Militares propõem Governo de transição por dois anos com PR civil ou militar. Deutsche Welle. 2020. Disponível em < https://www.dw.com/pt-002/mali-militares-prop%C3%B5em-governo-de-transi%C3%A7%C3%A3o-por-dois-anos-com-pr-civil-ou-militar/a-54905142> Acesso em: 15/09/2020

Movimento de protesto do Mali rejeita plano de transição proposto pela junta militar. ISTOÉ. 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/movimento-de-protesto-do-mali-rejeita-plano-de-transicao-proposto-pela-junta-militar/> Acesso : 15/09/2020

Movimento opositor oferece colaboração a junta militar no Mali para transição.ISTO É DINHEIRO, 2020. Disponível em: < https://www.istoedinheiro.com.br/movimento-opositor-oferece-colaboracao-a-junta-militar-no-mali-para-transicao/ > Acesso em 15/09/2020



NARANJÓ, José. Golpe de Estado no Mali força presidente a renunciar após meses de instabilidade. EL PAIS 2020. Disponível em:<https://brasil.elpais.com/internacional/2020-08-19/golpe-de-estado-no-mali-forca-presidente-a-renunciar-apos-meses-de-instabilidade.html> Acesso em 14/09/2020



ORIOL, Planas. Energia nuclear na França. 2012-2019. Disponível em: < https://pt.energia-nuclear.net/situacao/energia-nuclear-france.html> Acesso em:17/09/2020

SCHWIKOWSKI,Martina. “Mali: Como será a transição depois do golpe de Estado?”. 2020. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/mali-como-ser%C3%A1-a-transi%C3%A7%C3%A3o-depois-do-golpe-de-estado/a-54931352> Acesso: 14/09/2020


Te, W. P. (2014). Golpe de Estado: um entrave à democracia, o caso de África Ocidental. Conjuntura Internacional, 11(2), 92-106. Recuperado de http://200.229.32.43/index.php/conjuntura/article/view/7398



ZECA, Emílio J.. África Ocidental: Histórico de Golpes de Estado, Instabilidade Política e Paz Precária. REVISTA CIENTÍFICA DO ISCTAC, [S.l.], v. 3, n. 7, jan. 2017. ISSN 2519-7207. Disponível em: <http://www.isctac.ac.mz/revista/index.php/revistacientifica/article/view/61>. Acesso em: 18 set. 2020.


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