Stephany Santana
Pedro Frauches
No panorama das relações internacionais e da economia global, poucos fenômenos têm sido tão interessantes e significativos quanto a ascensão da China do final do século XX até os dias atuais. Um país que, em poucas décadas, transitou de uma economia predominantemente agrária para uma potência industrial e tecnológica de alcance global. Desde as reformas no setor agrícola, que liberaram forças produtivas e transformaram a relação campo-cidade, até a industrialização acelerada e a criação de Zonas Econômicas Especiais, cada aspecto merece ser examinado para entender como a China conseguiu transformar sua economia e sociedade de maneira tão eficaz e rápida. Essas políticas não apenas remodelaram a economia chinesa, mas também tiveram um impacto profundo na estrutura social e na distribuição de renda (MILARÉ, 2011). Os pressupostos do pensamento econômico neoliberal de tripé macroeconômico e papel reduzido da participação do estado na escala produtiva encontram desafios para explicar o atual estado da China considerando os resultados obtidos com políticas contrastantes ao modelo, intuito deste texto é examinar o enigma do desenvolvimento chinês em contraste com as políticas recomendadas pelo Consenso de Washington
O líder do Partido Popular Chinês, Xi Jinping, tem ressaltado a importância de promover e preservar uma economia política de matriz marxista, reformulada para atender às demandas e aproveitar os recursos do século XXI na China. Frequentemente, o modelo adotado pela China é caracterizado como um novo keynesianismo ou até neoliberal devido a abertura de mercado e as ZEEs (Zonas Econômicas Especiais). Em oposição a essas interpretações, autores como Cheng Enfu afirmam que“os principais ganhos de desenvolvimento recentes do país são as conquistas de avanços teóricos na economia política, originados na própria China’’(ENFU; XIAOQUIN, 2017. 1 p.) .
O governo que mudou o rumo da China com a gradativa abertura de mercado foi o de Deng Xiaoping (1978 - 1990) que alinhou o partido popular chinês que passavam por instabilidade após a morte de Mao Tse Tung, conciliando as alas do partido em prol de uma agenda econômica de teor tecnocrático que mantivesse a centralização da economia chinesa ao mesmo tempo que promovesse a modernização do país, criando assim o socialismo com características chinesas ou o “socialismo de mercado’’. A industrialização foi possível devido a um grande controle sobre o câmbio do país alinhado à abertura comercial e à criação de uma pequena elite industrial nacional, o câmbio fixo permitia que estrategicamente a indústria nacional em formação fosse protegida pelas taxas alfandegárias, ao mesmo tempo que o fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) na China aumentava em decorrência do câmbio desvalorizado, significando uma grande oportunidade para empresas estrangeiras em busca de menor custo de produção:
Essa combinação foi articulada por uma política industrial que determinou uma elevação da capacidade produtiva atrelada à expansão dos investimentos estrangeiros diretos: de US$ 4,3 bilhões em 1991 para US$44,3 em 1997. No início da década de 2000, um novo salto de qualidade é percebido na economia chinesa com a ampliação da política de substituição de importações, agora nos novos setores ligados à indústria mecânica pesada(...)desde então amplas políticas industriais direcionadas para os setores de ponta da economia têm sido elaboradas e implementadas. Combinadas com uma política cambial ativa, elas evitaram que o país se tornasse mais uma maquiladora do tipo mexicano e rompesse a fronteira prebischiana da antiga condição periférica, entrando no centro do sistema(JABBOUR et al., 2021. 148 p.)
Isso é claro contraria o tripé macroeconômico e o consenso de Washington que entende a austeridade fiscal e câmbio flutuante como saída para o desenvolvimento. As lacunas do modelo ortodoxo de pensamento econômico criam solo fértil para a ideia de que o desenvolvimento chinês então seria fruto da exploração de mão de obra barata e análoga a escravidão. Apesar de ser inegável as condições de trabalho precárias, principalmente nas ZEEs, a análise ocidental estava, e ainda está, muito limitada pela comparação salarial, generalizante e cega ao fato de que aquelas condições de trabalho eram comuns em toda periferia internacional, incluindo a periferia dos países desenvolvidos (ALMEIDA. 2003). Tendo estes fatores em mente é importante refletir o sucesso das políticas econômicas não com fatores absolutos mas com perspectiva histórica de dados, segundo pesquisa da Financial Times em 2017, o salário médio chinês era maior do que toda a América Latina, fora o Chile, e estava perto de se equiparar ao de economias mais fracas da Europa como Portugal.
Na China, as empresas estão gradualmente se voltando para investimentos em automação de processos industriais, devido ao aumento dos custos da mão de obra, advindos da elevação da expectativa salarial, fruto do crescimento econômico. Embora ainda sejam moderados em comparação com os países industrializados, houve um aumento significativo nos salários dos trabalhadores na indústria de transformação, especialmente entre 2006 e 2014, com um aumento de 66%, que superou o aumento médio da economia de 54%, de acordo com o IEDI, 2018. Essa pressão salarial está incentivando as empresas a investirem em máquinas automatizadas para reduzir a dependência de mão de obra humana em algumas indústrias, como a produção de vestuário.
A abertura do mercado Chinês feita por Deng Xiaoping em 1978, o investimento estrangeiro e as ZEEs são os fatores apontados por pensadores como o marxista David Harvey de que a China teria adotado parcialmente reformas neoliberais, o autor afirma que houve uma transição do pensamento Mao Tse Tung para o capitalismo de Estado do período Deng, marcado pelo controle de setores estratégicos da ação do capital privado na exploração e criação de desigualdade proveniente das flexibilizações causadas pelas reformas (Harvey, 2008). Em contrapartida, Milton Friedman e os Chicago Boys, os grandes promotores do pensamento neoliberal, não sugerem apenas de presença do setor privado, mas sim a demissão do Estado do setor produtivo já que, além de insuficiente, a mera presença deste causaria distorções de mercado nocivas ao desenvolvimento (Friedman, 1993). O fato é que em 2004 a China ocupava 15 colocações da “Fortune 500’’, classificação das 500 maiores corporações em todo o mundo, conforme medido por sua receita, sendo 14 estatais, em 2013 o número cresce para 95 e em 2023 o número salta para 142 sendo grande maioria estatais ou participação majoritária do Estado chinês se concentrando principalmente em setores como petróleo e gás, energia e telecomunicações.
Portanto, o Estado como elemento ordenador das estratégias de desenvolvimento social e econômico, mostra-se como uma causa do crescimento econômico súbito, em meio a seus projetos nacionais, destacam-se os investimentos em tecnologia e a sofisticação nas exportações. Em seguimento, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), em sua pesquisa sobre a Indústria 4.0 na China, o qual discute a ascensão da "Manufatura Inteligente", destaca o esforço da China para alcançar a paridade dos modos de produção com países industrializados, assim empregam políticas e contratos de transferência obrigatória de tecnologia. Em destaque estão a impressão 3D, biotecnologia e nanotecnologia. No entanto, entre os desafios, estão a dependência de importações deste recurso, a necessidade de melhorar a produtividade e a automação de processos industriais.
O enigma chinês é complexo e alencar sua posição é motivo de debate principalmente entre as esquerdas já que mesmo com as falas oficiais do líder do país sobre o alinhamento claro com o marxismo como visto no 20º congresso do Partido Comunista Chinês (PCCh) em que afirma que é “a ideologia orientadora fundamental sobre a qual nosso Partido e nosso país são fundados e prosperam” as contradições ainda são aparentes devido a existência de ilhas de capitalismo que contrastam com a ideologia do partido. A linha de pensamento ortodoxo enxerga como uma vitória do mercado mas fica pouco claro, conforme podemos ver, até que ponto é possível entender desta forma quando abrimos uma visão panorâmica da economia chinesa, indicando que o neoliberalismo é insuficiente para explicar uma economia que se encontrava na periferia do capital mas agora atua no centro.
A China já é o maior parceiro comercial da maioria dos países do mundo, seu produto interno bruto (PIB) chinês já alcançou os US$13 trilhões, conforme a redação de 2017 da “Agência do Senado” (Senado Notícias). Em 2015, suas exportações chegaram a US$2,3 trilhões. Neste sentido, a estratégia chinesa aumenta, cada vez mais, sua relevância no cenário internacional, a exemplo da importância na produção de semicondutores, internacionalização de inteligência, melhoramento da qualidade de seus produtos, perceptível até mesmo no Brasil se compararmos com produtos das últimas décadas. O país socialista com abertura neoliberal, como nomeia o especialista em China, Felipe Mendonça, em entrevista ao “Chutando a Escada”, podcast episódio 327, está no processo de transição para uma economia mais avançada baseada no conhecimento, onde começam a bater recordes, fruto de uma ascensão projetada pelo Estado.
Referências
ALMEIDA, A. Desemprego e precarização das condições de trabalho nos países avançados: Mestre em Economia Social e do Trabalho—Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 25 jun. 2003.
CHAGAS, R. Para o presidente chinês, economia política marxista é a base do crescimento do país. Notícias. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/08/16/para-o-presidente-chines-economia-politica-marxista-e-a-base-do-crescimento-do-pais>. Acesso em: 14 nov. 2023.
CHINA2BRAZIL. 142 empresas chinesas entram na lista Fortune Global 500 de 2023. Notícias. Disponível em: <https://exame.com/negocios/142-empresas-chinesas-entram-na-lista-fortune-global-500-de-2023/>. Acesso em: 14 nov. 2023.
CLÁUDIA TREVISAN. Folha de S.Paulo - Capitalismo vermelho: China ainda tem 159 mil empresas estatais - 25/07/2004. Noticias. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2507200416.htm>. Acesso em: 14 nov. 2023.
Chutando a Escada. "Como a China subiu a escada?." Disponível em: https://chutandoaescada.com.br/2023/10/23/chute-327/. Acesso em: 12 de Nov. 2023
ENFU, C.; XIAOQUIN. Monthly Review | A Theory of China 's ‘Miracle’. Monthly Review, 1 jan. 2017. Disponível em: <https://monthlyreview.org/2017/01/01/a-theory-of-chinas-miracle/>. Acesso em: 11 nov. 2023
FRIEDMAN, M. Why Government Is the Problem: Volume 39. 1st edição ed. Stanford, Calif.: Hoover Institution Press, 1993.
HAN, J. Chinese wage growth is soaring. Disponivel em: https://www.ft.com/video/566dc6b8-db59-38b9-b5ce-07205c76626c. Acesso em: 13 de Nov. 2023
HARVEY, D. O neoliberalismo: História e implicações. 5a edição ed. [s.l.] Edições Loyola, 2008.
IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial)." Indústria 4.0 – A iniciativa Made in China 2025. Disponível em: https://iedi.org.br/cartas/carta_iedi_n_827.html. Acesso em: 12 de Nov. 2023
Senado Notícias. "China consolida protagonismo na economia mundial, avaliam analistas." Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/06/05/china-consolida-protagonismo-na-economia-mundial-avaliam-analistas#:~:text=A%20China%20j%C3%A1%20%C3%A9%20o,comercial%20de%20US%24%20600%20bilh%C3%B5es. Acesso em: 12 de Nov 2023
JABBOUR, E. et al. China: o Socialismo do Século XXI. 1a edição ed. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2021.
MILARÉ, L. F. L. O processo de industrialização chinesa: uma visão sistêmica. 19 dez. 2011.
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