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Soluções africanas para problemas africanos: a Agenda 2063 como uma visão de futuro para a África

O caso do Mali como tradução dos desafios da União Africana


Bianca Silva Gonçalves

Guilherme Dias do Carmo


Para compreensão da União Africana (UA), é importante analisar o contexto de sua criação através de um olhar crítico, tendo em vista que a história da África é atravessada por longos períodos de ingerência, tanto colonial quanto neocolonial. Formulada em 2002, a UA foi pensada como sucessora da Organização da Unidade Africana (OUA), visando aprofundar a defesa dos valores panafricanistas, bem como aprimorar e institucionalizar os mecanismos de manutenção do equilíbrio regional.

Desse modo, durante a criação da UA, os estudiosos se debruçaram sobre as deficiências da organização antecessora para apontar caminhos que o organismo deveria seguir rumo ao desenvolvimento africano. Os principais pontos abordados, foram a necessidade de fomentar a democracia e boa governança dentre os países membros, impulsionados pelos ideais difundidos pela globalização durante a década de 90. Outro forte traço destacado foi também a incapacidade da OUA de implementar uma agenda independente dos interesses exclusivos da elite, no viés econômico e político, e mediar conflitos existentes — o que posteriormente resultou no seu fim.

A aparente ineficácia da OUA foi atribuída ao “caráter personalista, materialista e oportunista da política Africana” (Berman 1998, 305). Havia outras razões também: a primeira era a primazia do poder político no cálculo da elite. [...] (Ake 1981). Segundo, a maioria dos líderes africanos não eram produtos do processo democrático e, portanto, não podiam se importar menos com a unidade africana (Ibeike-Jonah 2001). (NWOZOR, 2018, p.03)


Assim, tendo em vista todas as questões a serem superadas para o estabelecimento de uma OI eficiente e duradoura, a União Africana buscou ferramentas e mecanismos para orientar suas movimentações e auxiliar na aplicação do acordado. Treze anos após o seu surgimento, em 9 de julho de 2002, a organização surge com um plano estratégico de longo prazo para impulsionar a ascensão política, econômica e social do continente africano, a Agenda 2063. A visão de futuro almejada pela Agenda, é um grande símbolo não só para a integração e cooperação do continente africano, como também para o avanço das pautas de desenvolvimento focadas na região.

O plano é composto por inúmeras seções que especificam as metas da organização, as quais são chamadas de “aspirações”. Dentre as 7 aspirações expostas no documento, esta discussão propõe-se a analisar as seguintes:


(a) [...] “Um continente integrado, politicamente unido com base nos ideais do pan-africanismo e a visão do Renascimento Africano” (b) [...] “Uma África de boa governança, democracia, respeito pelos direitos humanos, justiça e o estado de direito”; e (c) [...] “Uma África pacífica e segura” (COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA, 2015, p.2)


Pautando as tomadas de decisão nas aspirações da Agenda, a organização assume uma postura categórica ao tratar os desafios presentes na África com o menor nível possível de interferências externas das grandes potências. E assim, foca em pensar soluções africanas para problemas africanos, materializando o seu alinhamento com os pensamentos panafricanistas, que moldam a missão, os princípios e os valores da instituição.

Em meio a lista das aspirações mencionadas, os países estabeleceram datas limite a curto, médio e longo período para auxiliar no alcance dos objetivos. Porém, existem visíveis deficiências na aplicação efetiva destes objetivos no solo africano. Quando analisamos as metas de curto e médio prazo, como "Até 2020, todos os vestígios do colonialismo terão sido eliminados e todos os territórios africanos sob ocupação estarão totalmente libertados” ou “silenciar as armas até 2020” (COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA, 2015, p.2) fica explícita a dificuldade de alcance dos objetivos. Esse atraso em alcançar as metas de curto prazo não é uma surpresa, visto que um período tão curto não é suficiente para sanar problemas estruturais que demandam. Dentre os mencionados anteriormente, o primeiro deles abrange a libertação total do Arquipélago de Chagos do jugo colonial inglês; fato que ainda não aconteceu apesar das contestações da comunidade internacional. Já o segundo, também apresenta diversas questões pendentes, como o caso do Mali que analisaremos posteriormente neste artigo.

Paralelamente, além do plano de longo prazo, a UA também dispõe do African Peer Review Mechanism (APRM), um mecanismo voluntário no qual as nações examinam o estágio de aplicação de vertentes chave para o desenvolvimento. A vista disso, ao se tratar da segunda meta mencionada no parágrafo anterior, o APRM atua como um recurso favorável para a fiscalização e diagnóstico da conjuntura regional africana. Este mecanismo abarca diversas facetas socioeconômicas, incluindo conflitos armados — os quais são foco deste artigo — e consiste em uma ferramenta de manutenção e monitoramento das práticas de boa governança dentro do continente africano. Através dele, a partir de 2003, alguns dos países membros da organização se comprometeram voluntariamente a fiscalizar seus países na aplicação das seguintes temáticas: democracia e governança política, econômica e corporativa; gestão econômica e desenvolvimento socioeconômico.

Naturalmente, os relatórios gerados pelo mecanismo podem ser utilizados como parâmetro indicativo dos avanços ou deficiências na aplicação das metas determinadas pela Agenda 2063. E é por esse motivo que, mesmo com a diferença de objetivos existentes entre o APRM e a Agenda 2063, o modus operandi do mecanismo é tão relevante para a análise crítica do proposto pela Agenda, visto que os princípios norteadores do mecanismo e as aspirações estabelecidas na Agenda - primazia da boa governança no continente africano; tem grandes semelhanças. Os principais pontos abordados pelo APRM em seus questionários, são também muito valiosos para a observação crítica da Agenda 2063, sendo eles: fraquezas nos sistemas, leis e instituições; indicadores de alerta precoce que apontam para as áreas que requerem maior ação; e a medida em que o país implementou os planos de ação acordados (ACHIENG, 2015). Essas questões são importantes não só para o diagnóstico individual da situação de cada Estado, como também auxiliam na compreensão do nível de aplicação da Agenda nesta região.

Isto posto, utilizaremos a aspiração “Silenciar as armas até 2020” (COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA, 2015, p.2) como base para discorrer sobre o que está acontecendo no Mali e entender a atuação da União Africana frente a conjuntura atual. A meta estabelece que a partir da data limite, o continente africano deveria estar livre de todas as guerras, o que não foi alcançado no período, e mesmo 3 anos após o prazo a situação de insegurança política na região permanece crítica. Desse modo, exemplificaremos a falha no alcance deste objetivo através da análise crítica do quadro estabelecido no Mali.

Nesse sentido, enquanto o mundo parava por conta da pandemia global do até então recém descoberto coronavírus, o Mali passou no primeiro semestre de 2020 por grandes movimentações populares que diagnosticavam um desagrado generalizado referente à administração pública. Respaldando-se nas insatisfações populares e no crescimento das atividades terroristas na região norte do país (SIMMS, 2021), em agosto de 2020 ocorreu a tomada do poder executivo pelos militares, que forçaram o presidente a renunciar e instalaram um novo governo.

A condenação global ao golpe foi quase imediata, representantes estatais de todas as partes do mundo emitiram suas preocupações com a escalada antidemocrática no país, que por sua localização central e riquezas minerais quase inexploradas pode ser visto como essencial em parâmetros políticos e geográficos, sendo assim relevante para a estabilidade regional. Nesse sentido, destaca-se o papel da União Africana que, respaldada nos compromissos acordados pelo Mali como signatário do APRM, rapidamente suspendeu o país de todas as atividades, órgãos e instituições da organização, posteriormente intensificando a represália, aplicando sanções coletivas ao novo regime malinense (SIMMS, 2021).

Enquanto a UA alçava propostas de apoio a uma gradual retomada da ordem constitucional em Bamako (capital do Mali) -seguindo os princípios da APRM- ocorreu um segundo golpe de Estado em menos de um ano, quando uma ala militar insatisfeita com os rumos dados a governança, sequestrou o então presidente e outros membros do alto escalão do governo, consolidando ainda mais a instabilidade na região. Com isso, a União Africana voltou a suspender a participação do Mali na organização (SIMMS, 2021), que meses antes tinha sido readmitido com o intuito de não prejudicar a população civil.

Na construção da Agenda 2063, o ano de 2020 foi estabelecido como marco onde a meta de silenciar todas as armas seria alcançada. Todavia, por conta dos acontecimentos no Mali, e em diversos outros países do continente, 2020 pode ser lido como um ano no qual a agenda foi colocada à prova. A fragilidade institucional apresentada pelo Mali e por outras nações africanas, se coloca como um considerável obstáculo para a conclusão das metas apresentadas pela UA e para a própria organização.

Esse déficit de governabilidade não é uma realidade exclusiva do Mali, diversos países do continente africano sofrem desse mal, como Burkina Faso e Guiné Conacri. Problemas como a descentralização do poder em forças políticas -organizações criminosas, grupos terroristas e como no caso trabalhado, nas forças militares- dificultam a implementação de políticas de boa governança. O caso do Mali exemplifica o quanto o caminho para a concretização dos objetivos do APRM e da agenda 2063 precisam ser constantemente repensados, ponderando as alternâncias de realidade política, que em Estados formados recentemente se mostram recorrentes.

Logo, a identificação de deficiências, o reforço de boas práticas e o próprio espaço de diálogo estabelecido pelo APRM se apresentam como primordiais para um caminho em que o Mali e outros países, como Sudão e Burkina Faso, retornem para os padrões governamentais estabelecidos como ideais para a União Africana. É só a partir da reconstrução da relação de países como o Mali com a UA, e desses com suas nações vizinhas, que se pode pensar no APRM como direcionamento para a conclusão de objetivos da agenda 2063.

O crescimento de movimentos armados expõe uma fragilidade nas metas estabelecidas, que parecem não condizer com uma realidade alcançável a um prazo tão curto, como aconteceu referente ao objetivo de silenciar as armas. A recorrência desses problemas mancham a imagem da União Africana, que pode aparecer no cenário internacional como ineficaz, devido a constância de notícias negativas ligadas às instabilidades regionais, como o escândalo dos dois golpes em nove meses no Mali.

Entretanto, a rápida coordenação institucional da organização garante a ela dois pontos positivos primordiais: a construção de um debate interno referentes aos problemas e a não tolerância às quebras institucionais. Esses pontos demonstram uma seriedade necessária para uma organização desse porte, e viabilizam a compreensão de que apesar dos problemas a UA se propõe a trabalhar e se adaptar a partir das adversidades.

Paralelamente, existem diversos desafios a serem superados para o alcance das demais metas estabelecidas, como o fim dos resquícios de colonialismo ainda presentes na África. Essa meta estabelece 2020 como prazo para findar a ocupação do Arquipélago de Chagos- região que até hoje permanece sob o domínio do governo britânico. Tal objetivo, com uma data limite tão curta, considerando o ano de lançamento da Agenda (2015), não surpreende ao ter pouco êxito em alcançar o pretendido, visto que a potência tem apresentado relutância em abrir mão da região. Ainda assim, é de extrema relevância a pressão que estas metas impõem na comunidade internacional, reforçando o direito de autodeterminação dos povos já reconhecido pelas potências.

Assim, mesmo com obstáculos a serem superados, é inegável a importância da União Africana para o movimento de integração, cooperação e desenvolvimento do continente como um todo, promovendo forte alinhamento com os princípios defendidos pelo pan africanismo. As posições assumidas pela organização, reiteram os compromissos com a visão de sociedade estabelecida na Agenda 2063, na qual uma perspectiva futurista coloca os seus 55 membros em posições de governabilidade antagônicas às observadas no Mali e em outros países suspensos nos últimos anos. Com isso, percebe-se que a Agenda elaborada pela organização, ocupa um papel muito importante no norteamento das políticas aplicadas pelos seus países membros, e propõe a ascensão de um continente próspero e unificado.






Referências Bibliográficas:


ACHIENG, R. M. Can we speak of African agency?: APRM and Africa’s agenda 2063. African Sociological Review / Revue Africaine de Sociologie, v. 18, n. 1, p. 49–64, 27 fev. 2015. Disponível em: https://www.ajol.info/index.php/asr/article/view/113673. Acesso em: 18 maio. 2023.

COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA. Agenda 2063: A África Que Queremos. [s.l.] União Africana, abr. 2015. Disponível em: <https://au.int/sites/default/files/documents/36204-doc-agenda2063_popular_version_po.pdf>. Acesso em: 16 maio. 2023.

SIMMS, K. D. Mali: dos golpes de Estado en un contexto de inseguridad regional. Instituto de relaciones internacionales, 2021. Disponível em:http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/126685. Acesso em:17 maio, 2023.

NWOZOR, A. União africana, construção do Estado e os desafios da fragilidade estatal na África. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais v.7, n.13, p.69-90,2018. Disponível em: http://eprints.lmu.edu.ng/3229/. Acesso: 14 maio 2023.


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