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Resenha Documentário A Última Floresta


Fonte da Imagem: Netflix Brasil 2021


Paulo H. Côrtes

CPOI



“A Última Floresta”, esta é a alegoria que dá nome ao filme documentário, dirigido por Luiz Bolognesi e escrito pelo mesmo juntamente com Davi Kopenawa. A produção foi às telas em 2021, durante o Festival de Cinema de Berlim, sendo a única brasileira e a vencedora do prêmio do público - Também conhecido como “The Panorama Audience Award”, um prêmio específico da Sessão Panorama do festival Berlinale que incluiu outros 16 competidores e contou com 5.658 votos dos telespectadores -, abrindo espaço para outros prêmios que seguiriam. A história é centrada em uma aldeia brasileira dos Yanomami, onde somos conduzidos a entender a fundo como se dá a vivência dessa população, desde aspectos cotidianos, até a resistência frente a intensificação das invasões de garimpeiros e a constante ameaça que os costumes não-indígenas representam para a cultura desse povo. 


É nesse cenário que a narrativa apresenta aspectos documentais, retratando a realidade e criando no telespectador um anseio de atravessar a tela para sentir a água fria dos rios e o cheiro do beiju que a mãe cozinha para seus filhos, mas também nos apresenta encenações dos relatos de Kopenawa acerca da história dos Yanomamis e toda a sua cosmologia e ontologia, nos envolvendo nos aspectos espirituais dessa população.


 Os personagens principais da trama são: um jovem indígena que está atraído por sair da aldeia e ir viver em Boa Vista por influência de relatos de seu amigo que agora conhece “a floresta dos brancos”; o próprio Davi Kopenawa que, enquanto Xamã, luta para tirar esse jovem dessa atração perigosa à medida que também organiza a aldeia e os demais povos indígenas vizinhos para resistir aos invasores; e por fim uma mãe deixada pelo seu marido após ter sido enfeitiçado por uma Yawarioma - São espíritos das águas. As Yawarioma femininas costumam seduzir e sequestrar jovens caçadores Yanomami, para que em seguida eles possam ter acesso à carreira xamânica (Instituto Socioambiental, 2023) -. 


As histórias desses três personagens se misturam e se confundem no decorrer do filme, no entanto, a fim de explorá-las ao máximo, farei aqui uma divisão dos impactos que cada uma delas são capazes de proporcionar aos telespectadores. Desde já, cabe dizer que essa é uma daquelas obras que, quanto mais assistimos, mais é possível tirar lições. Contudo, me esforço para trazer uma síntese que instigue aqueles que me leem a ouvirem essa mensagem tão urgente.


Um jovem que representa alerta e um Xamã que luta com sua voz


A persona do jovem representa um alerta aos Yanomami que podem se interessar pelo modus vivendi dos brancos. Mas à medida que essa figura é revestida de uma mensagem direta para aqueles que são da comunidade indígena, ela também atinge o telespectador que, seja ele parte dessa comunidade ou não, entende que existe sim outra forma de viver, ou melhor dizendo, aquilo que se convencionou chamar de bem-viver


Trata-se de uma filosofia, com reflexos muito concretos, que sustenta e dá sentido às diferentes formas de organização social de centenas de povos e culturas da América Latina. Sob os princípios da reciprocidade entre as pessoas, da amizade fraterna, da convivência com outros seres da natureza e do profundo respeito pela terra, os povos indígenas têm construído experiências realmente sustentáveis que podem orientar nossas escolhas futuras e assegurar a existência humana. (Iara Bonin, 2015, CIMI)


Na figura de Davi Kopenawa, observamos uma dinâmica de atenção e orientação de um Piriomi (líder da aldeia), que apresenta a esse jovem a maneira como a exploração dos recursos naturais e o acúmulo de mercadorias que estão atrelados a cultura não-indígena, possuem em sua origem espiritual um vínculo com os males praticados por Yoasi, irmão de Omama (pai e protetor dos Yanomami). Segundo a história apresentada no filme, Omama enterrou todos os espíritos maléficos e a fumaça das doenças no subsolo, é por essa razão que não se deve perfurar e nem explorar minérios, para não adoecer a floresta mais uma vez.


Ademais, Kopenawa apresenta uma série de outros discursos direcionados ao jovem, que enquanto personagem tem um papel majoritariamente de ouvinte, visto que, como levantado anteriormente, a mensagem, no fundo, é para todos que o assistem. Entre elas, é possível observarmos um pouco do que ele nos apresentou em seu livro “A Queda do Céu: a palavra de um xamã Yanomami”, acerca das diferenças entre eles e os não-indígenas no que tange o tratamento dado às mercadorias. Mais especificamente, no decorrer do capítulo dezenove, “Paixão pela mercadoria”, o líder indígena diz que os brancos já foram como eles, no entanto, esqueceram os ensinamentos dos antigos e passaram a ter um vínculo com as mercadorias de uma maneira quase que sexual.


Para eles, essas coisas são mesmo como namoradas! Seu pensamento está tão preso a elas que se as estragam quando ainda são novas ficam com raiva a ponto de chorar! São de fato apaixonados por elas! Dormem pensando nelas, como quem dorme com a lembrança saudosa de uma bela mulher. (KOPENAWA, 2015, p.413)


Os Yanomami não possuem o desejo de ter objetos próprios, na realidade, eles constantemente compartilham e dão generosamente o que lhe for solicitado, pois buscam serem reconhecidos como verdadeiros filhos de Omama, que lhes deu algo muito mais valioso que os objetos, a própria floresta. 


As mercadorias não morrem. É por isso que não as juntamos durante nossa vida e nunca deixamos de dá-las a quem as pede. Se não as déssemos, continuariam existindo após nossa morte, mofando sozinhas, largadas no chão de nossas casas. Só serviriam para causar tristeza nos que nos sobrevivem e choram nossa morte. Sabemos que vamos morrer, por isso cedemos nossos bens sem dificuldade (KOPENAWA, 2015, p.409)

Por fim, em uma última conversa direta, o Xamã relata ao jovem que já foi viver com os brancos no passado, e que em meio a eles os Yanomami não são e nem serão aceitos como iguais, sendo tratados com xenofobia e explorados em meio a trabalhos insuficientes para que eles possam se alimentar e viver com dignidade, sendo isso somente possível dentro da própria floresta. 


Uma mensagem do Xamã para os de fora da aldeia


É partindo desse entendimento acerca do valor da floresta que acessamos com maior profundidade as cenas onde Kopenawa é apresentado relatando as dores das invasões de 45 mil garimpeiros em 1986. A retirada dos povos Yanomami da região não é uma solução adequada como muitos brancos buscam afirmar, um filho de Omama não pode deixar para trás aquilo que lhe é mais sagrado, e isso nos é bastante claro agora. 


O documentário relata que as invasões da década de 80 ocasionaram a morte de cerca de 1800 indígenas, por meio da violência e da contaminação da água ocasionada pelo mercúrio. Infelizmente, esse foi um processo muito facilitado, pois somente em 1992 o Brasil reconheceu o território Yanomami. Também em 92, no dia 10 de dezembro, pela primeira vez na história da Organização das Nações Unidas, indígenas discursaram em um momento que ficou conhecido como a abertura do Ano Internacional dos Povos Indígenas. Dentre as 20 lideranças ali presentes, Davi Kopenawa foi justamente quem ficou responsável por representar aqueles da Amazônia.


 Se passaram vinte anos e apesar da formação de um fórum permanente sobre assuntos indígenas na ONU, da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 2006, e toda a propaganda feita em torno dos feitos da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) no começo do século, estamos diante do que mais se parece com um retorno à 1986, e é justamente essa mensagem que o filme busca nos passar.


Assim como fez em 1992, agora em 2019 Kopenawa retorna aos Estados Unidos, dessa vez para discursar na Universidade de Harvard em busca de ajuda daqueles de fora da aldeia; a ajuda de nós telespectadores que estamos diante de mais um genocídio sistemático de seu povo em prol da realização do prazer que os não-indígenas possuem em torno das mercadorias. É nesse momento em que o roteiro nos coloca exatamente na posição que antes pertencia ao jovem: toda essa produção é uma mensagem direta para nós, um pedido de socorro para aqueles que vivem distantes da floresta, que “pensam que tudo é bonito”, e não compreendem como para sustentar seu modo de viver existe um sistema predatório que mata a floresta e mata os Yanomami. Ademais, é uma oportunidade para conhecermos as razões que levam essa população a proteger a floresta. Se faz necessário colocar isso em pauta em todas as grandes conferências das Nações Unidas, e não somente em um passado já distante que é a década de 1990. 


Sua voz ecoa como esperança para os indígenas que hoje são invadidos por cerca de 20 mil garimpeiros (Câmara dos Deputados, 2023). O filme nos impacta de modo a denunciar os malefícios que as desregulamentações do governo Bolsonaro ocasionaram às populações indígenas, utilizando de imagens e relatos de resistência — “fiquem atentos com a saúde das crianças neste momento”, o Xamã nos alerta. Assim, diante do reavivamento das discussões acerca do Marco Temporal, esse filme é mais do que necessário para podermos ouvir mais uma vez o que os originários têm a nos dizer, para que a alegoria da “Última Floresta” que dá nome ao filme não se torne uma realidade, seja apenas um medo do passado em meio a nossa história.


Uma mulher e sua luta


 Por fim, é relevante ressaltar o papel realizado pela mãe, que teve o seu marido enfeitiçado pelas Yawarioma. A mulher passa o decorrer de todo o filme ouvindo as denúncias de Kopenawa, nos guiando para os seus discursos e apresentando a perspectiva das mulheres Yanomami que almejam depender cada vez menos dos homens. Para tanto, ela sugere a formação de uma Associação de Mulheres em prol da venda dos cestos que elas produzem segundo os ensinamentos de seus antepassados, se aproveitando assim da dependência que os brancos possuem em relação às mercadorias. No decorrer de sua trajetória ela se inspira e se fortalece a partir da imagem de Thueyoma, a mãe dos Yanomami, símbolo de força que a permite resistir ao desaparecimento de seu marido a medida que cuida de seus filhos e sustém sua família sozinha, indo caçar, cozinhando e buscando renda.


Em outra medida, cabe pontuar também que o marido dessa mulher faz um papel auxiliar ao que o jovem fez, mas ele é aquele que já se perdeu em meio às ilusões que o mundo dos não-indígenas proporciona. Isso fica mais claro quando a mulher vai até os Xamãs e solicita um ritual para dar a ela condições de ir até o fundo do rio, onde seu marido está aprisionado e resgatá-lo. Nesse momento, Kopenawa relata que talvez ele tenha sido levado pelo espírito maléfico do minério e não pelas Yawarioma, sendo assim aprisionado pela armadilha do garimpo. 


Assim, ocorre uma grande mudança entre os Yanomami. Antigamente, os homens não resistiram à atração dos espíritos femininos, porém agora nos deparamos com uma narrativa na qual muitos deles estão sendo levados por outro espírito, o da atratividade e da interferência dos não-indígenas na aldeia. O que o filme denuncia não é a morte dos Yanomami somente pela violência ou pela contaminação, mas também pelo cada vez mais frequente sequestro simbólico de seus indivíduos. Diante dessa constatação, temos uma  oportunidade para avaliar o epistemicídio - Conceito desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos, usado para descrever que a intervenção do Norte global para universalizar seus saberes foi tão profunda que “descredibilizou e, sempre que necessário, suprimiu todas as práticas sociais de conhecimento que contrariassem os interesses que ela servia (SANTOS & MENESES, 2009, p.10) - sofrido pelos Yanomami, que têm seus saberes  substituídos e apagados pelas epistemologias dos não-indígenas à medida que a sua população passa a ser forçadamente colocada dentro da sociedade dos brancos, precisando se adaptar para não sofrer preconceitos.  


Considerações Finais


A “Última Floresta” é uma denúncia dos Yanomami à Comunidade Internacional e à humanidade como um todo em busca de socorro, mas também é um alerta para nós mesmos curarmos a nossa doença: a paixão pela mercadoria que nos mata. A produção do documentário constrói uma narrativa simbólica que de maneira extremamente atenciosa retrata as dores e o sofrimento a que esse povo é submetido à medida que nos envolve nas belezas e alegrias que compõem sua história e sua cultura. É um filme que à medida que te encanta também te faz ficar incomodado, te faz sentir que mesmo depois tanto ter estudado e aprendido no decorrer da vida, ainda não sabemos das coisas que são mais importantes, mais elementares. Do nosso pedestal de “civilizados” e “modernos”, “aqueles que possuem acesso a um modo de vida avançado e qualificado”, temos muito mais a aprender com Kopenawa e toda a sua comunidade, que em meio à sua cosmologia e ontologia depreenderam um modo de viver com muito mais valor. 


Assim, que possamos ouvir essa denúncia mais de uma vez; internalizá-la até que possamos transformar a nossa Sociedade e praticar o bem-viver. Se segundo Kopenawa nós não ouvimos o que nossos antepassados nos ensinaram no início de tudo, que hoje seja possível mudar essa trajetória, e o primeiro passo é lutar junto a eles pela defesa da Amazônia, nossa verdadeira maior riqueza, aquela que permanecerá mesmo depois que nós morrermos. É fato, precisamos lutar pelo privilégio de poder sonhar outros futuros









Referências:


A última floresta. Direção: Luis Bolognesi. Produção: Buriti Filmes e Gullane.  Distribuição: Gullane distribuidora. Lançamento: 9 de setembro de 2021. 


MAZZOTO, Camila; FRANÇA, Bernardo. O fatídico dia em que indígenas discursaram pela primeira vez na ONU. Revista Galileu. 9 de agosto de 2021. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Historia/noticia/2021/08/o-fatidico-dia-em-que-indigenas-discursaram-pela-primeira-vez-na-onu.html> Acesso em: 15 nov. de 2023.


BONIN, Iara. O Bem Viver Indígena e o futuro da humanidade | Cimi. Disponível em: <https://cimi.org.br/o-bem-viver-indigena-e-o-futuro-da-humanidade/>. Acesso em: 15 nov. 2023.


Instituto Socioambiental. Yanomami - Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yanomami>. Acesso em: 15 nov. 2023.


KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro — 1a ed. — São Paulo : Companhia das Letras, 2015.


TADDEI, Renzo. 2021. "Davi Kopenawa". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/autor/davi-kopenawa. Acesso em 15 nov. 2023


Câmara dos Deputados. Notícias, Direitos Humanos. Sônia Guajajara afirma que a crise dos Yanomami só terá fim após a retirada de garimpeiros. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/951843-sonia-guajajara-afirma-que-a-crise-dos-yanomami-so-tera-fim-apos-a-retirada-de-garimpeiros/>. Acesso em: 15 nov. 2023.


SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina. Janeiro, 2009.



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