VINGADORES, AVANTE: NARRATIVAS PROPAGANDÍSTICAS NAS PRODUÇÕES CULTURAIS CINEMATOGRÁFICAS CONTEMPORÂNEAS
- nuriascom
- 29 de set.
- 9 min de leitura
Atualizado: há 1 dia
Autor: Igor Lima (Observatório Político Internacional)
Propaganda pode ser definida como a disseminação de informações com um fim voltado para o direcionamento da opinião pública (SMITH, 2016). Essa propaganda pode ser desenvolvida das mais diversas formas, mas tende a sempre servir o mesmo propósito, sendo este a validação daquilo que é proposto pelo emissor. Este artifício político precede até mesmo a configuração política moderna, tendo visto suas primeiras aplicações documentadas antes de Cristo, como o exercício do uituperatio romano, prática retórica de difamação de rivais políticos utilizada por Marco Antônio e Otaviano durante as guerras civis romanas (BORGIES, 2016),
evidenciando como a utilização de fatos, argumentos, meias-verdades ou até mesmo da própria mentira são militarizadas durante períodos de conflito. Entretanto, mesmo como uma prática milenar, a arte da propaganda atingiu um período de maior visibilidade a partir da Segunda Guerra, visto o investimento maciço das nações participantes do conflito em uma tentativa de legitimar os esforços de guerra - obras como Triumph Des Willens (“Triunfo da Vontade”, em português) da Alemanha nazista o qual documenta o congresso do partido nacional-socialista em 1934, serviam como uma “incomparável glorificação do poder e beleza do nosso movimento” como explicitado por Adolf Hitler nos bastidores da obra (SONTAG, S.; HINTON, D. B 1975), documentando marchas militares e o apoio da população.
Por outro lado, o curta-metragem Der Fuehrer’s Face atua exatamente no sentido contrário, retratando o Pato Donald - personagem da Disney popularizado em suas obras para o público infantil - como um dos trabalhadores nas indústrias armamentistas alemãs durante a guerra. Ao decorrer da obra, acompanhamos o personagem até o verdadeiro ápice ao final, onde o mesmo acorda do seu pesadelo, assustado ao ver a sombra de uma saudação nazista na sua parede somente para perceber aliviado que, na verdade, se tratava de sua miniatura da Estátua da Liberdade, símbolo verdadeiramente americano o qual, felicitado, Donald abraça e declara “Am I glad to be a citizen of the United States of America!” (“Como estou feliz de ser um cidadão dos Estados Unidos da América”, em tradução livre), reforçando seu patriotismo e orgulho americanos. Ambas as obras foram produzidas em períodos cruciais da Segunda Grande Guerra e refletiam o compromisso dos seus respectivos Estados soberanos com seus valores e ideias naquele determinado período histórico; mas, mais importante ainda, ambas as obras refletem o impacto direto da cinematografia nas produções propagandistas ocasionando uma expansão maciça em seu alcance. Tanto Triumph Des Willens quanto Der Fuehrer’s Face partiram da tradução de um sentimento ou valor para uma construção imagética (o orgulho e nacionalismo alemão e os perigos do partido nazista e sua ameça à liberdade, respectivamente), capacidade essa exclusiva ao cinema na época devido a sua capacidade de produzir curtas, médios e longa metragens para servir as mais diversas funções.
Esse processo que surge pré-Segunda Guerra é enfatizado a partir da Guerra Fria: se anteriormente tínhamos o cinema como uma plataforma auxiliar na construção da propaganda e da validação dos esforços de guerra, essa mesma plataforma torna-se essencial durante um conflito não “quente”, voltado majoritariamente para um embate de influência entre as duas maiores potências globais. Os esforços propagandísticos foram majoritariamente voltados para a criação de uma imagem do inimigo, seja pela personificação de suas práticas em um personagem ou a partir de uma exposição exagerada de um de seus traços ou característica tida como negativa
- produções desse cunho entre as duas nações que haveriam de protagonizar o conflito, inclusive, deram-se início antes mesmo do conflito em si. Obras como O Circo (1936) e Ninotchka (1939) mesmo antes do conflito já evidenciaram sentimentalidades anti-americanas e anti-soviéticas, respectivamente.
O Circo (1936), ao se debruçar sob uma narrativa crítica à sociedade americana e ocidental em um geral, exemplifica perfeitamente esse processo. A imprensa soviética utilizava das supostas mazelas norte-americanas do período - a discriminação racial e de gênero, a pobreza, o desemprego - como meio para descredibilizar o sistema capitalista em todos os âmbitos, e o cinema não foi uma exceção (Outro exemplo frequentemente satirizado é a frase de efeito soviética A u vas negrov linchuyut, a qual pode ser traduzida para “Entretanto, em seu país, eles lincham os negros.” Frase essa popularizada pela mídia soviética na década de 30).
Nas cenas iniciais da obra, estas as quais ocorrem nos Estados Unidos, a personagem principal Marion Dixon é perseguida através do circo onde ela trabalhava com suas performances, tendo de fugir em um trem para escapar da região. A caracterização da população americana, embora breve nesta obra, apresenta atributos semelhantes aos encontrados no modelo Haslam1 de desumanização (2006). De acordo com o modelo desenvolvido por Haslam, a desumanização é a negação da humanidade plena de outros e a crueldade e sofrimento que a acompanha. Nesse sentido, se torna possível compreender que a caracterização da população americana (E,
1Professor de psicologia atuante na Universidade de Melbourne, Austrália. Seu método desenvolvido para a análise do fenômeno da desumanização, desenvolvido em seu artigo “Dehumanization: an integrative review” (Desumanização: uma análise integrativa, em português) busca classificar as diferenças entre os dois principais métodos de desumanização: a desumanização animalesca e a desumanização mecânica.
consequentemente, da sociedade americana e ocidental como um todo) parte da desumanização de teor animalesco, demonstrada através da insensibilidade moral, incivilidade e irracionalidade.
O pretexto desta perseguição (o qual só é revelado ao final da obra, como o grande plot twist) é o fruto de uma relação interracial entre a protagonista e um homem: Uma criança negra. As políticas da doutrina “separados, porém iguais” - esta a qual determinava a legalidade do sistema de segregação racial, mesmo que uma afronta a décima-quarta emenda da constituição - já haviam sido postas em prática nos EUA a partir de 1896, dando ínicio ao período entitulado como Jim Crow era ( A era Jim Crow nos Estados Unidos foi caracterizada pela promulgação de leis estaduais e locais na região sul dos Estados Unidos que legalizavam a prática da segregação racial.). Contrapondo o sentimento racista do ocidente naquele determinado período histórico, a cena final da obra revela um sentimento completamente contrário por parte da população soviética; a partir da revelação da criança negra filha da protagonista, todos os soviéticos presentes acolhem-a, sendo por meio de brincadeiras, riso, carinho, ou protegendo-a do antagonista o qual, a partir da sua ‘mentalidade ocidental’, esperava que a mesma fosse abominada pelo povo.
Fenômeno semelhante ocorre em Ninotchka: mesmo que uma comédia - o que significa que tal retratação, majoritariamente, haveria de ser tomada com teor humorístico pelos consumidores - a obra também reforça a ideia de uma figura ‘não-tão humana’ a partir da desumanização mecânica de Haslam a qual refere-se à representações de cunho mecânico por meio de características como frieza, ausência de individualidade e responsabilidade interpessoal, rigidez e indiferença. Na obra, após uma série de complicações durante uma tentativa do governo de recuperar joias de uma aristocrata a qual havia fugido do país para a França após a revolução de 1917, tendo sido parte da oposição branca contra o regime soviético, a agente Nina Ivanovna “Ninotchka” Yakushova é enviada em uma tentativa de dar continuidade à operação.
O maior oponente de Nina em sua missão é o conde Leon d’Algaout, homem extremamente carismático o qual havia manipulado os três agentes enviados anteriormente. Nina e Leon são
completos opostos: enquanto d’Algaout é particularmente proeminente na arte da conversação e desorientação, utilizando de seu charme e status para sua vantagem, Nina é apresentada como uma figura completamente desprovida dos sentimentos mais básicos esperados de um ser humano - ela anda sempre uniformizada sem nenhum aspecto de personalização ou auto-cuidado voluntário, a mesma apresenta movimentos quase que robóticos e calculados em uma constante manutenção de postura militar e, ao conversar, mantém tom uniforme sem revelar o que sente por meio de sua voz. Ao decorrer da obra, o conde se aproxima da personagem, apresentando-a à ‘realidade ocidental’ - liberdade, amor e beleza. Ao final do filme, Nina torna-se uma nova mulher; uma ‘verdadeira mulher’ segundo os padrões ocidentais. Não mais a personificação dos objetivos do Estado soviético, agora ela possui agência e autonomia para conduzir sua própria vida: unindo se ao conde, tornando se ‘humana’ após a dicotomia entre sua humanidade e a natureza robótica da União, processo esse representado no filme em cenas como raríssimos momentos onde a personagem ri, sorri ou se diverte.
Após fim da Guerra Fria, a intencionalidade da propaganda em obras cinematográficas mudou de alvo: agora, ao invés do embate entre as duas potências, filmes passaram a ser utilizados na legitimação de conflitos ou embates menores e até mesmo para a humanização da figura do soldado (perceptível nas obras sobre a Guerra ao Terror, por exemplo, as quais buscam por trazer a figura do soldado americano como um ‘heroi incompreendido’ ou ‘messias’ o qual submete-se ao sofrer para garantir a segurança de sua nação). Entretanto, por mais que hoje as técnicas de desumanização descritas por Haslam não sejam tão proeminentes como no passado, suas características podem ainda ser notadas na modernidade; em um dos universos cinematográficos mais proeminentes dos anos 2000, o Marvel Studios, podemos acompanhar esse processo na figura do Soldado Invernal. A figura do Soldado Invernal surge em 2006, ano de relativa tensões entre os Estados Unidos da América e a Rússia - o apoio russo ao grupo Hamas, a disputa Russo-Ucraniana por gás e as sanções americanas ao Irã foram alguns entre os fatores que contribuíram para a deterioração das relações. Não se pode afirmar com total certeza de que esse cenário antagônico contribuiu para o retorno do personagem Bucky Barnes na figura do Soldado Invernal, porém as heranças do conflito da Guerra Fria são perceptíveis na caracterização do mesmo.
Bucky, então um soldado americano e amigo próximo do Capitão América, este símbolo representativo dos valores americanos, é dito como morto em combate após sumir em território europeu; anos após esses eventos, ele retorna como o Soldado Invernal - um agente soviético o qual teve suas memórias reprimidas e passa a agir como um assassino servindo aos interesses da URSS e, eventualmente, a HYDRA (grupo afiliado ao nazismo dentro do universo Marvel). Nos filmes essa representação torna se mais evidente: lançado em 2014, mesmo ano da anexação da Crimeia pela Rússia, a representação da frieza e natureza calculista tipicamente atribuídas aos soviéticos (agora russos) ainda se faz presente no personagem, mesmo que o Universo Cinematográfico Marvel tenha se empenhado para a inclusão da representatividade de gênero ou raça, por exemplo. De fato, até mesmo com alterações consideráveis no personagem - como a inclusão de discussões sobre trauma e ciclos de abuso, aprofundadas no contexto do filme Guerra Civil -, a ideia de uma ‘ameaça vinda da Rússia’, a qual passou a ser reconstruída após-políticas do onze de setembro (TSYGANKOV, 2015), permanece.
Ao decorrer da obra, por mais que Bucky seja colocado como uma ameaça de nível semelhante ao do Capitão América, o mesmo ainda insiste por buscar uma resposta para a ‘transição’ de seu antigo amigo de um homem para uma ‘máquina’; essa caracterização altruísta do personagem, o qual mesmo que sob ameaça insiste por tentar salvar o seu antigo colega de suas atuais condições é apenas uma entre as diversas demonstrações das qualidades americanas - empatia, solidariedade, companheirismo, etc, todas essas as quais são trazidas como algo quase que inédito ao Capitão América neste contexto: por mais que outros personagens insistam que seja mais seguro eliminar ou apreender a ameaça (processo esse um dos pontos cruciais para o início da Guerra Civil no Universo Cinematográfico Marvel), Steve Rogers, a personificação do que significa ser americano, acredita em segundas chances. A batalha final da obra, onde Bucky e Steve se enfrentam em um dos porta-aviões da S.H.I.E.L.D. é a mais evidente representação desses valores a partir do momento em que Steve está disposto a morrer nas mãos do seu melhor amigo, desde que isso signifique não machucá-lo; é neste momento então que o Soldado Invernal volta ao seu antigo eu novamente - por uma demonstração de amor fraternal.
A redenção do personagem, é claro, não ocorre de maneira imediata - nas obras subsequentes o mesmo ainda é retratado como um anti-heroi em reforma, alvo de desconfianças (inclusive do Homem de Ferro, ao descobrir que Bucky assassinou seu pai) e de críticas pelos seus crimes de passado. Entretanto, é evidente que Barnes está cada vez mais próximo do homem que era antes. Ao compararmos obras mais recentes do universo cinematográfico com o filme de 2014, os traços mecânicos do personagem foram substituídos por uma natureza mais leve, colaborativa, e até mesmo extrovertida, passando a desenvolver vínculos com outros personagens proeminentes e sendo até mesmo peça essencial na batalha contra Thanos em Wakanda, a qual acarretou em sua ‘morte’ nas mãos do estalo do titã louco.
O fato é que Bucky só entrou em contato novamente com sua verdadeira natureza após o reencontro com seu melhor amigo, e que, a partir do momento que seus vínculos com a HYDRA e os grupos soviéticos foram finalizados, seus traços desumanizantes foram gradualmente perdidos de maneira que sua humanidade foi finalmente reatingida. Portanto, por mais que hoje possa ser dito que vivemos em um período de relativa paz após os grandes conflitos do século XIX e XX, com a ocorrência apenas de conflitos menores e mais delimitados sem maior risco para parcelas expressivas da população global, as estratégias utilizadas nestes ainda se fazem presentes nos tempos atuais, e a propaganda não é diferente; ao olharmos atentamente para as entrelinhas do que tomamos como verdades, ao buscarmos entender o porquê de gostarmos ou não daquilo que é consumido na maioria das vezes sem questionamento, podemos encontrar raízes fundadas em pré-concepções, medos, ou até mesmo ódio por aquilo que nós é semelhante ou não.
BIBLIOGRAFIA:
SMITH, B. L. propaganda, 21 jan. 2024. (Nota técnica).
LOÏC BORGIES. Le conflit propagandiste entre Octavien et Marc Antoine : de l’usage politique de la uituperatio entre 44 et 30 a. C. n. Bruxelles: Éditions Latomus, 2016.
SONTAG, S.; HINTON, D. B. An Exchange on Leni Riefenstahl. Disponível em:
<https://www.nybooks.com/articles/1975/09/18/an-exchange-on-leni-riefenstahl/>. Acesso em: 7 abr. 2025.
O CIRCO. Direção: Grigori Aleksandrov. Produção de Mosfilm studios. URSS, 1936. Disponível em, acesso em 11 abr. 2025.
NINOTCHKA. Metro-Goldwyn-Mayer, 9 nov. 1939.
CAPTAIN AMERICA: THE WINTER SOLDIER. Walt Disney Studios, 13 mar. 2014.
A TSYGANKOV. Russophobia. [s.l.] Palgrave Macmillan, 2015.
Comentários