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OBSERVATÓRIO | Júlia Moura Abreu

O genocídio silencioso na República Democrática do Congo

A República Democrática do Congo (RDC) nos últimos meses de 2023 apresentou um aumento significativo no índice de violência, principalmente relacionada às iminentes eleições que ocorreram em dezembro (Counsil of Foreign Relations). Os confrontos entre grupos militarizados por território e recursos naturais, as execuções extrajudiciais perpetradas pelas forças de segurança do Estado, a violência política e as crescentes tensões com o Estado vizinho, Ruanda, (principalmente no que concerne seu alegado apoio a grupos de milícias no Congo) contribuíram para a eclosão dos confrontos. Para além dos relatos de assassinatos crescentes de civis no leste do Congo, a ONU declarou que o número de pessoas deslocadas internamente tinha atingido um recorde de 6,9 milhões, uma vez que os combates tornam uma parte crescente do país insegura para os civis.

A RDC, anteriormente conhecida como República do Zaire, é um país localizado na África Central, possuindo uma população de aproximadamente 95,2 milhões (Banco Mundial, 2021). Na atualidade, o país sofre uma das mais preocupantes crises humanitárias do século, de acordo com o Conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), entre 2017 e 2019, o país apresentou mais de 918 mil refugiados e solicitantes de asilo abrigados em países africanos vizinhos. As violações dos direitos humanos são generalizadas, havendo denúncias de mutilações físicas, assassinatos, violência sexual, prisões arbitrárias e detenções em condições desumanas, além de relatos de trabalho infantil e situações de trabalho análogo à escravidão. 

Como citado anteriormente, são vários os motivos para que essa crise tenha se alastrado tão drasticamente,  uma das principais razões  é a disputa por minerais e território. A RDC é conhecida por ser uma “aberração geológica”, por ter “absolutamente tudo” no que se refere a riquezas minerais. Além de uma das maiores reservas de lítio e cobalto, e ouro e diamantes em quantidades admiráveis, o país também é rico em  urânio e metais nobres e raros, estes, fundamentais no mundo de hoje no que se refere à produção de energia elétrica e produtos eletrônicos de tecnologia avançada, medicina nuclear e também para questões de segurança e armamento (Agência Senado).

As raízes mais crescentes da instabilidade política e a violência no país se dá em 1994, com genocídio na Ruanda, quando extremistas de etnia hutu mataram cerca de um milhão de tutsis (minoria étnica) e hutus moderados na Ruanda, localizada ao leste da RDC. Durante e após o genocídio, cerca de dois milhões de refugiados hutus atravessaram a fronteira congolesa, instalando acampamentos de refugiados nas províncias de Kivu do Norte e Kivu do Sul. Neste grupo de refugiados, estão membros extremistas e grupos armados da etnia Hutu.

Seguidamente, entre 1996 e 1997, ocorreu a Primeira Guerra do Congo, quando Ruanda, Uganda e Angola invadiram a República Democrática do Congo (RDC) para combater os extremistas Hutus de Ruanda que lá se refugiaram. Após a vitória da Frente Patriótica Ruandesa (RPF) sobre o regime genocida de Ruanda, o novo governo liderado pelos Tutsis começou a se envolver na RDC (na época, ainda conhecida como Zaire). Assim, lideradas pelo Presidente Paul Kagame, as tropas ruandesas, em parceria com milícias Tutsis, baseadas no Congo e apoiadas por Ruanda, lançaram a invasão do Zaire, que se encontrava sob a ditadura de Mobutu Sese Seko. A justificativa para a intervenção foi a alegada ameaça contínua dos grupos Hutus, que estavam no leste da RDC, juntamente à população Tutsi e acusando o regime de Mobutu de abrigar extremistas Hutus em fuga.

A Primeira Guerra do Congo contra o Zaire foi conduzida por Ruanda, com o apoio de outros Estados africanos, incluindo Uganda, Angola e Burundi, cada um com suas próprias preocupações de segurança relacionadas ao apoio de Mobutu a grupos rebeldes em todo o continente. A invasão foi coordenada com Laurent Kabila, líder da oposição do Zaire, e o conflito resultou em milhares de baixas, incluindo ex-militantes Hutus, membros de grupos armados, refugiados e civis congoleses nos Kivus do Norte e do Sul. Os soldados ruandeses e os grupos Tutsis empregaram métodos de guerra brutais. Em 1997, a coalizão Kabila-Kagame emergiu vitoriosa quando Mobutu fugiu de Kinshasa, capital da RDC. Assim, Laurent Kabila assumiu a presidência do Zaire e o país foi oficialmente renomeado como República Democrática do Congo.

Menos de um ano depois, em 1998, devido à deterioração das relações entre Kigali (Capital da Ruanda) e Kinshasa, eclode a Segunda Guerra do Congo, que se estendeu até 2003. Para diminuir a percepção de influência excessiva de Ruanda sobre o governo congolês, Kabila negou a responsabilidade de Ruanda na vitória da guerra e em sua ascensão ao poder. Ele gradualmente removeu tutsis étnicos de seu governo e enfraqueceu a presença militar de Ruanda no leste da RDC. No final dos anos 1990, ficou evidente que as campanhas direcionadas contra populações hutus durante a Primeira Guerra do Congo, principalmente conduzidas pelo exército de Kagame, constituíam crimes de guerra, gerando um consenso internacional negativo sobre o regime emergente do então presidente.

Em uma mudança de alianças, Kabila exigiu a retirada de todas as tropas estrangeiras do Congo e permitiu que grupos armados hutus se reagrupassem na fronteira. Em resposta, Ruanda invadiu em 1998, buscando criar uma zona controlada por suas tropas nas regiões fronteiriças para se distanciar dos grupos hutus no leste da RDC. Forças congolesas, apoiadas por Angola, Namíbia e Zimbábue, enfrentaram os exércitos de Ruanda, Uganda e Burundi, junto com vários grupos rebeldes apoiados por Kigali e Kampala. Laurent Kabila foi assassinado em uma tentativa de golpe em 2001, levando seu filho Joseph Kabila ao poder. Entre 2002 e 2003, Ruanda, Uganda e a RDC começaram a implementar acordos de paz, autorizando um governo de transição liderado por Joseph Kabila em Kinshasa. Apesar dos esforços de reconciliação, comissões de verdade e a presença de forças de paz da ONU, os conflitos persistiram no leste da RDC. 

Durante a guerra, surgiram diversos grupos de resistência, com destaque para o  Movimento 23 de Março (M23), que emergiu como grupo rebelde no início dos anos 2000 e é formado, principalmente, por tutsis étnicos.  Entre 2012 e 2013, o M23 ganhou grande influência no leste da República Democrática do Congo (RDC). Em resposta, o Conselho de Segurança da ONU autorizou uma brigada ofensiva sob o comando da Missão de Estabilização das Nações Unidas na RDC (MONUSCO) em 2013 para apoiar o exército congolês contra o M23. A MONUSCO, que ainda é uma missão ativa, desempenhou um papel eficaz nessa colaboração, levando à suspensão da campanha do grupo de resistência em 2013. Este grupo apresenta grande relevância nos acontecimentos mais recentes na RDC.

Outros pontos de conflito surgiram ao longo das últimas duas décadas em estados na fronteira entre o Congo e Ruanda, como Ituri, mais frequentemente envolvendo grupos étnicos e militantes com contestações remontando às Guerras do Congo. Porém, o século XXI trouxe mais uma complicação para os esforços de paz na República Democrática do Congo: a proliferação de operações de mineração. À medida que o mundo se tornou mais dependente do que nunca de cobalto, cobre, zinco e outros minerais, grupos locais e externos têm se incentivado a se envolver no conflito congolês.

Deste modo, chega-se aos acontecimentos de 2023, quando retorna de forma intensa o  conflito no leste do Congo, devido à confrontação contínua com Ruanda. Os rebeldes do M23 ressurgiram em 2022, tomando controle de partes da província de Kivu do Norte até julho de 2023. Kinshasa acusou Kigali de apoiar o M23, acusação essa apoiada por entidades como a União Europeia e os Estados Unidos, enquanto Ruanda acusou Kinshasa de apoiar milícias hutus. Em outubro, alertas da ONU indicaram o risco de confrontação militar entre os países, entretanto, houve um acordo mediado pelos EUA em novembro visando reduzir a tensão, mas a animosidade persistiu, embora um breve cessar-fogo tenha sido alcançado, o futuro permanece incerto. Kinshasa ordenou a retirada de forças internacionais, enquanto a ONU planeja reduzir sua presença.

 No que se refere a violência advinda de disputa por minerais, há alguns anos, empresas americanas possuíam vastas minas de cobalto no Congo, a maioria foi vendida para empresas chinesas ao decorrer da década passada. Entretanto, algumas minas de cobalto ainda pertencem a empresas privadas dos EUA, como a Apple, Microsoft e Sony, que esporadicamente recebem denúncias de trabalho escravo e infantil, além de desrespeito a regras básicas da Divisão Internacional de Trabalho e violação de direitos humanos. Atualmente, empresas chinesas conectadas a Pequim controlam a maioria das minas estrangeiras de cobalto, urânio e cobre na RDC, e o exército congolês foi repetidamente implantado em locais de mineração no leste da RDC para proteger os ativos chineses.

A China está envolvida no conflito interno e na economia do Congo: o governo congolês está combatendo rebeldes do M23 com a ajuda de drones e armamentos chineses, e Uganda comprou armas chinesas para realizar operações militares dentro das fronteiras da RDC. Esses conflitos entre as Forças Armadas Congolesas (FARDC) e o M23 é a principal razão atual para o deslocamento forçado de civis da região do Kivu do Norte. Dezenas foram assassinados e centenas de milhares deslocados desde janeiro. 

Consequentemente, a população se encontra tensa, com medo de que a capital regional, Goma - lar para cerca de dois milhões de pessoas e cerca de meio milhão de deslocados em refúgio - possa em breve cair nas mãos do avanço do M23, um golpe potencialmente devastador para o controle do governo congolês sobre a região. O Conselho de Segurança da ONU expressou preocupação com a "escalada da violência" após o M23 bombardear o aeroporto de Goma, danificando aeronaves militares congolesas.

A RDC é o lar de quase 7 milhões de pessoas que foram deslocadas internamente devido à ameaça de violência e atrocidades, pobreza extrema e expansão da mineração. Os deslocados e refugiados precisam urgentemente de apoio de segurança, ajuda médica e outros auxílios humanitários. Aproximadamente um milhão de cidadãos congoleses estão buscando refúgio além das fronteiras da RDC. 

A ACNUR está ajudando os deslocados internos da RDC por meio de atividades destinadas a prevenir e responder à violência sexual e de gênero e a fortalecer a proteção de pessoas vulneráveis, incluindo mulheres e crianças. Além de trabalhar com a Organização Internacional de Migração (OIM) a fim de liderar a coordenação e gestão de instalações que hospedam deslocados internos em Kivu do Norte, fornecendo abrigo em algumas áreas. Além disso, o ACNUR está ampliando a presença de funcionários em Kasai, coordenando atividades de proteção para deslocados internos, repatriados e outros civis vulneráveis. 


 

Referências 


Trabalho infantil e exploração na República Democrática do Congo alimentam a produção mundial de baterias. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/noticias/trabalho-infantil-e-exploracao-na-republica-democratica-do-congo-alimentam-a-producao-mundial-de-baterias/300451089>. Acesso em: 18 mar. 2024.

‌CENTER FOR PREVENTIVE ACTION. Conflict in the Democratic Republic of Congo. Disponível em: <https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/violence-democratic-republic-congo>. Acesso em: 18 mar. 2024.

EASTERN CONGO INITIATIVE. History of the Conflict. Disponível em: <https://www.easterncongo.org/about-drc/history-of-the-conflict/>. Acesso em: 18 mar. 2024.


LAWAL, Shola. A guide to the decades-long conflict in DR Congo. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/news/2024/2/21/a-guide-to-the-decades-long-conflict-in-dr-congo>. Acesso em: 18 mar. 2024.

VIEIRA, Sergio‌. Congo tem absolutamente tudo, de tão rico em minérios. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/09/14/congo-tem-absolutamente-tudo-de-tao-rico-em-minerios-afirma-diplomata-na-cre>. Acesso em: 18 mar. 2024.

ACNUR. República Democrática do Congo (RDC). Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/republica-democratica-congo-rdc/>. Acesso em: 18 mar. 2024.

‌REYNTJENS, F. The Second Congo War: More than a Remake. African Affairs: Oxford University Press, v. 98, n. 391, p. 241–250, abr. 1999. Acesso em: 17 mar. 2024.


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