— Júlia Moura Abreu
Genocídio e apartheid são duas das palavras usadas para descrever o que acontece na Palestina desde o final da década 1940. O governo e o exército do Estado de Israel vêm violando os direitos humanos dos palestinos basicamente desde sua criação. Muitos dos crimes cometidos são considerados crimes contra a humanidade e vêm acontecendo há décadas (Human Rights Watch, Organização não governamental, 27 de abril de 2021). Portanto muitos se perguntam o porquê da ONU (Organização das Nações Unidas) ou alguns dos seus órgãos como o Conselho de Segurança ou a Corte Internacional de Justiça não interferem no assunto a fim de acabar com esses conflitos.
Primeiramente, é necessário esclarecer que o conflito entre Israel e Palestina não é um conflito religioso. Os conflitos incessantes na Palestina são resultados do imperialismo, colonialismo e de uma ideologia racista. Propagar a Questão da Palestina como uma guerra entre islâmicos e judeus é prejudicial e pode contribuir com islamofobia e antissemitismo. Assim, é necessário brevemente mencionar a história da Palestina e do movimento Sionista e também citar alguns dos mais importantes acontecimentos a respeito da Palestina e Israel nos últimos 150 anos.
Há registros do povo árabe na Palestina há mais de 3000 anos, em inscritos egípcios. Essa região entre o Mar Mediterrâneo e o Rio Jordão foi o lar de muitas culturas, povos e impérios, como os Assírios e os Persas. Importante ressaltar que quando me refiro à palestina na antiguidade, não estou me referindo ao Estado-Nação da Palestina, tendo em vista que o conceito atual de Estado e nação não existiam. Em 1516, inicia-se o domínio do Império Otomano sobre a região da Palestina e Jerusalém, domínio este, que se estendeu por cerca de 400 anos. Com a queda do Império após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a criação da Liga das Nações, a região do Oriente Médio foi dividida entre mandatos britânicos e franceses. A Palestina ficou sob domínio dos Mandatos Ingleses, em que além da "assistência administrativa e aconselhamento”, o Mandato incorporou a Declaração de Balfour em 1917. Essa declaração expressava apoio ao estabelecimento de um território nacional para o povo judeu, ou seja, apoio à causa sionista.
O termo sionismo faz referência a Sion (sinônimo bíblico para Jerusalém) e foi criado em 1892 pelo jornalista austríaco e judeu nacionalista Natan Birmbaum. O movimento Sionista, por outro lado, foi criado por Theodor Herzl, um jornalista judeu austro-húngaro e sua principal ideologia é: "uma terra sem povo para um povo sem terra”. O movimento se baseia em uma das teorias propostas por Herzl em seu livro 'O Estado judeu' (1896), da existência de um estado judaico independente e soberano na terra de Sion. Ao contrário do que alguns pensam, ser anti-sionista não é ser antissemita, mesmo que alguns se apropriem do anti-sionismo para serem antissemitas e racistas, ser anti-sionismo é apenas ser contra o genocídio e exclusão de uma população indígena com tradições e ocupação milenar em uma terra
Posteriormente, o sionismo foi adotado por um pequeno número da população judaica na Europa e, ao decorrer do século XIX, alguns judeus sionistas migravam para a região da Palestina com o intuito de ocupá-la para estabelecer um etnoestado judaico: o Estado de Israel. Posteriormente, em 1897, na Suíça, ocorreu o Primeiro Congresso Sionista, com mais de 200 delegados de toda a Europa. Tal congresso clamava pela criação de um Estado judeu na Palestina.
Com o apoio inglês, e posteriormente estadunidense à causa sionista, o fluxo migratório de judeus para a Palestina aumentou durante o Mandato, principalmente durante a década de 1930, com a perseguição nazista sofrida pelos judeus. Em 1947 os conflitos na área estavam tomando grandes proporções, portanto a Inglaterra encaminhou a questão para a recém-criada ONU.
A ONU, portanto, propôs o final do mandato inglês e a Resolução 181 (II) de 1947, que dividia a Palestina em dois Estados: um árabe-palestino e outro judaico-sionista com a internacionalização de Jerusalém. Assim, em 14 de maio de 1948 foi criado o Estado de Israel, 56% do território palestino foi ofertado e determinado como israelense, sendo que o estado judaico ficava com a maioria das terras litorâneas férteis.
Ainda em 1947, teve início o Nakba ( “a catástrofe” em árabe) e se refere a expulsão dos palestinos de suas casas, suas terras e seu sustento como consequência do processo de limpeza étnica da Palestina. Este conceito é aceito por todos os organismos internacionais e caracterizado como “um esforço para deixar homogêneo um país de etnias mistas, expulsando e transformando em refugiados um determinado grupo de pessoas” (Drazen Petrovic, 'Ethnic Cleansing - An Attempt at Methodology', European Journal of International Law, 5/3 (1994), pp.342-60.). Para melhor dissertar sobre esse tema usarei como referência a obra “A limpeza Étnica da Palestina” (Editora Sundermann), do historiador israelense Ilan Pappé.
A enciclopédia Hutchinson (Millennium Edition- 2000) define “limpeza étnica" como a expulsão forçada com fins de homogeneizar uma população etnicamente diversa. é uma política de um grupo particular de pessoas para eliminar sistematicamente outro grupo de um determinado território, com base na religião, etnia ou de origem nacional. geralmente é uma política violenta e é frequentemente ligada a operações militares. É para ser alcançado por todos os possíveis meios, desde a discriminação até o extermínio, e implica violações dos direitos humanos e do humanitarismo internacional, como definido por Drazen Petrovic, 'Ethnic Cleansing em ‘An Attempt at Methodology'. A Palestina não é o único exemplo de limpeza étnica na história, a expulsão de muçulmanos da Croácia, após acordo de Dayton em 1995; pelos nazistas na segunda guerra mundial ou das milícias croatas na Iugoslávia são todos exemplos desse crime.
Alguns dos meios que o governo israelense utilizou para o genocidio e a ‘limpeza’ foi o Plano Dalet, manifestado em Deir Yassin quando em 9 de abril de 1948 quando forças israelitas invadiram a vila de Deir Yassin, em Jerusalém. Na invasão os soldados metralharam as casas matando muitos dos habitantes. Os demais aldeões foram então reunidos em um único lugar e assassinados a sangue frio, seus corpos abusados enquanto algumas mulheres eram estupradas e depois mortas. Além de Deir Yassin, mais quatro aldeias foram vítimas de ataques nesse período: Qalunya, Saris, Beit Surik e Biddu. O governo israelense continua desrespeitando os limites impostos pela onu em sua formação, conforme informa o mapa:
Fonte: ONU OCHA
Porque o que acontece na palestina é caracterizado como apatheid? A ONU define o crime de apartheid como ‘a dominação sistemica de um grupo etno-racial sobre outro, abrangindo praticas de segregação e discriminação’. Mais de 50 provisões de Israel discriminam por lei, direta ou indiretamente, não-judeus, como: desigualdade no acesso a água, comida, saúde e hospitais; sistemas de transportes separados e estradas exclusivas para judeus; apropriação de terras, destruição de plantações e demolição das suas casas.
A Palestina atualmente é considerada uma nação de jure ou “de direito”, “por lei”, isso significa que mesmo que o seu estado seja legalmente reconhecido, o governo e o estado em si não exercem controle sobre ele. Pelas leis, a Palestina é um Estado independente, mas na prática sabemos que Israel detém o controle de mais de 70% do seu território.
Em apenas um ano, entre julho de 2017 e maio de 2018, forças israelenses comandaram 105 operações militares dentro dos campos, sendo que em 43 dessas operações, os refugiados afirmam o uso de gás lacrimogêneo. O uso de gás lacrimogêneo só é permitido para fins de dispersão de multidões e não deve ser usado em áreas confinadas. As pessoas devem ser avisadas de que o gás lacrimogêneo será usado e devem ser autorizadas a se dispersar. O uso de gás lacrimogêneo por Israel no campo de Aida é abusivo e vai contra normas internacionais de direitos humanos sobre o uso da força pelas autoridades de aplicação da lei.
Atualmente, mais de 2 milhões de palestinos que vivem nos territórios ocupados estão registrados como refugiados na Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA); cerca de 775.000 vivem na Cisjordânia, enquanto 1,26 milhões residem na Faixa de Gaza. Muitos vivem próximos dos territórios onde nasceram, porém continuam a ser impedidos de voltar para lá. O campo de Aida, na Cisjordânia, aloca aproximadamente 3.300 refugiados palestinos. Em uma área de apenas 0,071 km2, o que seria equivalente a cerca de 10 campos de futebol. Suas casas hoje estão cercadas em três lados por um muro de concreto de 8m de altura que possui cinco torres de vigia militares israelenses. Os assentamentos israelenses de Har Homa e Gilo, ilegais sob a lei internacional, são visíveis dos telhados do campo. Os residentes do campo enfrentam ataques frequentes das forças israelenses, que usam força desnecessária ou excessiva, incluindo o uso imprudente de gás lacrimogêneo.
Nesse texto citei apenas algumas das atrocidades cometidas por Israel. Há muitos registros e relatos de ataques surpresa, uso excessivo de força, intervenções armadas e verdadeiros massacres como a invasão ao Líbano, em 1982, que deixaram cerca de 17.500 mortos, endo que a maioria eram civis, mulheres e crianças. Também tiveram os massacres de Sabra e Chatila, em Gaza, Qana, Tantura, Kafr Qasim, Marwahim entre outras dezenas de pequenas vilas e campos de refugiados. Em agosto deste mesmo ano, o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, para uma entrevista coletiva na cidade de Berlim, afirmou que os israelenses cometeram "50 Holocaustos" contra os palestinos. Em um ataque na madrugada de 18 de agosto deste ano, forças israelenses invadiram territórios da Cisjordânia, causando grandes danos às propriedades e emitiram ordens militares impondo o fechamento dos escritórios de sete grupos palestinos de direitos humanos.
Na Carta das Nações Unidas ou Carta de São Francisco está explícito que o segundo objetivo da organização é “Desenvolver relações de amizade entre as nações baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal". O Princípio de Autodeterminação dos Povos é um direito dos povos em territórios não autónomos e em territórios sob tutela (ou sob domínio como no caso da Palestina). O princípio diz respeito à independência, integração, associação, autonomia e reconhecimento do direito de minorias. O princípio é reconhecido como norma de Direito Internacional.
Em “Marxismo e o Problema Nacional e Colonial”, Joseph Stalin define o direito de autodeterminação dos povos como "O direito de autodeterminação significa que só a própria nação tem o direito de determinar seus destinos, que ninguém tem o direito de imiscuir-se pela força na vida de uma nação, de destruir suas escolas e demais instituições, de violar seus hábitos e costumes, de perseguir seu idioma, menosprezar seus direitos". Israel é membro das Nações Unidas desde 11 de maio de 1949, portanto deve seguir as diretrizes impostas na carta e nos diversos outros documentos da organização. Ao permitir que todas essas atrocidades sejam cometidas com o povo palestino, a ONU permite que Israel viole esse direito e saia impune.
Mas então, por que a ONU não faz nada significativo a fim de cessar este conflito? Primeiramente, a ONU alega que é fundamental respeitar o princípio da soberania westfaliana, parte do seu Princípio de Não Ingerência nos assuntos internos ou externos dos Estados (art. 2.7, Carta da ONU). Muitos especialistas da ONU condenam as ações de Israel. “O resultado são graves violações dos direitos de liberdade de associação, opinião e expressão e do direito de participar em assuntos públicos e culturais, que Israel é totalmente obrigado a cumprir, respeitar e proteger”. “A sociedade civil é o que resta aos palestinos para sua proteção mínima”. “Retrair este espaço e recurso vital é ilegal e imoral” todas essas falas foram ditas pelos especialistas na matéria publicada o dia 24 de agosto de 2022, no site das Nações Unidas e se referam ao ataque às organizações palestinas de Direitos Humanos.
O Oriente Médio sempre foi ponto estratégico primordial e muitos líderes europeus, após a independência de suas colônias, estiveram interessados em estabelecer um aliado na região para beneficiar os seus próprios interesses imperialistas. Israel cometeu crimes que guerra, crimes contra a humanidade, o crime de apartheid e continua impune.
É importante entender que todas essas atrocidades continuarão sendo cometidas enquanto os órgãos supranacionais permitam. Pessoas continuam sendo assassinadas, perseguidas e violentadas diariamente. A criação de um Estado palestino significaria a liberação palestina e a abolição e dissolução do estado de Israel, assim finalmente árabes e judeus viverão juntos sem uma ideologia que especificamente defende a limpeza étnica da outra. Palestinos seriam permitidos voltar ao seu lar e suas casas, milhões de famílias se reencontrariam e o povo não teria que viver sob ocupação e appartheid. Esse é o caminho para a justiça.
REFERÊNCIAS
POLÍTICAS ISRAELENSES ABUSIVAS CONSTITUEM CRIMES DE APARTHEID E PERSEGUIÇÃO. Human Rights Watch. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2021/04/27/378578. Acesso em 16 de set. 2022.
PALESTINE THROUGHOUT HISTORY, Decolonize Palestine, Disponível em: https://decolonizepalestine.com/intro/palestine-throughout-history/. Acesso em: 7 de set. 2022.
HISTORY OF THE QUESTION OF PALESTINE. United Nations, Disponível em: https://www.un.org/unispal/history/. - Acesso em: 7 de set. 2022.
WEST-BANK AND GAZA: Seventy+ years of suffocation.Amnesty International. Disponível em: https://nakba.amnesty.org/en/chapters/west-bank-gaza/#. -Acesso em: 8 de set. 2022.
APARTHEID, Water Justice in Palestine, Disponível em:https://www.waterjusticeinpalestine.org/context/apartheid. - Acesso em: 8 de set. 2022.
NAKBA, Water Justice in Palestine, Disponível em: https://www.waterjusticeinpalestine.org/context/nakba. - Acesso em: 8 de set. 2022.
ONU. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em: http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/documentos/ – Acesso em: 10 de set. 2022
PAPPÉ, Ilan. The Ethnic Cleansing of Palestine, Oxford: Oneworld Publications. 2006 - Acesso em: 8 de set. 2022
PETROVIC, Drazen. 'Ethnic Cleansing - An Attempt at Methodology'. European Journal of International Law. 1994. - Acesso em: 8 de set. 2022
STALIN, JOSEPH. O Marxismo e o problema nacional e colonial. Primeira Edição. Tradução de Brasil Gerson. Rio de Janeiro: Editora Vitória Ltda., 1946.
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