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OBSERVATÓRIO

Por que a intervenção americana no Afeganistão deu errado?


Nas últimas semanas, o assunto que moveu as comunidades políticas e internacionais foi a decisão do presidente americano Joe Biden de retirar todas as tropas americanas do Afeganistão, que lá estavam há mais de 20 anos. Retirada que parecia um consenso entre as próprias forças políticas americanas, já que seu rival nas eleições de 2020, o derrotado Donald Trump também falava em realizar tal manobra militar. Sim, foram necessários 3,2 trilhões de dólares e a vida de 2.455 soldados americanos para que tanto os republicanos quanto os democratas percebessem que a intervenção americana naquele território havia perdido seu propósito.

Mas que propósito, afinal? É importante ter isso em mente: falar do Afeganistão é falar de um território que sempre sofreu influências estrangeiras. Desde longos conflitos entre britânicos e russos durante o século 19, até a invasão soviética em 1979, que terminou 10 anos depois graças ao surgimento de grupos militares financiados pelos EUA que, por uma incrível coincidência do destino, se tornaram os grupos terroristas que viraram o motivo para a invasão americana em 2001. Durante anos, passaram pela região diversos propósitos, ideais e grupos diferentes. Soviéticos, ingleses, americanos e o próprio Taliban rotacionam promessas e interesses naquela região.

Quando aconteceu o 11 de Setembro e George Bush, com amplo apoio do congresso e do povo, escolheu iniciar uma “guerra ao terrorismo” invadindo não somente o Afeganistão, mas também o Iraque, existiam três promessas: um sagaz combate a grupos e organizações terroristas; uma caçada moralista a ditadores; e uma majestosa “missão de libertação” daqueles povos que há tanto eram comandados por ditaduras sanguinárias.

Os Estados Unidos invadiram o Oriente, Bush teve as guerras que tanto queria, mas isso não bastava. O maior desafio que aguardava o Tio Sam seria o dilema referente ao que fazer com aqueles territórios e com ambas as nações após a guerra. Os EUA optaram por um remodelamento institucional e assumiram o processo de State Building não só do Afeganistão e do Iraque, protagonizando assim toda a formação e composição de Estados democráticos nesses países, através de políticas neoliberais e aos moldes ocidentais. E foi exatamente por isso que deu errado.

A percepção que o Oriente têm de Estado, da lei e da própria sociedade como instituição em si são totalmente diferentes da percepção que nós, ocidentais, temos. No mundo ocidental, a relação que nós temos com instituições políticas é de consentimento através de um contrato tácito. Os Estados ocidentais são fundamentados em pilares democráticos liberais que fortalecem a cidadania através das instituições, enquanto a maioria dos estados do Oriente Médio fazem o caminho inverso: são fundamentados por Deus através da Sharia, a lei islâmica. Na visão de mundo oriental, a relação entre Estado e sociedade não é de cidadania, é de submissão. No Oriente, o processo de criação e ratificação das leis e das instituições não surgem através de uma corte, de um parlamento ou pela própria sociedade civil, lá essas leis são eternas, são ratificadas por Deus.

Em nenhum momento os EUA foram capazes de fazer essa leitura, e o resultado foi a catástrofe que todos viram: 20 anos para instituir um governo que foi derrubado em 10 dias, na base do grito, da ameaça e sem resistência. Tudo isso porque em 20 anos, os EUA nunca se preocuparam com o quanto aquele Estado que estava sendo construído iria refletir na sociedade, nos costumes e na cultura do povo que habitava o território do Afeganistão, e por mais que houvesse algum esforço para mudar essa cultura, não passariam de lágrimas na chuva, pois costumes e culturas são coisas que surgem de baixo para cima e portanto, o Estado e suas instituições devem ser um reflexo da tradição daquele território. Isso nunca foi um real interesse dos EUA, tanto que eles fizeram exatamente o contrário: criaram um aparato que estruturalmente nada tinha com aquele povo. Não existia sentimento de paixão, não existia nacionalismo e muito menos disposição para defendê-lo.

Em 20 anos, os EUA nada conseguiram além de um Estado anacrônico, que já nasceu falido. Um Estado que em nada representa seu povo, muito pelo contrário; a expectativa de vida do povo afegão é de 51 anos, e todos aqueles vídeos terríveis que vimos na internet ao longo da última semana mostra o pior dos sintomas da intervenção militar: Nunca existiu a preocupação de unir o povo afegão, o efeito foi justamente o contrário; enquanto a população mais jovem se viu desesperada e horrorizada pelo fato de um novo regime extremista islâmico ter se instituído, para a parcela mais velha da sociedade o sentimento não era nada além do que uma simples volta à normalidade, que era eminente, vide o apreço que eles tinham com o atual Estamento e o desgaste que o exército americano tinha a cada dia que se passava ali.

O legado que os Estados Unidos deixam ao Afeganistão não passam de uma simbiose de desmembramento e fracassos, o que deixa em xeque intervenções futuras em países ocidentais, principalmente onde a cultura islâmica prevalece. Mas dentre tantos fracassos, a lição que fica é que nada adianta fazer todo o processo de State Building funcionar, sem antes entender que esses aparatos precisam ser consuetudinários, senão de nada adiantará gastar trilhões de dólares, colocar vidas americanas e afegãs em cheque e se achar os cavalheiros do mundo livre.



- David Pirajá


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